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Estado Constitucional Democrático e os Direitos Fundamentais

5 O TRABALHO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

5.1 Estado Constitucional Democrático e os Direitos Fundamentais

No decorrer da História, há uma alteração contínua no conteúdo dos direitos humanos, onde novos anseios são transformados em direitos para acolher necessidades que se tornaram mais intensas. Esse movimento, chamado de “gerações” de direitos, consiste em verdadeiras dimensões dos direitos, como preleciona Paulo Bonavides, uma vez que a mudança não se dá apenas com o nascimento de outras formas de amparo, mas também com a releitura dos direitos e garantias já antes adotados. Tais direitos não se superam, mas sim coexistem.

Os direitos humanos são vistos como princípios de justiça, que têm, na democracia, a função de proteção das minorias e garantem direitos iguais daqueles que não são das mesmas convicções econômicas, sociais, políticas, religiosas ou linguístico- culturais da respectiva maioria; eles formam um corretivo critico contra os excessos da soberania , mesmo de um soberano democrático.

Para que os direitos humanos sejam reconhecidos, não apenas em circunstâncias favoráveis, mas consolidados, instituídos e formadores do direito vigente aqui e agora, é necessária sua positivação. A positivação dos direitos humanos, própria do ponto de vista da teoria da legitimação, não acontece na democracia , mas tão somente no Estado Democrático Constitucional.

Por esta positivação, os direitos humanos não têm mais o significado abstrato de ideias, esperança e postulados que podem até ser justificados, mas que em face da realidade dominante permanecem inoperantes. Também os direitos humanos não são mais simplesmente solenes declarações de intenção, mas, sim, uma parte obrigatória da ordem do direito e do Estado. Eles perderam o caráter de simples princípios de legitimidade e se tornaram princípios de legalidade. Seu lugar jurídico, sistematicamente adequado, é a constituição (escrita ou não escrita) e em seu âmbito, aquela parte que está protegida contra as decisões da maioria das colisões que se sucedem.

O positivo significado jurídico dos direitos humanos é equivalente ao de direitos fundamentais. Segundo esta convicção terminológica, os direitos fundamentais

designam, bem como os direitos humanos, pretensões jurídicas válidas pré e suprapositivamente. Apenas falta aos “puros direitos humanos” aquela força jurídica positiva que possuem os direitos fundamentais. Enquanto os direitos humanos e os direitos fundamentais são iguais, sob o ponto de vista de conteúdo, seu modo de existência é diferente. Os direitos humanos são padrões morais, aos qual a ordem jurídica deveria se submeter. Os direitos fundamentais ao contrário são os direitos humanos, na medida em que efetivamente são reconhecidos por uma ordem jurídica dada. Lá se trata de postulados ético-políticos, os quais, do ponto de vista do tempo e do espaço, são universais. Aqui se trata de normas jurídicas que, limitadas à respectiva coletividade, têm vigência positiva.

Neste seu reconhecimento jurídico positivo, os direitos humanos têm duplo significado. Primeiro sistematicamente eles são pretensões dos seres humanos em face dos outros, secundariamente também são pretensões contra aquela instância que deve proteger as pretensões do Estado. Pois os direitos humanos não são apenas ameaçados por parte dos homens e, por isso, são protegidos pelo Estado. Eles também são pretensões ameaçadas pelo próprio “poder de proteção”.

Os direitos fundamentais devem criar e manter as condições elementares para assegurar uma vida em liberdade e a dignidade humana. Isso só se consegue quando a liberdade da vida em sociedade resulta garantida em igual medida que a liberdade individual. Ambas se encontram inseparavelmente relacionadas. A liberdade do individuo só se pode dar numa comunidade livre, e vice-versa; essa liberdade pressupõe seres humanos e cidadãos com capacidade e vontade para decidir por si mesmos, sobre seus próprios assuntos e para colaborar responsavelmente na vida da sociedade publicamente constituída como comunidade.

Essas circunstancias forjam a singularidade, a estrutura e a função dos direitos fundamentais: garantem não só direitos subjetivos dos indivíduos mas também princípios objetivos básicos para o ordenamento constitucional democrático e do Estado de Direito, fundamentos do Estado constituído pelos ditos direitos e seu ordenamento jurídico.

A concepção dos direitos fundamentais como normas objetivas supremas do ordenamento jurídico tem uma importância capital, não só teórica, para as tarefas do Estado. Partindo dessa premissa da vinculação dos poderes Legislativo, Executivo e

Judiciário aos direitos fundamentais, surge não só uma obrigação (negativa) do Estado de abster-se de ingerências no âmbito que aqueles direitos protegem, mas também uma obrigação (positiva) de levar a cabo tudo aquilo que sirva à realização dos direitos fundamentais, inclusive quando não conste uma pretensão subjetiva dos cidadãos.

Assim aponta-se para o duplo caráter dos direitos fundamentais, concebendo-os a um só tempo como direitos subjetivos – aptos a outorgar aos seus titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos públicos – e como direitos objetivos – enquanto elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva, formadores da base do ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito e pertencentes a toda a coletividade.

Estão insertas no Título II da CF/88 as cinco espécies do gênero de direitos fundamentais, a saber: direitos individuais; direitos coletivos; direitos sociais; direitos à nacionalidade; e, direitos políticos. Destarte, compreende-se que a nomenclatura “fundamental” possui significado além da epistemologia, tais direitos ditos fundamentais são assim chamados por determinação constitucional, que expressa, sui generis, a vontade do povo brasileiro de assim os considerar, destacando sua imprescindibilidade para a concretização da dignidade do brasileiro, bem como do estrangeiro que eventualmente esteja sob o manto pátrio.

A existência de direitos a prestações em sentido estrito são típicos direitos do Estado Social e importam na sua atuação no sentido da criação, fornecimento e distribuição de prestações materiais, constituindo-se naqueles direitos fundamentais a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse dos recursos necessários e em existindo no mercado uma oferta suficiente, poderia obter também de particulares. São os denominados direitos fundamentais sociais.

A classificação dos direitos fundamentais em positivos e negativos tem sido alvo de críticas por parte da doutrina, sendo que os autores partidários de tal censura defendem, na verdade, que todos os direitos fundamentais teriam o caráter positivo, uma vez que sempre geram algum tipo de custo para o Estado e impõem, ainda que indiretamente, um “agir estatal”.

A própria designação de direitos “positivos” de liberdade já mostra, decerto, que eles, em um ou outro aspecto, divergem fundamentalmente dos direitos “negativos”

de liberdade. Não mais se trata de prestações negativas, como renúncias, mas de prestações positivas, tais como cuidado com a alimentação, a saúde, a moradia, formação escolar e profissional. Enquanto obrigações jurídicas, os direitos sociais enfrentam um problema: a escassez, que os direitos de defesa não conhecem. Em oposição a Rawls e a Hume, a quem o primeiro se refere, a escassez não é nenhuma condição genérica aplicável à justiça.

Enquanto os direitos negativos de liberdade podem ser reclamados em qualquer situação, até mesmo no caso de escassez, tal atitude é vedada aos direitos sociais. Excetuando-se as exceções legais, quem matar outro indivíduo estará, em qualquer caso, infringindo um direito humano. Já quem deixar alguém morrer de fome ou de frio, por não ter condições necessárias de adquirir alimentos e roupas, não se estará incriminando através de transgressão aos direitos humanos. Prestações positivas são essencialmente comparativas; por existir uma relação de “mais-ou-menos”, a definição mais precisa se deixará guiar tanto pelos recursos existentes como pelas necessidades de uma sociedade. Ademais, assim como os direitos sociais são dependentes de recursos, o são de cultura.

Com isso, observa-se que o conteúdo e o alcance das normas de direitos fundamentais deverão ser considerados não apenas a partir de uma perspectiva subjetiva do titular do direito, mas também em face dos direitos assegurados a todos os cidadãos.

Os direitos sociais são previstos na Constituição pelas chamadas normas programáticas. Tais normas consistem em disposições que indicam os fins sociais a serem alcançados pelo Estado, tendo em vista a concretização e o cumprimento dos objetivos basilares previstos na Constituição. Todavia, conforme o artigo 5º, §1º da Constituição de 1988, que determina que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, não foi feita diferenciação no tratamento dos direitos fundamentais, sejam eles negativos ou positivos. Portanto, os direitos sociais, a princípio, teriam eficácia equivalente à das demais garantias fundamentais, e caberia ao operador do direito o dever de tornar esses direitos efetivos, através de um esforço hermenêutico inovador.

Cuida, assim, a contemporânea dogmática dos direitos fundamentais sociais, da possibilidade de o Estado obrigar-se à criação dos pressupostos fáticos necessários

ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade do titular do direito impor sua pretensão a prestações em face do Estado.

Em que pese o fato de os denominados direitos sociais terem sido declarados e positivados já nas primeiras décadas do século XX, é somente a partir de meados do século XX que toma forma a ideia de um Estado social de direito comprometido com a realização da denominada Justiça Social nos marcos do sistema capitalista. O Estado de Bem-Estar Social, desenvolvido na Europa a partir do período Pós-guerra, é a demonstração mais acabada dessa concepção de Estado.

Tal mudança significativa nas relações entre a sociedade e o Estado passou a exigir também modificação na forma jurídica até então conhecida. Ao mesmo tempo em que se consolida a Teoria do Estado Social, surge a exigência de uma teoria jurídica que, ao menos no plano teórico, tutele e garanta os denominados direitos sociais. A preocupação existente no plano jurídico liberal, criado nos postulados do Estado liberal, sempre fora a tutela e garantia dos denominados “direitos individuais” (Abramovichi e Courts, 2002, p.14).

Um último ponto a ser ressaltado é: o Estado, como um ente gestor dos interesses públicos vigentes na sociedade, teria a função de garanti-los em um primeiro momento e de afirmá-los e concretizá-los em um segundo. Estes interesses, embora garantidos, afirmados e concretizados pelo ente estatal, a ele não pertencem.

O sistema jurídico assumiu uma função principiológica dirigente ou programática, ou seja, passou a estabelecer condições sociais e econômicas, no âmbito do dever-ser, que deveriam ser progressivamente alcançadas. Essas condições, em última análise, referem-se à salvaguarda dos requisitos mínimos para que seja assegurada uma vida digna a todos os cidadãos, decorrentes de prestações e de proibições a serem implementadas pelos aparatos estatais, que, no âmbito do Estado Constitucional, acabam por representar o seu desígnio.

Os conceitos de democracia, dignidade da pessoa humana e de mínimo exis- tencial são condições de validade inafastável um do outro, ao ponto que não se pode pensar a democracia sem se conceber exordialmente a dignidade da pessoa humana e esta não se apresenta sem condições mínimas de existência, bem como não é possível conceber tais ideias sem preconizar a adoção de uma solução democrática.

Registre-se que Alexy (2002) afasta, em definitivo, o caráter programático das normas que contêm direitos fundamentais sociais. Dada à importância de que se revestem as normas de direitos fundamentais, de maneira geral, não pode ser conferida ao legislador a liberdade de decidir acerca de sua outorga ou não.

Segundo o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), aos Estados - Partes cabem uma obrigação mínima de assegurar a satisfação, ao menos em níveis essenciais, de cada um dos direitos econômicos, sociais e culturais previstos pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Esses níveis básicos dizem respeito ao conteúdo essencial desses direitos.

A vida e a dignidade humana também demandam uma conduta estatal positiva, haja vista que cabe ao Estado do bem-estar social prover condições mínimas de vida à população. Garantindo assim o mínimo existencial68 ou mínimo vital, mediante o fornecimento de hospitais, de escolas, de locais de lazer e emprego. Essa dupla direção protetiva da cláusula da dignidade humana significa que ela é um direito público subjetivo, ou seja, um direito fundamental do indivíduo contra o Estado e contra a sociedade; e, ao mesmo tempo, um encargo constitucional endereçado ao Estado, no sentido de um dever de proteger o indivíduo em sua dignidade humana em face da sociedade ou de seus grupos.

A crise de eficácia dos direitos fundamentais sociais implica necessariamente um déficit democrático. Com efeito, na medida em que os cidadãos não têm condições materiais mínimas de existência digna, ou seja, não têm as garantias de alimentação adequada, saúde, educação e outros, na verdade, deixam de ter liberdade real para participar ativa e conscientemente do jogo democrático. Logo, o indivíduo que

68 “A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal foi profundamente modificada, deixando de ser eminentemente legisladora em pró das liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar a realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação dos fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua margem de atuação ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel cumprimento dos objetivos constitucionais. Assegurar um mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos essenciais, dentre os quais a educação e a saúde, é escopo da República Federativa do Brasil que não pode ser condicionado à conveniência política do administrador público. [...] A omissão injustificada da administração em efetivar as políticas públicas constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário. Recurso especial parcialmente conhecido e improvido." (REsp 1.041.197/MS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 25.8.2009, DJe 16.9.2009.

não recebe as garantias materiais mínimas de existência digna, consequentemente, não terá forças para lutar pelos seus direitos.

Assim, parece contraditório falar-se que a Constituição assegura um mínimo existencial e por outro lado determina que os direitos fundamentais devam ser aplicados buscando a sua máxima efetividade. E que ainda, em casos de restrições (legais ou fáticas) assegura o ordenamento constitucional que o núcleo ou conteúdo essencial do direito fundamental seja preservado. Ocorre um paradoxo explicitado na nossa Constituição: existe uma preocupação latente em se proteger as condições de vida do povo, porém, os meios para alcance do bem com estão engessados pela baixa aplicabilidade das normas com caráter social.

Com efeito, o tema da aplicabilidade das normas de direitos sociais, que detalharemos a seguir, suscita todas essas questões, já que se está diante de direitos que exigem recursos especialmente materiais de ordem econômico-financeira para serem concretizados.