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5 O TRABALHO COMO DIREITO FUNDAMENTAL

5.6 O valor social do trabalho

Cabe destacar aqui o trabalho em seu caráter fundante do ser social, como atividade permanente e imanente da própria existência humana e elemento impulsionador para a dinâmica da vida em sociedade. Incidindo de forma decisiva no processo de ruptura do homem com seu meio natural88, constitui-se num elemento capaz de explicar o homem em seu caráter de complexidade.

O trabalho possui uma trajetória, uma progressividade histórica. É possível, portanto, falarmos de uma história do trabalho, enquanto uma delimitação temática da história da humanidade. História do trabalho que expressa o fundamento último do ser social, que é a sua capacidade de transformar e criar o mundo natural e o mundo social, em direção da sua plena humanização.

88 Os homens transformam a natureza e se transformam na mesma medida. Isto porque os homens podem refletir acerca da sua forma de agir e porque se comunicam e sistematizam as suas experiências sociais na forma de cultura, o que os diferencia, obviamente, dos animais. Desta forma os homens fazem a “história humana”, isto é, transformam a realidade natural e social, conforme a época e o lugar. Esta transformação tem sempre como ponto de partida a herança material e cultural das gerações anteriores, de maneira a incorporar (e/ou reformular), a recusar ou a criar novas práticas e conceitos à medida que avança o processo histórico.

A ação do homem na natureza não é uma ação puramente exterior, conforme podemos averiguar empiricamente. A sua ação na natureza demanda um tipo de organização dele mesmo, de forma que o homem constrói estruturas sociais, pensamentos e valores que são, em última instância, materializações da construção da sua própria subjetividade.

As formas contemporâneas do trabalho, desde o trabalho informal até o trabalho que opera tecnologias de ponta, são expressões das necessidades da produção de mais-valia nesse momento em que predomina a produção destrutiva peculiar à crise estrutural do capital. Tanto as novas formas de articulação da concepção, do controle e da produção, como ainda as novas articulações entre mercado, produção e capital financeiro, são expressões da necessidade por uma maior velocidade na circulação do dinheiro para a manutenção, em estágios críticos, da valorização do capital.

O renascimento de formas aparentemente arcaicas do trabalho doméstico, infantil e escravo são, de fato, respostas muito contemporâneas, atuais, às necessidades da reprodução do sistema do capital. Não há qualquer particularidade socialmente significativa, nessa esfera, que não tenha na reprodução ampliada do capital seu momento predominante.

Neste enfoque, reconhece que foi Hegel quem primeiro percebeu a importância desta atividade essencialmente humana, quando concebe o homem como resultado de seu trabalho. A partir desta concepção, é possível concluir que o homem é processo, é produto de sua própria história e, portanto, é mutável.

Hegel percebe, no trabalho, o elemento propulsor do desenvolvimento humano; é pelo trabalho que o homem constrói o seu próprio existir. Se, no trabalho, encontra-se a resistência do objeto, será o sujeito, com sua habilidade, que poderá buscar a sua superação (Aufheben). Neste processo, o homem pode se distanciar da natureza, contrapondo-se a ela, estabelecendo-se, então, uma relação sujeito-objeto.

Na sua forma primordial, como formador de valores de uso, o trabalho impulsiona as ações dos homens para procedimentos e atitudes que transcendem a simples atividade de transformação da natureza.

No entanto, se não entendermos o trabalho como uma atividade em que o homem supera a si mesmo na prática da vida cotidiana, não podemos entender a práxis humana como um processo dinâmico, dialético, que evolui para formas que se multiplicam em suas determinações, orientando o processo da vida social, na recíproca relação entre os homens, e superando as antigas formas, para dar lugar a formas mais elevadas da existência social.

Pelo trabalho, atividade essencialmente social, dá-se o distanciamento do homem e seu meio, e as formas de sociabilidade podem advir deste processo, como forma de representatividade deste novo ser que se originou e se transformou, mas que se superou a si mesmo e às determinações impostas a ele pela natureza, como é o caso da linguagem, principal forma de representação de seu distanciamento do mundo.

Assim, em seu fundamento ontológico, ao pressupor uma posição teleológica a todo processo de trabalho, vemos que os homens, apesar das determinações adversas da vida em sociedade, na medida em que buscam respostas às alternativas postas pelo mundo do trabalho, podem estar se produzindo enquanto seres conscientes e autônomos, responsáveis pelo seu destino.

O trabalho aparece aqui como o elemento indispensável para a construção do novo homem, consciente de sua condição social e livre para ser indivíduo em conformidade com a generalidade a qual representa, realizando uma articulação entre necessidade e possibilidade e orientando-se para formas cada vez mais libertárias de ser.

É certo que o advento de uma nova Constituição deveria ser capaz de abalar antigas certezas. De fato, a mudança não ocorreu apenas no âmbito redacional, embora também este aspecto seja importante indicador da necessidade de uma nova pragmática constitucional. Na verdade, outra passou a ser a dimensão político-constitucional condicionadora dos olhares de seus intérpretes, qual seja, a democrática de direito (art. 1º). Sobretudo numa perspectiva de direitos fundamentais, pode-se afirmar que o constitucionalismo da atualidade procura se assentar de forma cotidiana sobre uma ordem jurídica baseada em princípios (Dworkin, 2005). De outro modo, os direitos sociais, assumidos como fundamentais, passaram a ser fatores decisivos para a legitimidade do sistema constitucional. A discricionariedade do legislador também precisou ser redimensionada em razão do vínculo obrigacional representado por tais direitos.

Nesse mote, a Constituição Federal elevou o Valor Social do Trabalho89 à categoria de Princípio Constitucional Estruturante90; anuncia que a ordem econômica

89 “[...] a valorização do trabalho humano não apenas importa em criar medidas de proteção ao trabalhador, como ocorreu no caso do Estado de Bem-Estar Social, mas sim admitir o trabalho e o trabalhador como principal agente de transformação da economia e meio de inserção social. Com isso o capital deixa de ser o centro dos debates econômicos, devendo-se voltar para o aspecto, quem sabe subjetivo, da força produtiva humana. [...] A livre iniciativa, bem compreendida, além de reunir os

deve fundamentar-se na valorização do trabalho humano91; elenca o trabalho como Direito Social; e, ainda expressa o trabalho como o primado da ordem social92.

É correto afirmar-se que o direito ao trabalho é uma garantia do direito à vida, vida digna e sob o qual se erige a educação como um processo de formação para a vida. Tanto que o artigo 193 da Constituição registra que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” do qual se infere que, sem trabalho, impera a injustiça social e não se pode falar em bem-estar social. A esse vetor constitucional social se junta o artigo 170 que afirma que “a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social93”.

O princípio da valorização do trabalho humano – constante do caput do art. 170 da Constituição – denota que a ordem econômica estabelece a primazia do trabalho humano sobre o capital e os demais valores da economia de mercado. Disso resulta que a atividade estatal deve ser orientada à proteção de tal prioridade e à promoção, em um sentido amplo, dos valores sociais do trabalho.

alicerces e fundamentos da ordem econômica, também deita raízes nos direitos fundamentais. É daí que surge a observação de que as leis restritivas da livre iniciativa, vale dizer, aquelas que asseguram o acesso de todos ao livre exercício de profissão ou ofício, devem observar o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, funcionando como uma espécie de limite negativo ao legislador, fazendo valer o princípio da dignidade da pessoa humana, art. 1º, III, da Carta de 1988 [...]”.(MARQUES, 2007, p. 115-116). 90“Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 21 maio 2015.

91“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios [...]”. BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário

Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 21 maio 2015. 92“Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário

Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 21 maio 2015. 93 Aristóteles é o primeiro a propor uma teoria sistemática da justiça. Ele subdivide o gênero justiça em três espécies: justiça geral, justiça distributiva e justiça corretiva. Tomás de Aquino assume a teoria da justiça de Aristóteles e a desenvolve em três espécies: justiça legal, distributiva e comutativa. Sob o impacto da tendência igualitária que caracteriza a modernidade, os tomistas do século XIX, a partir da justiça legal tomista, desenvolvem o conceito de justiça social, que encontra na "ética social cristã" do século XX, o principal instrumento de sua difusão no discurso político e nos textos constitucionais, como da Constituição brasileira de 1988.

6 POLÍTICAS PUBLICAS E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO