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4 TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

4.5 O desrespeito ao direito trabalhista e aos seus princípios

4.5.2 A intangibilidade salarial

O salário, enquanto instituto oriundo da relação de trabalho, possui uma série de características que o definem, as quais passar em os a analisar, com a finalidade de delimitar os seus contornos.

Diversas teorias já surgiram sobre o salário. Inicialmente, tivemos a Teoria da Contraprestatividade, segunda a qual salário era a mera troca havia entre empregado e empregador da mão de obra daquele pela remuneração deste, não havendo se falar em salário quando não houvesse prestação de trabalho.

A segunda teoria que tentou disciplinar a conceituação do salário seria

Teoria da Contraprestação com o Contrato de Trabalho, segundo a qual o salário retribui não apenas a efetiva prestação da mão de obra pelo empregado, como também os períodos de tempo em que este está subordinado ao empregador, esperando ordens deste, independente de a sua força de trabalho vir a ser utilizada ou não.

Outra teoria é a Teoria do Salário Social, segundo a qual salário seriam tanto as percepções financeiras vertidas ao empregado pelo empregador em decorrência da relação de trabalho, como também aquelas vertidas ao Estado, igualmente em decorrência deste vínculo laboral.

Destarte, em que pese a dificuldade de conceituação acerca do tema, é entendimento pacífico que o salário é a contraprestação devida pelo empregador, e não por terceiro, em razão do vínculo laboral mantido, seja pela efetiva prestação de trabalho, pelos períodos em que o empregado estiver à disposição, bem como pelas interrupções e demais hipóteses previstas em lei como sendo devido salário sem trabalho.

Trata-se de um complexo de parcelas (José Martins Catharino) e não uma única verba. Todas têm caráter contraprestativo, não necessariamente em função da precisa prestação do serviço, mas em função do contrato (nos períodos de interrupção, o salário continua devido e pago); todas são também devidas e pagas diretamente pelo empregador, segundo o modelo referido pela CLT (art. 457, caput) e pelo conceito legal de salário mínimo (art. 76 da CLT e leis do salário mínimo após 1988).

O salário, como contraprestação principal do empregador para com o empregado, normalmente única fonte de sustento do obreiro e de sua família, é assegurado por uma séria de disposições de ordem principiológicas, doutrinárias e legais. São quatro os princípios básicos que lastreiam a protetividade conferida ao salário, são eles: o Princípio da Irredutibilidade, o Princípio da Inalterabilidade Lesiva, o da Impenhorabilidade e o da Intangibilidade, o qual será desenvolvido neste tópico, pois um dos mecanismos que prendem o trabalhador escravo contemporâneo ao seu empregador é a cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários.

Tem-se no ordenamento justrabalhista o principio da intangibilidade salarial, presente no núcleo basilar de princípios especiais. Tal princípio assegura o valor, montante e disponibilidade do salário tendo em vista ser caráter alimentar, dispondo que não poderá haver redução, descontos e interesses de credores ou até mesmo do empregador em face de dividas no salário dos empregados.

A referida proteção começa na ordem internacional. O art. 8º, 1, da Convenção n. 95 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), documento ratificado pelo Brasil, proíbe os descontos salariais, exceto “sob condições e limites prescritos pela legislação nacional ou fixados por convenção coletiva ou sentença arbitral”. O item 2 do mesmo artigo impõe o dever de informar os trabalhadores a respeito das “condições e limites nos quais tais descontos puderem ser efetuados”.

No plano interno, o art. 7º, X, da Constituição remete à lei ordinária a proteção do salário, medida que se verifica no art. 462 da CLT:

Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.

§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde de que esta possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado. (Parágrafo único renumerado pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

§ 2º - É vedado à empresa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou serviços estimados a proporcionar-lhes prestações " in natura " exercer qualquer coação ou induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços. (Incluído pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

§ 3º - Sempre que não for possível o acesso dos empregados a armazéns ou serviços não mantidos pela empresa, é lícito à autoridade competente determinar a adoção de medidas adequadas, visando a que as mercadorias sejam vendidas e os serviços prestados a preços razoáveis, sem intuito de lucro e sempre em benefício das empregados. (Incluído pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

§ 4º - Observado o disposto neste Capítulo, é vedado às empresas limitar, por qualquer forma, a liberdade dos empregados de dispor do seu salário. (Incluído pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)

Nota-se que o art. 462 veda ao empregador efetuar descontos no salário do trabalhador, mas abre exceções: adiantamentos efetivados pelo empregador; negociação coletiva (denominação atualizada do “contrato coletivo” presente do texto legal); dano decorrente de dolo do empregado; dano decorrente de culpa do empregado, desde que previsto o desconto no contrato; e demais permissões legais.

O inciso I do § 2º do art. 2º do referido instrumento alerta que “a soma dos descontos referidos no art. 1º desta Lei não poderá exceder a trinta por cento da remuneração disponível”.

O TST trata dos descontos salariais em vários verbetes de sua jurisprudência uniformizada, que aqui se reproduzem:

SUM-342 DESCONTOS SALARIAIS. ART. 462 DA CLT (mantida) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

Descontos salariais efetuados pelo empregador, com a autorização prévia e por escrito do empregado, para ser integrado em planos de assistência odontológica, médico-hospitalar, de seguro, de previdência privada, ou de entidade cooperativa, cultural ou recreativo-associativa de seus trabalhadores, em seu benefício e de seus dependentes, não afrontam o disposto no art. 462 da CLT, salvo se ficar demonstrada a existência de coação ou de outro defeito que vicie o ato jurídico.

OJ-SDI1-160 DESCONTOS SALARIAIS. AUTORIZAÇÃO NO ATO DA ADMISSÃO. VALIDADE (inserida em 26.03.1999)

É inválida a presunção de vício de consentimento resultante do fato de ter o empregado anuído expressamente com descontos salariais na oportunidade da admissão. É de se exigir demonstração concreta do vício de vontade.

OJ-SDI1-251 DESCONTOS. FRENTISTA. CHEQUES SEM FUNDOS (inserida em 13.03.2002)

É lícito o desconto salarial referente à devolução de cheques sem fundos, quando o frentista não observar as recomendações previstas em instrumento coletivo.

Portanto, é possível verificar que o princípio da intangibilidade não é absoluto, existindo exceções como visto anteriormente. O que se configura como desrespeito ao princípio da intangibilidade salarial são os descontos feitos fora dos limites legais, gerando uma distorção na finalidade do salário.

Entretanto, é necessário observar a legalidade dos descontos feitos aos trabalhadores. Pois, pode-se observar que, ao longo dos anos, a principal forma pela qual o explorador mantém o trabalhador vinculado a si é por meio da cobrança de suas dívidas. Sabendo que o trabalhador não terá capital para aboná-las, o mesmo continuará a trabalhar indefinidamente até que possa quitá-las, fato que nunca ocorrerá. O "aprisionamento" também pode se dar por meio de retenção de documentos, alimentação e até mesmo punições físicas.

Um aspecto que se mostra como ponto de encontro com as mais variadas espécies de escravidão é, como já observado, a dívida interminável que a vítima possui. É por meio dela que o trabalhador explorado se mostra enclausurado em sua condição, não tendo opção quitá-la. O uso e abuso de meios coercitivos, físicos e psicológicos, também se mostra muito presente. O explorador o coloca em posição de "trabalhador por peça". Por esse modo, cria a ideia de que há uma relação jurídica entre eles, havendo um contrato pelo qual deve ser cumprido. Caso o trabalhador não o faça, o explorador impõe condições resultantes de descumprimento "contratual".

O fato é que a escravidão de hoje se mostra caracterizada, principalmente, pelo uso e, após, exclusão do ser humano. Situações como essa, ocorrem não só no Brasil, mas também em diversos países do mundo, de forma que há necessidade de imposição de forças coercitivas de controle contra tais práticas.