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Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo

6 POLÍTICAS PUBLICAS E ERRADICAÇÃO DO

6.4 Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo

Nas últimas décadas do século XX, além dessas pesquisas que documentavam o flagrante desrespeito aos direitos fundamentais de milhares de indivíduos pelo país afora, havia também uma contínua luta política para trazer a público o descaso do Estado que vinha fazendo, havia anos, vistas grossas às formas de trabalho similares às da escravidão.

O Estado brasileiro só se moveu para combater o trabalho escravo empurrado pela sociedade civil. Entre as primeiras denúncias feitas por dom Pedro Casaldáliga, então bispo de São Félix do Araguaia (MT) – em meio à ditadura militar, no início da década de 1970 – e o compromisso com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) – em que o país reconheceu a existência da escravidão no seu território, em meados dos anos 1990.

Assinale-se que as ações do MTE de combate às formas de trabalho semelhantes às da escravidão são resultado de um longo processo de denúncias e reivindicações da sociedade civil e de mudanças ocorridas no interior do Estado brasileiro a partir tanto de um novo arcabouço jurídico gerado pela Carta Magna de 1988 quanto da legislação por ela recepcionada. Isso não significa que esse evento pode ser pensado de modo isolado de vários outros acontecimentos significativos, tais como o mapeamento das condições e regiões mais implicadas na manutenção do trabalho escravo e no maior envolvimento de indivíduos, grupos e instituições na luta por tornar públicos os avanços e as dificuldades na erradicação do trabalho forçado e degradante.

Na iminência de receber uma sanção internacional por conta do caso Zé Pereira95, o Estado finalmente acordou para o combate ao trabalho escravo. Em 1995, o

95 Nascido em São Miguel do Araguaia (GO), Zé Pereira foi para o Pará aos 8 anos, na companhia do pai, que também trabalhava em fazendas. Ele chegou à Fazenda Espírito Santo, em Sapucaia, no Pará, onde trabalhou em condições semelhantes às de escravidão. Em setembro de 1989, com 17 anos, fugiu dos maus-tratos e caiu em uma emboscada preparada pelo “gato” e outros três funcionários da fazenda, que lhe deram um tiro na cabeça pelas costas. Sangrando, Pereira fingiu-se de morto e foi jogado em uma fazenda vizinha junto com seu companheiro de fuga, o Paraná, morto na mesma emboscada pelos jagunços. Atingido em um dos olhos, caminhou até a sede da propriedade e pediu socorro. Em Belém, capital do estado, o ex-escravo denunciou as condições de trabalho na fazenda à Polícia Federal. Sem resposta efetiva das autoridades, levou o caso às ONGs, que decidiram apresentar a denúncia à OEA. No acordo que pôs fim ao processo, o Brasil também prometeu reparar financeiramente os danos causados a Zé Pereira, que, 14 anos depois de fugir, recebeu a primeira indenização paga pelo Estado brasileiro a um cidadão por ter trabalhado em regime de escravidão, no valor de R$ 52 mil. A indenização foi aprovada pelo Congresso (no Senado, PLC 23/03).

então presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente o problema e tomou as providências para a criação de uma estrutura que, com ajustes e avanços alcançados no governo Lula, se mantém na linha de frente no combate à escravização da mão de obra.

Em setembro de 2002, ocorreu a I Jornada de Debates sobre Trabalho Escravo. O evento contou com a participação de aproximadamente 350 pessoas, dentre elas, Juízes Federais, Juízes do Trabalho, Procuradores da República, Procuradores do Trabalho, Policiais Federais, Policiais Rodoviários Federais e Fiscais do Trabalho. O objetivo do evento foi discutir os papéis das instituições envolvidas, bem como apresentar um panorama do problema em níveis nacional e internacional. A Jornada incentivou a criação de grupos de trabalho de combate ao trabalho escravo no Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho e Ordem dos Advogados do Brasil, além de alcançar uma intensa repercussão nas mídias impressa e televisiva. Em 2004, nos dias 23 e 24 de novembro, foi realizada a II Jornada, que teve a participação de mais de 400 pessoas. Durante o evento foram aprofundados os temas relevantes do combate ao trabalho escravo, bem como apontados os entraves que ainda dificultam o cumprimento das metas de erradicação desse problema no Brasil.

Em 28 de janeiro de 2002, foi formada uma comissão especial do CDDPH (Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), com base na Resolução 05/2002, que formulou um Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo. Dessa comissão, presidida pelo secretário especial dos Direitos Humanos (Nilmário Miranda), participaram diversas entidades e lideranças da sociedade civil organizada e vários representantes do Estado e do governo brasileiro. Alguns membros que estão presentes na comissão especial constituída pela Resolução n. 05, tais como José de Souza Martins31 e Ricardo Rezende Figueira, tiveram uma atuação destacada, nas décadas de 1980 e 1990, na luta para levar o Estado a assumir uma postura de combate sem trégua às formas de trabalho semelhantes às da escravidão.

Dando prosseguimento às discussões iniciadas em 2002, foi referendado e lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 11 de março de 2003, o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, fruto das aspirações de todas as instituições que futuramente comporiam a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo – CONATRAE, finalmente fundada em 01 de agosto de 2003. O

Plano, de cuja elaboração a OIT participou ativamente, contém 75 metas de curto, médio e longo prazo que norteiam as ações em um período de quatro anos:

1 - Declarar a erradicação e a repressão ao trabalho escravo contemporâneo como prioridades do Estado brasileiro.

2 - Adotar o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, objetivando fazer cumprir as metas definidas no PNDH II.

3 - Estabelecer estratégias de atuação operacional integrada em relação às ações preventivas e repressivas dos órgãos do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público, da sociedade civil com vistas a erradicar o trabalho escravo.

[...]

13 - Criar o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - CONATRAE vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.

14 - Criar um Grupo Executivo de Erradicação do Trabalho Escravo, como órgão operacional vinculado ao CONATRAE, para garantir uma ação conjunta e articulada nas operações de fiscalização entre as Equipes Móveis, MPT, Justiça do Trabalho, MPF, Justiça Federal, MF/ SRF, MMA/IBAMA e MPS/INSS, e nas demais ações que visem a Erradicação do Trabalho Escravo.

[...]

25 - Investir na formação/capacitação dos Auditores Fiscais do Trabalho, de Policiais Federais e Fiscais do IBAMA, e criar incentivos funcionais específicos de forma a estimular a adesão ao Grupo de Fiscalização Móvel e permitir a dedicação dos mesmos à erradicação do trabalho escravo.

[...]

35 - Definir junto à PRF um programa de metas de fiscalização nos eixos de transporte irregular e de aliciamento de trabalhadores, exigindo a regularização da situação dos veículos e encaminhando-os ao MTE para regularizar as condições de contratação do trabalho.

36 – Adotar providências contra o aliciamento por parte dos “gatos” e contra o transporte ilegal dos trabalhadores.

[...]

53 - Implementar uma política de reinserção social de forma a assegurar que os trabalhadores libertados não voltem a ser escravizados, com ações específicas, tendentes a facilitar sua reintegração na região de origem, sempre que possível: assistência à saúde, educação profissionalizante, geração de emprego e renda e reforma agrária.

54 - Garantir a emissão de documentação civil básica como primeira etapa da política de reinserção. Nos registros civis incluem-se: Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade, Carteira de Trabalho, CPF, Cartão do Cidadão a todos os libertados.

55 - Contemplar as vítimas com seguro-desemprego e alguns benefícios sociais temporários.

67 - Estabelecer uma campanha nacional de conscientização, sensibilização e capacitação para erradicação do trabalho escravo.

[...]

74 - Incluir o tema de direitos sociais nos parâmetros curriculares nacionais.

Este conjunto de políticas que foram sendo aperfeiçoadas gradualmente, embora ainda não sejam completamente eficientes, visto que, o problema persiste, passaram a promover o Brasil como referência no combate ao trabalho escravo.

Naturalmente, isto foi possível devido à inexistência de políticas voltadas para o enfrentamento dessa questão nos demais países em que ocorre escravidão, fazendo com que, comparativamente, o Brasil se destacasse. Muitos dos países que têm o Brasil como referência ainda nem chegaram a reconhecer a existência de escravidão em seu território ou mesmo como uma prática ilegal, como é o caso da China, que utiliza o trabalho forçado como pena.