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A estratégia norte-americana para o Ártico: o PDARP

Russia e EUA: atitudes antitéticas em comparação 2.1 A visão articocéntrica da Rússia

2.2 A visão artico-periférica dos Estados Unidos

2.2.2 A estratégia norte-americana para o Ártico: o PDARP

Resulta claramente evidente como, sendo a sensibilização americana face às questões abertas na região ártica ainda não maciça, também a ideia de os Estados Unidos serem uma nação ártica é completamente excluível. Os Estados Unidos, diferentemente não só da Federação Russa mas também de todas as outras entidades envolvidas na questão, sentem-se parte chamada em causa só por interesses relativos ao equilíbrio geopolítico e aos recursos naturais extraíveis.

Em certa medida é então possível afirmar que os Estados Unidos entraram ativamente na questão ártica com algumas décadas de atraso, apesar das medidas

140 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.129

141 Ibidem, p. 135

46 puramente militares já tomadas – mas tudo o que tinha acontecido foi apenas causado pela ameaça Soviética, e não por alguma particular sensibilização ao problema. A confirmar estas considerações estão as afirmações de Scott Borgerson, na ocasião de ter testemunhado perante o Comité dos Negocios Estrangeiros da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, em 2009.

A alerta que o próprio quis fazer resume quanto já ampliamente tratado:

“...talvez porque o Alasca pareça estar muito distante, esquece que devido à costa do Alasca também somos uma nação do Ártico e, a geopolítica do Ártico, apesar de termos ignorado durante alguns anos. Está a desenvolver-se rapidamente sem nós.”143

E manifesta assim uma certa inquietação sobre o prazo em que os Estados Unidos não puderam por condições nas tratativas para a repartição da calota ártica – que corresponde mais ou menos ao periodo que intercorreu entre o colápse da União Soviética e o início da última década – , e é devido afirmar que não faltaram por causas de natureza política ou falta de preparação militar, mas devido a um grande sentido de esnobismo em relação à questão.

O sentido de Ártico como periferia – ou visão ártico-periférica em contraposição com a filosofia artico-céntrica já tratada na análise aprofundada da situação na Rússia – é a causa principal deste atraso, que colocou os Estados Unidos numa posição mais oculta, e por isso, menos previsível.

Na análise de Ron Huebert, publicada em 2009, a descrição desta desavantagem aparece ainda mais crítica. Ele observa com cinismo que a visão norte-americana do Alasca tende a focar-se exclusivamente nas reservas de hidrocarbonetos – existentes e estimadas – considerando-o um amplo deserto para ser usado, apenas restando estudar e decidir sobre o que lhe fazer ao longo dos anos.144

143 Borgerson, Scott, excerto de: Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

144 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372 – citação literal

47 Contudo, sendo os Estados Unidos um estado líder mundial, pode aproveitar desta posição privilegiada nos equilibrios geopolíticos, também na questão Ártica, para recuperar parcialmente este atraso e impor as suas condições para assegurar o efetivo cumprimento da propria estratégia em relação a isto.

Emblemático para percebermos o gap temporal em que os Estados Unidos viram tratar desta questão após as outras entidades já terem trabalhado longamente para deliniar um mapa ideal da inteira situação no Ártico é considerar quando se deu efetivamente a primeira intervenção política relativa à temática em termos de estratégia – e não só de proteção militar.

O Presidente George W. Bush foi de facto o primeiro presidente dos Estados Unidos que deu substância a uma ideia política relativamente ao Ártico, quando em 9 de Janeiro 2009 verteu em duas Diretivas Presidenciais, a NSPD-66 e a HSPD-25, que dão corpo à primeira guia embrional sobre o comportamento da nação americana face ao Ártico, conhecida como Presidencial Directive on Arctic Region Policy145,

ou PDARP.

A astúcia deste documento está no fato de ser o primeiro caso na história americana em que ao Alasca é conferido caráter nacional, e que, só hipoteticamente, inclui a região Ártica nas regiões identificativas de uma identidade americana multipolar. É possível analizar as linhas de raciocínio do governo americano relativamente à questão considerando um após o outro os pontos de interesse manifestados no documento, primeiro dos quais – e não podia ser diferentemente – é a defesa e a segurança da região Ártica.146

Ainda mais urgente do que extrair os hidrocarbonetos, de facto, está o evitar que a desolada extensão de permafrost desde sempre considerada uma deriva da civilização se transforme num verdadeiro frente, uma janela para um acesso seguro e

145 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

48 eficaz ao coração da nação americana, vista também a tendência ao degelo já em análise na altura.147

Paralelamente à necessidade de fechar o acesso ártico a possíveis ataques por parte da entidade em contraposição, torna-se central na línha política americana abrir o acesso marítimo ao comércio – vista a abertura das duas novas rotas comerciais – em condições de segurança e que convenham sob um ponto de vista económico, então, sem intercessões políticas de estados soberanos.148

Os mares da região, diz o documento, têm de estar em condição de liberdade e segurança. Impor o liberalismo numa região de interesse de estados quais a Rússia é um risco de consequências problemáticas sob um ponto de vista diplomático, mas permanece uma prioridade na visão comercial e de exploração intensiva que os Estados Unidos propõem e contrapõem à nacionalização do Ártico sugerida pelos russos – os quais, relembramos, consideram-se um estado Ártico e cuidam muito mais de questões de soberania.

À pulsão à exploração intensiva os Estados Unidos, que historicamente promovem uma ética muito pessoal em questões ecológicas, contrapõem um outro ponto de interesse no documento, o qual declara que entre as prioridades nacionais aparece a proteção do ambiente e a conservação dos recursos biológicos no Ártico.149 Isto traduz-se na proposta de controlar a intensificação destas operações estrativas, mas não evita que o fundal da zona de pertinência americana seja disfrutado para o enriquecimento económico do governo central. Isto, pelo menos, é o que se realiza nesta altura após não só ter posto estas condições, mas também ter aprovado algumas linhas comportamentais avançadas pela Grã Bretanha, estado observador no Arctic Council e entidade esterna mais próxima ao A-5 e às suas políticas ambientais.

147 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

148 Ibidem

49 Como garantia de controle face à ecologia da região, George W. Bush adiciona um ulterior pilar atitudinal, assegurando a sustentabilidade ambiental para a gestão dos recursos naturais e o desenvolvimento económico da região.150

Tendo já em conta que no inteiro documento não se encontram medidas para a conjunção do apéndice ártico do Alasca ao território americano continental – como pelo contrário resulta dos propósitos da política russa em relação ao quadrilátero menos densamente populado que referimos no capítulo anterior - , os Estados Unidos têm consciência da própria posição privilegiada relativamente às relações com os outros estados do A-5, sempre em contraposição com o isolamento ideológico e político em que se encontra a Federação Russa.

Isto resulta muito evidente na tendência – expressada explicitamente no documento – a procurar cooperação, e não liderança, no âmbito das instituções do Ártico.151

Para perceber melhor este raciocínio é suficiente considerar como os Estados Unidos da América já se encontrariam numa posição de liderança internacional sem vir a precisar de reivindicações ou de provocações, quais as promovidas pelo governo russo, e portanto podem optar por uma política de cooperação sem medo de perder algum privilégio em relação às necessidades politico-económicas que o Estado tem. Onde pelo contrário o governo Bush expressa a necessidade de alcançar uma posição de liderança, e isto também revela-se no documento em consideração, é em termos de pesquisa científica.152 Como já tratado, as explorações de caráter científico – ou pseudo-científico vistos os interesses económicos atrás de várias iniciativas lideradas pelo governo Americano nos anos noventa – foram comuns no século passado. A excelência académica americana revela um cuidado enorme em relação aos possíveis descubrimentos científicos na zona, e por isso põe a condição de liderança como uma caraterística essencial para o desenvolvimento de uma política americana na inteira questão Ártica.

150 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

151 Ibidem

50 Entre os pontos promovidos pelo Presidente surge também uma referência aos povos do Alasca, legalmente cidadãos americanos, representados no Parlamento em qualidade de Estado, mas muitas vezes ignorados em comparação com outras questões desde sempre mais cruciais para a superpotência norte-americana. O documento, de facto, declara ser uma prioridade envolver as comunidades indígenas nas decisões que se afetam.153

Infelizmente, tem que ser considerado como até agora a influência destas povoações permaneça relativa, em comparação com os interesses do governo central e com o seu poder decisional. Porém, por outro lado, são mesmo os povos do Alasca os principais protagonistas dos efeitos destas mudanças climáticas e orográficas, acusando uma variação sensível da temperatura, com consequências radicais na paisagem do biótopo polar e uma sucessão de migrações para as regiões do sul, com a desmontagem de aldeias e de postações de pesca a vantagem de um mais aberto acesso às rotas marítimas, disfrutadas pelo governo central.154

Uma medida tomada pelo governo Bush e explicitada no Presidencial Directive on Arctic Region Policy é a organização de uma defensa antimíssil e de um sistema de aviso prévio, com o estabelecimento de operações de segurança marítima e presença naval, finalizada à prevenção de ataques de natureza terrorística ou simplesmente bélica que poriam em condição de vulnerabilidade o complexo territorial estadounidense.155

Sempre finalizada à proteção – no caso dos interesses económicos do estado americano – é a medida incluida no PDARP pela qual, segundo a visão americana das passagens a nordeste e a noroeste, os Estados Unidos consideram-nos como Estreitos Internacionais onde é obrigatória a aplicação do regime de passagem em trânsito, com a preservação dos direitos nacionais em termos de sobrevoo e

153 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

154 Ibidem

51 navegação interior, garantindo liberdade e livre utilizo dos mares de todo o mundo.156

Existem outros três pontos no PDARP que explicam perfeitamente o orientamento executivo dos Estados Unidos face à questão Ártica, primeiro dos quais é o que pretende projetar o poder marítimo para toda a região, com a construção de infrastruturas em posições estratégicas que facilitem a livre navegação e o comércio de área.157 Aqui também ao nacionalismo russo contrapõe-se o liberalismo americano: os Estados Unidos, relembramos, dispõem de uma porção relativamente reduzida de calota sobre a qual pode reivindicar soberania. Consequentemente, não é prioridade dos americanos o sistema de nacionalizações territoriais sobre as porções de calota ártica não ocupadas por alguma entidade. É muito mais conveniente promover uma liberalização da área, liberalizando assim também todas as operações comerciais que podem ser disfrutadas pelas potências americanas em termos de livre circulação dos recursos extraidos e livre comunicação entre os Estados Unidos continentais e o apéndice ártico.158

Seguidamente, os Estados Unidos tendem a mão ao Arctic Council – incluindo a NATO no documento – promovendo e incentivando a pacífica resolução dos conflitos na região polar, privilegiando, de novo, a cooperação com as corporações internacionais formadas para tratar da questão.159 Os EUA desencorajam as iniciativas de caráter nacional em vantagem de decisões globais das comissões para o Ártico. Aqui também não é possível esconder uma certa veleidade tendenciosa, mas limitamonos ao âmbito das conjeturas.

Finalmente, um último ponto de interesse para a compreensão da estratégia e da ideologia que os Estados Unidos põem face à questão Ártica é o que promove a

156 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

157 Ibidem, p. 373

158 Ibidem, p. 372

52 investigação científica incentivando relações com entidades académicas de todo o A- 5 – e não só – e outros laboratórios de pesquisa.160

Em conclusão, a visão artico-periférica dos Estados Unidos não pretende esnobar a dimensão polar – e a extensão polar da propria nação – em termos de exploração económico e de aparências internacionais para manter uma dimensão sobre-nacional na calota, porém, tem dificuldades em incluir o Alasca na identificação nacional, deixando às necessidades dos povos indígenos o fardo de enfrentar as consequências ambientais na área e centralizando em maneira maximal o proveito.

Entidades tão diferentes como Estados Unidos e Federação Russa, portanto, enfrentam-se e comparam-se a partir destas considerações. Duas realidades contrapostas encontram-se atores do cenário internacional, fortes do prestígio geopolítico adquirido em âmbitos diferentes, e orientados – os dois – a impor a própria visão no processo decisional que irá mudar os equilíbrios da calota ártica nas próximas décadas.

Por um lado um estado Ártico, artico-céntrico, focado na liderança geopolítica e militar sobre a calota polar, que considera a região setentrional como um órgão vital necessário para sustentamento nacional e, portanto, promovendo políticas de nacionalização maciça das áreas oceánicas disputadas, consideradas como um justo prolongamento da região polar de influência russa.

Pelo outro lado um estado da região temperada, com um apéndice ártico entendido como a nova Eldorado das indústrias extrativas e das rotas comerciais, que, apesar de dever ser defendido porque exposto excessivamente à área costeira Russa, é considerado factualmente uma colónia para o exploração intensivo dos recursos, e que tem que ficar livre de imposições burocráticas nacionais, mantendo-se livre, internacional e gerido pela cooperação dos estados envolvidos, sem lideranças explícita, mas com a implícita posição privilegiada dos Estados Unidos.

160 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.372

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