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Russia e EUA: atitudes antitéticas em comparação 2.1 A visão articocéntrica da Rússia

2.1.2 O articocentrismo Russo

Como visto, ao longo dos anos o cuidado que o governo federal da Rússia teve para com a proteção da região ártica foi continuo e razoável. A ideia que as operações de política esterna, sejam ações de caráter bélico, sejam só definições de equilíbrios diplomáticos, tenham um apéndice setentrional possivelmente menos evidente mas igualmente estratégico e de importância relativamente ao crescimento acompanhou todo o caminho de sucessão dos vários chefes de Estado, com medidas calibradas pela situação socio-económica que o País passou, mas sem que a questão perdesse importância.

Com certeza, as medidas e as ações projetadas para o cuidado – ou melhor, a consideração – da questão Ártica pelo governo central não se limitam a intervenções na militarização de área. Uma vez que a maneira mais eficaz para defender a própria soberania na zona encontra-se dependente da ação militar, e tudo o que está atrás da evidente maciça presença do exército tem risco de permanecer num cluster filosófico que poderia ser subestimado em investigações como esta.

Pelo contrário, a filosofia articocéntrica que a Federação Russa mostra ter representa a raíz ideológica que não só acaba por definir as ações políticas internas em termos de segurança da região, mas também traça importantes coordenadas sobre as relações esternas que o País tem com as outras entidades de zona, sendo o Ártico considerado o núcleo natural da nação Russa, a qual reconhece-se na natureza deste território, no

34 gelo, nas temperaturas rígidas, nos povos varangianos progenitores genéticos do povo Russo, e em muito mais.

A natureza continental da Federação Russa prevê uma percentagem biotópica ártica e sub-polar que supera o 50% do território, justificando a identificação que o povo tem com as povoações da calota, considerando-se uma propagação em zonas mais temperadas de um povo que permanece polar, e que cuida da sua região mais distintiva como fosse uma região mais central.

A primeira demonstração, na história contemporária, de interesse que a entidade Russa teve para a sua região mais setentrional expressou-se em ocasião da Revolução Bolchevique de 1917, em que não só os russos ganharam consciência da utilidade de uma região tão conectada com outras partes do planeta que pareciam remotas e fornecida de um quantitativo de recursos – especialmente hidrocarbonetos, como visto – que teria revolucionado a economia do País, especialmente naquela altura em que a mudança levada pela revolução podia ter semeado na povoação um sentido de dúvida e uma falta de segurança para o futuro, mas também começaram a entender o Ártico como uma região identificativa, que define o povo russo e que tem que ser defendida, assim como têm que ser defendidas as reivindicações relativas a este assunto, e como fica pressuposto que esta região é uma fonte adicional de força e prestígio para a Federação.103

O teorético Igor Zonn, no ano 2008, considerou como a relevância da região Ártica para o povo russo em termos de identidade e prestígio ainda aumentou após o colapse da União Soviética. O que Moscovo experimentou, de facto, foi uma forte redução do tamanho da nação mesma, que se bem permanecesse ainda a mais estendida do globo, perdia uma percentagem de território importante, especialmente nas regiões da Ásia central.104

Esta implosão política foi acompanhada pelos movimentos de separatismo no eixo leste-oeste, e resultaram na secessão dos estados bálticos e centro-meridionais.

103 Baev, 2007, excerto de: Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.366

104 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.376

35 Consequentemente, o baricentro do colosso continental acabou por subir em latitude, aproximando-se a aquela região ainda intacta do território nacional, ou seja, a área costeira Ártica e o território sub-polar.

Daqui o novo governo Russo achou consistente uma política de desenvolvimento económico de longo prazo cujos efeitos ainda são visíveis na região polar.105

Caitlyn Antrim, no ano 2010, propõe-nos uma re-elaboração deste conceito, analizando como na segunda década do novo milénio o País experimentaria um processo de mudança gradual mas revolucionário, em que o que historicamente foi sempre um enorme colosso continental trasformaria-se num estado marítimo, conferindo maior consideração à efetivamente enorme linha costeira setentrional e do nordeste, e abandonando a mentalidade bipolar – em termos de costas – que via o País como um enorme maciço continental entre dois acessos marítimos puntiformes, que seriam São Petersburgo na parte ocidental, e o complesso Сахалин - Владивосток106 na costa oriental107.

Antrim teoriza como o litoral norte da Eurásia – constituido quase exclusivamente por território russo – irá-se transformar numa área central de colaboração, que irá permitir à Rússia uma comunicação e uma cooperação consistente com os outros parceiros da realidade ártica, em termos de equilibrio militar, resposta a emergências, segurança marítima, vigilância, investigação e definição das políticas regionais no respeito dos interesses comuns.108

Para valorizar estas teorias que investigam sobre as raízes desta mudança artico- céntrica é possível considerar uma intervenção do Presidente federal Путин 109 que, relativamente ao trabalho que seria necessário realizar para o desenvolvimento da

105 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.376

106 Russo – “Sakhalin – Vladivostok”

107 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.376

108 Ibidem pp. 376/377

36 região Ártica, declara em ocasião do encontro da Sociedade de Geografia da Rússia em 2009:

“Quando dizemos grande, um grande País, um grande Estado, certamente o tamanho conta... quando não há tamanho, não há influência, não há significado”110

E através desta declaração inclui – e centraliza – o papel da enorme porção setentrional que se via negligenciada demasiadas vezes, e que teria que ganhar uma posição mais nuclear não só nas intervenções políticas de tipo top-bottom, mas também na consideração popular com respeito à concepção global da nação russa. Um ano antes, o Conselho de Segurança da Federação Russa designou os pontos principais que definem a estratégia política do País para a questão Ártica internacional. Entre os pontos mais relevantes, é possível isolar quatro preceitos essenciais para compreendermos a visão artico-céntrica que o País adquire de ano em ano.

O primeiro ponto é que a estratégia Ártica do País tem como objetivo o uso da região como base estratégica de recursos para o incremento do desenvolvimento socioeconómico da Federação. Este ponto considera o Ártico como a bacia de recursos incontáveis da qual foi tratado o primeiro capítulo. A economia da Rússia, em qualidade de país ártico, não pode prescindir dos benefícios da extração destes recursos, parte integrante do sistema económico federal. O Ártico, porém, não é visto como uma área colonial de exploração intensiva, mas como uma região central de interesse geopolítico, cuja riqueza é parte integrante do core da economia russa, a qual se define ártica e dependente do ártico.111

O segundo ponto em questão é a preservação do Ártico como zona de paz e cooperação. Neste sentido o papel das assinaturas obtidas pelo A-5 da difícil entidade diplomática russa é central. O UNCLOS, assim como a declaração de Ilulissat, é parte daqueles tentativos que permitem um equilíbrio entre as provocações arbitrárias e a projeção diplomática que o governo federal mostra expressar. E este equilíbrio

110 Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.376

111 Основый гозударственной политики Российской Федерации в Арктике на период до 2020 года и дальнейшую перспективу, 2008. Tradução de Antrim, 2010.

37 tem a função de manter uma soberania segura sobre uma porção enorme de calota Ártica sem que os outros estados parceiros achem necessária uma intervenção de tipo bélico. A paz e a cooperação são pilares vitais para o desenvolvimento da região Ártica, enquanto a militarização da zona garante uma defensa sólida e consistente.112 Às questões políticas e económicas acosta-se uma outra temática muito central nas declarações emitidas pelas entidades do A-5, porém, assunto pouco tratado pelas autoridades russas: a questão ecológica. Ainda que entidades externas ao A-5, como por exemplo o Reino Unido, tenham expressado uma certa intolerância face às medidas de extração empreendidas pela Federação Russa, esta põe entre os pilares da estratégia para o Ártico a conservação dos ecossistemas originais da calota polar, promovendo medidas de controle no processo extrativo e propondo investimentos para o cuidado da flora e da fáuna da região. Novamente, o Ártico não é visto como colónia, mas como região central de identificação coletiva, e o cuidado pelas condições naturais mantém-se alto.113

Finalmente, o último ponto de partida para orientar a investigação sobre a filosofia artico-céntrica da Federação Russa abrange a temática das rotas navais e da comunicação entre pontos periféricos da região, disfrutando a proximidade geográfica e a continuidade geológica, apesar da rigidez climática e do sistema de comunicação ainda não suficientemente desenvolvido.

Este ponto prevê a integração da região Ártica na rede de transportes nacional e na rede nacional de comunicações. A falta de grandes centros urbanos na faixa setentrional da Federação Russa – com a exeção do porto de Мурманск114- contribuiu a um sentido de negligência em termos de inclusão da região no sistema de comunicação russo, o qual extende-se em duas direções, ou seja, num eixo norte- sul que parte precisamente de Мурманск115e, passando por Moscovo, chega à região

112 Основый гозударственной политики Российской Федерации в Арктике на период до 2020 года и дальнейшую перспективу, 2008. Tradução de Antrim, 2010. 113 Ibidem 114 Russo: “Murmansk” 115 Russo: “Murmansk”

38 meridional do Дагестан116com o grande centro urbano de Макачкала117, e daí continua num segundo eixo oeste-leste que, passando pelas regiões meridionais da Sibéria e da Yakútia chega ao oceano Pacífico, com ponto terminal na cidade de Владивосток118.

Removendo estes dois eixos do mapa da Rússia, é possível identificar um quadrilátero de enorme extensão que compreende regiões árticas propriamente definidas, ou seja, a faixa costeira que parte da peninsula de Kола119 para chegar à outra peninsula de Чукотка120, e uma região interna da Sibéria e da República de Sakha-Yakútia que vive em condições climáticas extremas, até piores das costeiras, com a cidade de Якутск121 - definida a cidade mais fria do planeta - ponto central. Estas zonas vivem uma condição de isolamento comunicativo importante. São centros esporádicos, pouco habitados e de difícil alcance. Daqui revela-se a importância do quarto pilar da estratégia Russa para a década que está a terminar: uma inclusão desta enorme periferia mudaria a natureza do País, que finalmente acabaria de se sentir nação ártica só por história e tradição, e que iniciaria a considerar as regiões árticas como mais acessíveis, e, consequentemente, mais disfrutáveis.

O que está por trás destas declarações diplomaticamente irrepreensíveis surge em superfície com as investigações de Ariel Cohen, que em 2011 acentua a natureza da geopolítica russa tradicional lembrando que o objetivo principal do estado eurasiático permanece o de fazer da Rússia a potência líder do Ártico.122

116 Russo: “Dagestan” 117 Russo: “Makačkala” 118 Russo: “Vladivostok” 119 Russo: “Kola” 120 Russo: “Čukotka” 121 Russo: “Jakutsk”

122 Cohen, Ariel, 2011, excerto de: Rodrigues Leal, João Luís; Geopolítica do Ártico no Século XXI, Junho de 2014, Letras Itinerantes, p.377

39 Permanece, como sempre, este sentido de ambiguidade que ocorre em qualquer análise pretenda-se fazer sobre o comportamento da nação russa face às questões de equilíbrio internacional. É possível ver uma potência que tende à supremacia, mas que em ocasiões regulares parece cuidar da própria segurança evitando choques bélicos inúteis, e cedendo a pedidos de aproximação com as exigências dos outros países, muitas vezes surpreendendo estas mesmas entidades geopolíticas.

Blank, em 2008, oferece-nos uma definição da Rússia que pode ser posta como resumo da inteira – fictícia – esquizofrenia comportamental do governo russo em questões de política esterna.

Ele afirma que:

A Rússia vê-se a si mesma (ou em pelo menos professa ver-se) como um ator soberano e totalmente independente da política mundial, que deve ser considerado como uma superpotência igual à norte-americana, sendo capaz de prosseguir as suas políticas mantendo-se livre de constrangimentos nas matérias que mais lhe interessam.123

A Rússia mantém-se independente, e se por um lado tenta acrescer as relações com as outras potências globais, principalmente os Estados Unidos, cuja política ártica é diametralmente oposta, pelo outro entra em competição para uma liderança considerada essencial pelos Russos, e uma ameaça pelos outros paises da região.