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3. Micro-Fundações da Cultura

3.2. Acção

3.2.1 A Estrutura da Acção

Nos termos mais básicos e simples, uma acção é composta por um agente, uma sequência temporal na qual o agente muda o seu estado de coisas e muda o estado de coisas no mundo, uma intenção télica (algo que o indivíduo quer obter com a acção), e em geral, uma justificação para a intenção (G. Wilson & Shpall, 2016) – que segundo PF1 deverá ser uma interpretação como as que analisámos previamente.

Saltamos aqui várias problemáticas, nomeadamente a distinção entre acção e pensamento (Hacker, 2005), que poderiam por em risco a simplicidade desta descrição; mas como notam Wilson e Shpall (2016), os problemas que este modelo AIJ (action,

intention, judgement) traz são vários: para começar, põe-se a questão de como é que é

possível os agentes saberem o que estão a fazer e como. Esta é uma questão com a qual Anscombe (2000) se debate em particular, chegando à noção de “conhecimento sem observação”. Presumimos que os indivíduos tenham alguma forma de conhecer a sua acção, que não é empírica (para uma discussão destes paradoxos cf. Paul (2009); em termos mais gerais, Sosa (2015)). Para estas acções assim o serem, têm de haver algumas acções que não o são – estas são as chamadas acções involuntárias – acções nas quais falta o conhecimento da própria acção, a intenção, e também a justificação.

AC14: Os indivíduos conseguem produzir descrições baseadas na questão “Porquê” das acções voluntárias que executam.

Ao mesmo tempo, é necessário que os agentes tenham uma forma de controlo sobre as suas acções. Os debates aqui interessam-nos em grande medida pela distinção entre tentar uma acção e executar essa acção, no sentido em que, quando essa tentativa

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acontece, estamos a presumir que existe um conteúdo mental, um desejo, que motiva o indivíduo de alguma maneira, ou se, hipoteticamente, tal conteúdo mental é apenas uma ilusão mecanicista. O importante aqui é admitir que é necessário que os indivíduos direcionem a sua acção para algum elemento – mesmo que essa seja uma directividade indirecta, ou automática (Lumer, 2017) – para que possa dizer-se que a acção tem um fundo causal nestes. Quando referimos antes o automatismo de significação de um martelo de que Heidegger falava, esse automatismo expressava-se também na transformação dos objectos em equipamento. Para além destes casos, existem uma multiplicidade de potenciais casos nos quais os tipos de acções não serão do mesmo estilo que as acções controladas a partir de uma tentativa de execução, dado que aquilo que é considerado automatismo – algo que Lumer discute em pormenor, dissecando os vários tipos de habitualidade, mímica, implementação distal, e potencialmente, auto- motivação induzida semanticamente – cujas consequências são importantes para podermos considerar agentes de forma minimamente realista em contextos onde a repetição de acções e acções implícitas acontecem frequentemente (tal como em contextos altamente “ritualizados” – sendo a circulação na cidade um exemplo primário).

AC15: Os agentes possuem controlo directo sobre as suas acções apenas quando não existe um schema corporal operacional que automatize o processo. Acções automáticas – comportamento automático, acções sujeitas a priming, acções condicionadas, entre outros mecanismos de regulação – podem ocorrer sem existir controlo directo, relegado por aprendizagem para processos repetitivos.

A noção explícita de intenção é porventura a noção mais interessante que se associa à acção, por dela dependerem tantas discussões. O racional é simples: um agente tem uma intenção com uma acção quando é seu desejo atingir um determinado estado de coisas, e existe alguma forma de conhecimento sobre a relação entre a intenção e o estado de coisas desejado. Elizabeth Anscombe (2000) e Donald Davidson (1963) abriram a discussão sobre a intenção, com a visão de Anscombe sendo particularmente esclarecedora: a intenção de uma acção para um tipo de agente é o tipo de resposta que esse agente dá à pergunta “Porquê?”. Isto dá-se porque, como a autora nota na sua monografia, o complexo de acções e intenções nem sempre se encontra: é possível que uma pessoa, por efeito da sua acção, cause algo fora da sua

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intenção, como um homem que ao bombear água para uma casa implicitamente bombeia veneno é um exemplo da primeira?

Um factor que será curiosamente próximo neste ponto, e que une as teorias filosóficas da acção ao tratamento que estas receberam na economia por autores como Von Mises, tem que ver com a estrutura de motivos que orientam a acção. Von Mises (1998) colocou esta distinção separando a psicologia e a economia, chamando ao domínio da primeira “Timologia” e da segunda “Praxeologia” – a primeira preocupando- se com as condicionantes que levam um indivíduo a selecionar uma determinada acção, nomeadamente aquilo que determina para si as estruturas de utilidade a elas associadas, e a segunda com a estrutura que orienta a acção, as “leis humanas” que guiam a que um indivíduo tome uma ou outra acção. A distinção aparece para distinguir dois níveis de análise: as razões cognitivas que estão na base de um homem escolher vinho em vez de água é inútil economicamente, antes interessará que estes o façam porque é aquilo a que atribuem mais utilidade. Mais concretamente, poderíamos dizer que a timologia von miseana se ocupa das interpretações, e de mapear os aspectos semióticos subjecentes à acção, enquanto a praxeologia se ocupa das intenções dessas acções, os objectivos gerais. Como podemos ver, no entanto, perceber timologicamente por que se atribui certa utilidade a uma garrafa de vinho – por exemplo – não é uma questão economicamente trivial, dado que podemos assumir que esse processo pode ser mobilizado para aumentar a utilidade atribuída em geral ao objecto8.

A praxeologia surge assim como o limite de intenção dos agentes – os princípios de acção que define são uma forma de última resposta ao “Porquê” de Anscombe, e, mais concretamente, no sentido de qual o objectivo que se quer executar com essa acção. Naturalmente, por esta razão, deve ser possível agregar intenções pela sua proximidade, tomando a convergência de respostas numa cadeia sequencial de “Porquês”, e associando as intenções originais em algo como um dendrograma.

AC16: As intenções são crenças dos indivíduos que sustentam e motivam a sua acção, na óptica de uma acção que devem desempenhar no momento e um resultado eficaz que pretendem que se desencadeie.

8 De resto, defenderemos em baixo que essa é a tese associada à ideia de capitalismo cognitivo-cultural,

60 AC17: As intenções podem ser ordenadas taxonomicamente em termos da sua proximidade: a intenção de comprar um carro e de comprar uma moto são mais próximas do que a intenção de comprar pão, ainda que estas sejam todas mais próximas do que a intenção de se atirar para a frente de um comboio para evitar a morte de uma família. A agregação de intenções gera, no limite, princípios de acção (praxeologia)

Um último domínio que merece a nossa consideração antes dos princípios de acção tem que ver com a deliberação e a justificação da acção. Em primeiro lugar, convirá repegar na distinção que fizemos na anterior secção acerca das lógicas de interpretação – a distinção entre predicação, argumentação e qualificação – para notarmos três modelos hipotéticos de agente: um agente perfeitamente deliberativo, um agente motivado estritamente por asserções de estados de coisas, e agentes que associam determinadas qualidades e com isso tomam formas de acção – sendo que estas poderiam ser refraseadas, incluindo acção, da seguinte forma:

AHB25: O julgamento dos indivíduos acerca da acção inclui intenções obtidas significativamente, no mínimo, através de argumentação

AHB26: O julgamento dos indivíduos acerca da acção inclui intenções obtidas significativamente, no mínimo, através de predicação

AHB27: O julgamento dos indivíduos acerca da acção inclui intenções obtidas significativamente, no mínimo, através de qualificação