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3. Micro-Fundações da Cultura

3.1. Cognição e Significação

3.1.6 Da Significação à Cognição

Se até aqui tivemos um sistema perceptivo, com um corpo que permite estruturar a cognição que leva a que se formem esses significados, nas últimas secções começámos a requerer um sistema cognitivo concreto que estruture a forma de pensamento: “It is

the most basic phenomenon of cognition, and consequently the most fundamental problem of cognitive science” (Cohen & Lefebvre, 2005, p. 2). Por essa razão, convirá

darmos uma breve olhadela para alguns aspectos da cognição que podem ser relevantes – de novo enfatizamos a imensidão de tópicos (englobando toda uma ciência interdisciplinar), dos quais levantaremos apenas aqueles que mais directamente nos interessam.

6 Esta alusão não é neutra; a distinção entre estas formas de actualização do momento semiótico

aproxima-se da discussão de Deleuze (Akcay & Roughgarden, 2011) sobre a síntese passiva dos elementos anteriores, que mobiliza o passado num sujeito passivo, e a síntese activa causada pela memória e pela reflexão. Em paralelo, a semiose repetida surge como o hábito que se impõe, e a semiose re-afirmada aparece como uma forma de reflexão e activação de um momento de semiose original – independentemente de não se conseguir dizer onde está.

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Na descrição anterior fizemos alusão à questão de algumas formas de significação serem redutíveis a formas proposicionais – ou seja, poderem constatar estados do mundo – quando os seus intepretantes são o que Peirce chamava dicentes. Associações de termos singulares a categorias – da forma “A palavra ‘banana’ denota a entidade que produz um estímulo que eu associo a ‘banana’” – formam outra tal proposição. Portanto, – e independentemente de como analisamos os valores de verdade de tais proposições, – podemos dizer:

AC9: Os indivíduos têm conhecimento de coisas – atribuem valores de verdade às coisas de forma a representar o estado do mundo.

Aqui entramos fundo no território da epistemologia, os campos da justificação e das teorias de verdade. Não nos podendo ocupar demais com tais questões, interessa- nos antes perceber que o valor de verdade que os indivíduos atribuem a uma determinada proposição não deverá ser crisp (só verdade ou falsidade): existem várias proposições, nomeadamente as afirmações da ciência, onde um valor de verdade perfeitamente delineado seria uma exigência demasiado forte. É perfeitamente possível que um indivíduo não tenha inteira certeza de uma proposição – algo que, apesar dos desenvolvimentos que lhe sucederam, podemos encontrar desde logo no trabalho de Frank Ramsey, onde este propõe um conjunto de axiomas e teoremas para resolver o problema da crença probabilística, e como atribuir valores de verdade a tais situações (Ramsey, 1931). Na sua visão, o grau parcial de uma crença é visto como a extensão face à qual estamos dispostos a agir perante tal crença; quanto estaríamos dispostos a apostar (no caso em questão, partindo de uma definição em função de preferência e equivalência de opções).

AC10: Os indivíduos podem ter crenças parciais em proposições.

AHB15: O cálculo das crenças parciais pode ser feito por uma avaliação das preferências de indivíduos quanto a diferentes estados do mundo consoante a verdade ou falsidade de proposições (Ramsey, 1931, p. 180).

Ligando as crenças às acções, podemos, desde logo, determinar a nível psicológico uma preferência como uma função de utilidade sobre um curso de acção. Nesse sentido, a existência de crenças parciais não surge como surpreendente, mas as suas implicações em termos de modelação de agentes são bastante grandes: torna-se de súbito possível

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admitir que os agentes podem não estar inteiramente certos das suas crenças, podem (e costumam) não ter informação perfeita, ou por outras razões não acreditarem integralmente no que defendem, algo que na economia foi por vezes controverso como um pressuposto modelativo (Köhn, 2017), – apesar de ser uma questão psicologicamente trivial. No restante deste trabalho, devemos manter em mente, que, quando falamos de informação, o que nos referenciamos são crenças que os indivíduos têm acerca da realidade, que são probabilísticas; o axioma de informação perfeita da teoria de acção racional torna-se pois uma maximização dessa probabilidade a 1 em todos os casos7.

AHB16: De um conjunto de escolhas possíveis (acções, apostas, crenças), existe completude de preferência entre qualquer par de elementos:

∀(𝐴, 𝐵)(𝐴 ≽ 𝐵 𝐵 ≽ 𝐴) AHB17: Existe transitividade na preferência:

(𝐴 ≽ 𝐵 ˄ 𝐵 ≽ 𝐶) → 𝐴 ≽ 𝐶

AHB18: Independência de Alternativas Irrelevantes – se num conjunto de potenciais elementos a desencadear, A for preferido a B, a introdução de C não deve alterar a ordem de preferências;

AHB19: Continuidade de preferências – sendo p uma probabilidade que se associa a um elemento

(𝐴 ≽ 𝐵 ≽ 𝐶) → ∃𝑝(𝐵 ≣ 𝑝𝐴 + (1 − 𝑝)𝐶)

Estes axiomas (originalmente formulados por Von Neumann e Morgenstern) formam a base de muitas das pressuposições da teoria neoclássica da economia, e estão na base de muitas das pressuposições de acções “racionais”. Pode ser conveniente assim formular:

AXH1: Teoria de Utilidade Esperada ├AHB16 ˄ AHB17 ˄ AHB18 ˄ AHB19

A questão de como o conhecimento é armazenado é também de bastante interesse: a ideia de dissonância cognitiva, classicamente apresentada por Festinger

7 A ideia de que a informação é aproximada por probabilidades vai, de resto, ao encontro da definição

de Shannon, da informação como o conhecimento de um evento probabilístico, medido por um índice de incerteza – a entropia de Shannon (1934) – a que voltaremos.

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(1962), notava que a presença de crenças que chocam em termos de valores de verdade, ou grau de verdade, levam os indivíduos a um estado de desconforto mental que estes necessitam de diminuir estrategicamente, especialmente esforçando-se para manter a ideia que tinham originalmente. A existência de dissonância cognitiva é particularmente interessante enquanto pressuposição para pensar sistemas culturais, porque admitir essa convenção implica abrir a porta para que determinados padrões e acções, bem como reproduções sociais, possam surjir precisamente de buscas de manutenção cognitiva – por exemplo, perceber que quando existem interacções entre indivíduos na óptica de aprendizagem social, se os indivíduos tiverem um apegamento a uma dada crença, a transmissão, mesmo que beneficial para ambos, será substancialmente mais difícil.

AC11: Quando os indivíduos mantêm crenças opostas, ou que não podem harmonicamente ser ambas verdade, isso causa-lhes desconforto cognitivo.

AC12: ├AC11

A minimização do desconforto cognitivo tende a ser feita desconsiderando uma das crenças, minimizando o seu impacto, questionando as suas bases, entre outros métodos

Para além da questão de como os indivíduos armazenam o conhecimento, importa perceber de que forma eles processam o conhecimento de forma a chegar a raciocínios. A forma como os indivíduos processam a informação implica, como em AC3, a ideia de que eles partem de um conjunto de estímulos, significam-nos, e estabelecem inferências que geram proposições, e dessas proposições retiram mais proposições, e assim por diante. A ideia – que exploraremos no seu contraponto em seguida – é que os indivíduos seriam “racionais”, se conseguirem cumprir ├AHB4, ou seja, conseguirem sempre justificar argumentativamente as suas acções, crenças, na resolução de um dado problema. Mas Simon (1957) notou os limites que tal trazia: no lugar de decisões óptimas, os indivíduos optam em geral por resolver os seus problemas com soluções satisfatórias; a utilização de heurística, e o relaxamento dos pressupostos da teoria de utilidade esperada levou a muitas destas ideias, nomeadamente de que existe um limite na carga cognitiva que os indivíduos conseguem suportar:

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A ideia de heurística – no que toca à economia, e respeitando à ideia de racionalidade limitada – começa nos anos 1950 e 1960 por ser uma crítica à ideia cognitiva subjacente a AXH1. Focando-se na psicologia dos processos de decisão e cognição, Daniel Kahneman e Amos Tversky (Tversky & Kahneman, 1974) abrem a porta para o estudo psico-social das heurísticas propriamente ditas – mecanismos de raciocínio rápido, que procuram optimizar o custo de processamento dos indivíduos ao mesmo tempo que encontram óptimos locais (de maneira análoga a algoritmos heurísticos na teoria de computação).

Os processos nomeados de ancoragem (o estabelecimento de determinados elementos como âncoras do processamento cognitivo), presença (a informação que está disponível é fundamentalmente mais utilizada do que aquela que não é utilizada há muito tempo), permitem compreender a forma como determinados processos são fixados e, na ausência de informação perfeita, os indivíduos tomam decisões localmente óptimas. As implicações disto para a cultura disto não são directamente intuitivas, mas rapidamente se pode compreender como elas se desenvolvem quando pensamos que na presença de determinados esforços de interpretação, a presença e a ancoragem podem servir como formas de incentivo “natural” à reprodução de determinados padrões de significação. Se o indivíduo já tem conhecimento de uma determinada categoria, ele irá tender a interpretar mais facilmente aquilo com que está familiarizado do que aquilo com que não está (apesar de exactamente o contrário poder ser relevante em outras situações – por exemplo, em baixo, quando falarmos de narratologia).

As heurísticas utilizadas pelos indivíduos são particularmente importantes quando consideramos cenários idealizados sob informação imperfeita – como são a maior parte dos cenários na vida real – e onde queremos analisar o desenvolvimento ao longo do tempo e em termos integrativos de determinadas lógicas de significação (bem como de acção e comunicação, às quais voltaremos). Por agora convirá notar que a discussão que antes tínhamos sobre a utilização de argumentação em termos de modelos encaixa, sem substituir integralmente, aquilo que aqui dizemos: se admitimos que os indivíduos qualifiquem em vez de argumentar conceptualmente, essa qualificação será, na verdade, um processo heurístico interno. As hipóteses que formulamos são portanto as seguintes:

56 AHN20: ├ ⌐AC13

Os indivíduos são cognitivamente perfeitos.

AHB21: Os indivíduos utilizam a heurística de ancoragem;

AHB22: Os indivíduos utilizam a heurística de presença (availability);

AHB23: Os indivíduos utilizam a heurística de simulação (Kahneman & Tversky, 1998) AHB24: Os indivíduos utilizam outras heurísticas cognitivas.

AC18: Os indivíduos podem segurar ideias contraditórias através de estratégias operacionais que mantém a sua consistência cognitiva.

A partir disto temos um agente capaz de percepcionar o mundo, categorizá-lo, significá-lo, ter representações epistémicas, e deliberar cognitivamente, com limites associados a tudo isso. Todos estes aspectos consistem na parte mais fundamental que o agente tem – a sua estrutura interna – cujas pressuposições, como os debates sobre a racionalidade mostram, levam a várias implicações. Mais ainda, o modelo de semiótica que aqui construimos – no qual os indivíduos interpretam os elementos com que se deparam, de várias maneiras – permite-nos começar a vislumbrar uma definição de cultura que seja interlaçável com a psicologia cognitiva em termos do seu funcionamento, e que seja articulável com os funcionamentos de outras ciências. Mas para termos agentes, precisamos, justamente, de acção. É nisso que nos ocuparemos nas próximas páginas.