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5. Perspectivas Teóricas sobre o Património

5.1. A Constituição do Sistema Patrimonial

5.1.2 O Património e os Grupos de Referência

Inerente precisamente à ideia que antes expusemos – do património como tendo uma natureza objectiva e criteriosa – aparece frequentemente a referência a uma história e um “legado” nacional considerado de relevância. A perspectiva que, nesse sentido, podemos logo de seguida identificar, até em termos intuitivos, é a que associa

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o património aos elementos que pertencem à história de um dado território ou de uma dada população de referência.

Presumamos a forma forte deste pressuposto para propósitos de uma discussão inicial: a valorização na categoria de património é contingente da valorização dos elementos numa narrativa histórica, todos os elementos mobilizados existem no sistema conceptual da história, e os acessos feitos a património são por interpretantes da história nacional. Uma consequência desta pressuposição é que o património é aquilo que deve ser preservado para permitir o acesso a essa categoria histórica. A questão aqui subjacente levar-nos-ia longe demais, mas podemos aflorá-la: devemos assumir que a categoria histórica é neutra, ou seja, que existe algo de essencial na categoria histórica, vastamente reconhecido, que faz com que os elementos historicamente valorizados (sejam eles objectos, narrativas, ou outros aspectos) o sejam naturalmente? Devemos, pois, ser constructivistas no património e essencialistas na história?

Apesar da visão de senso comum que podia inclinar-nos para uma resposta positiva (a história sendo vista, no fundo, como apenas história), o que encontramos generalizadamente tanto no campo dos estudos do património (Hewison, 1987; Lowenthal, 1985), como na historiografia de século XX (Carr, 2002; Collingwood, 1956; Foucault, 1969), é a ideia de que a história é importada para o presente, valorizada em função de um dado contexto concreto, selecionada pelo historiador e negociada numa dada existência socialmente determinada. O valor histórico de um evento não o é fundamentalmente, mas sim contingente a uma narrativa historiográfica que lhe conota importância, que, por seu turno, pode obedecer a uma estrutura social, de um dado sistema onde tal narrativa serve para reforçar uma dada significação ou acção.

Por outras palavras, a categoria histórica aparece-nos, sem grandes surpresas, como outro sistema socio-conceptual no qual os elementos podem cair. Os indivíduos predicam esses eventos como pertencendo ao sistema, e a sua valorização – a elaboração de uma escala de pertença para esses eventos – faz-se em ligação com outras categorias. O património serve, dessa maneira, como algo que permite aos indivíduos acederem aos elementos da história nacional, e, inversamente, aquilo que é visto como património é contingente de ter relação com a história nacional numa dada estrutura interpretativa.

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Com autores como Lowenthal (1985) ou Hewison (1987), essa estreita ligação aparece dada por contingências económicas ou sociais, como a perda das colónias na Grã-Bretanha, ou uma busca de maior turismo (‘enfeitando o passado’). Os objectos patrimoniais são tidos como representando para os indivíduos determinados elementos desse passado; a preservação dos elementos funda-se nessa base – sendo que tal acesso não funciona para todos os indivíduos, mas antes para subconjuntos específicos, como a classe média, na base da qual se fala de múltiplos “discursos” sobre o passado (estruturas de significação estabelecidas por grupos de indivíduos). Por essa razão, dizer que a categoria histórica determina o património poderá, na melhor das hipóteses, constituir um início de uma explicação; é necessário especificar de quem é a história que orienta e organiza o património, ou, mais concretamente, definir o aspecto ou a propriedade do sistema socio-conceptual.

Uma elaboração de supra, com termos ligeiramente diferentes pode ser encontrado através da ideia de memória colectiva: aquilo que é património é-o por representar uma memória colectiva de uma população ainda existente, e com tendência para ser localmente fundada. Tal conceito, definido originalmente por Maurice Halbwachs (1992), procurava capturar a ideia de que, em dados contextos (especialmente grupos), há conjuntos de elementos proposicionais, rituais, acções e práticas, valorizações, conhecimentos, etc, que são parte integrante daquele grupo – na nossa linguagem anterior da tese, constituem critérios de pertença ao grupo. Por esta lógica, o património seria património de um grupo de indivíduos, e os elementos que mais se predicam como património seriam aqueles que mais mobilizam indivíduos a predicarem-nos como tais. De forma análoga a Halbwachs, autores como Hobsbawm e Ranger (1983), Anderson (2006), entre outros, desde cedo começaram a falar de uma memória colectiva de uma nação, uma ideia de partilha inerente a indivíduos situados dentro da estrutura de um estado, no qual os critérios de pertença ao grupo se faziam pela partilha de determinados elementos considerados fundacionais para esses grupos, e, especialmente, activamente reproduzidos de forma a formarem formas de consenso que não existiriam sem esse esforço. A ideia é, pois: aquilo que é património, é-o em função da existência de uma ligação a uma nação, projectada para manter controlo dos cidadãos, promover união, gerar laços, sob peso de exclusão de inúmeras narrativas

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dissidentes ou de, em muitos casos, produzir elementos exagerados ou puramente inventados.

Como nota Tim Winter (2015), é difícil dizer que tal associação esteja meramente no passado histórico dos momentos que vivemos actualmente. A associação de património ao nacionalismo permite-se acontecer, por exemplo, com a demolição das várias construções pós-clássicas nas Acrópole gregas, ou no caso português, o processo de “purificação” do interior dos castelos portugueses (A. S. F. Almeida, 2012, p. 35) – muitas vezes, inclusivamente, dissociando o elemento da forma original que se quer proteger19. Winter nota, por essa razão, que não é acidental que aquilo que em muitos

casos se continua a valorizar fortemente são elementos que pertencem a uma história nacional, algo que está inscrito na lei20.

A ideia de que a participação pública, o envolvimento das comunidades, e práticas de historicização do passado, que enfatizam uma forma de “comunidade”, formam um domínio de património que tem também algum peso dentro dos estudos de património, algo que fará algum sentido: ambos os conceitos são vagos, e têm potencial para ser mutuamente constitutivos, uma comunidade sendo definida pelo seu património, e o património definido pela existência de uma comunidade de referência (Crooke, 2010, p. 17). Não obstante as indefinições do conceito de comunidade na discussão de património (Waterton & Smith, 2010) a ideia de que os locais formam a sua própria definição de património tem bastante heurística: identifica-nos um conjunto de indivíduos num território como fazendo uso das suas práticas sociais e memorializando elementos que pertencem a um modelo de história diferente do estado nação (Mydland & Grahn, 2012), e que se prende com discussões a um nível de grupo que é concebível pelos próprios indivíduos, no lugar de uma entidade abstracta.

19 No caso dos Castelos em Portugal, nunca houve um momento em que os indivíduos não vivessem

dentro deles; mas o Estado Novo produz uma limpeza sistemática destes elementos para preservar uma ideia imaginária de grandeza.

20 Logo no primeiro artigo, a lei de bases consagra este vínculo do património a uma identidade

nacional: “A presente lei estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural, como realidade da maior relevância para a compreensão, permanência e construção da identidade nacional e para a democratização da cultura.” (“Lei de Bases do Património Cultural,” 2001)

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Uma tal perspectiva, em termos fundamentais, dirá: o património é aquilo que tem uma comunidade, que, por sua vez, o designa como tal. Uma tal ideia não aparece apenas como uma descrição analítica, mas surge de novo associada ao vínculo preservacionista, como um imperativo: aquilo que a comunidade valoriza mais deve ser preservado como património, de forma a tornar acessível a história da comunidade para os indivíduos que venham em seguida. A sua aplicação em termos legislativos tem bastante história, especialmente em países como o Reino Unido, ainda que de uma forma substancialmente menos explícita do que a descrevemos aqui. Ora na forma de “história local”, ora como “comunidade”, o património é assim visto como algo que existe localmente, mesmo que tal continue a ser visto como parte de uma tarefa especializada e pouco participativa (Gentry, 2013). Mas mais do que tudo, perceber de que forma é que estas categorias contribuem concretamente para a noção de património, e vice-versa, pode iluminar-nos sobre o papel diferencial que surge na população em termos dos elementos valorizados, e qual o escopo que sai fora do património em termos legislativos, e que pode servir como parte de um envolvimento mais profundo, e mais criativo, do turismo.