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3. Micro-Fundações da Cultura

3.1. Cognição e Significação

3.1.5 Domínios Semióticos e Temporalidade

Tendo aqui chegado, existe ainda a necessidade de ligar a forma como a semiose acontece com a forma como os signos se dão à percepção. Concretamente, em termos da incorporação dos elementos, interessa-nos referir os trabalhos de James Gibson

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(1979), e a sua teoria de affordances – possibilidades de acção potenciadas pelo ambiente, que surgem na nossa percepção através daquilo que é possível executar face ao ambiente. Exemplificando: uma caneca, ao ter uma pega, affords ser agarrada; e pela mesma lógica, uma mesa, affords que nos ponhamos em cima dela. Para Gibson, a

affordance não é uma função, pelo menos no sentido funcionalista que tendencialmente

se lhe associa na sociologia, mas antes uma potencialidade. Na linha de Norman (Norman, 1988), estas affordances não serão todas igualmente prováveis, com algumas dominando, em função do contexto, as acções mais prováveis. Como notado (Ramstead, Veissiére, & Kirmayer, 2016), esta perspectiva traça pontos de contacto com o trabalho de Merleau-Ponty (Merleau-Ponty, 1968, 2012); em Almeida (2018, submetido) aludimos à ideia de modalidade construída a partir do trabalho do autor francês como uma forma de estender a ideia de affordance cultural para incluir, não só acções, mas também relações sociais, e, inclusivamente, potencialidades de categorização. Podemos, por isso, derivar os seguintes pressupostos:

AHB13: ├AHB1 ˄ AHB2 ˄ AHB8

A percepção é feita através de affordances – possibilidades de acção que o agente tem ao seu dispor. Estas são diferenciadas em termos da probabilidade de uma dada acção de facto decorrer em função de critérios de valorização diferenciada de diferentes acções.

AHB14: ├AHB13

As affordances podem predicar acções, mas também outros processos cognitivos, como a categorização.

De forma sucinta podemos dizer que a modalidade são os “óculos” que salientam determinadas especificidades de um elemento. A noção de modalidade assim construída implica a existência de uma disposição interpretativa: os agentes à partida estarão, num dado contexto, mais dispostos a interpretar um dado elemento como pertencendo a uma dada categoria. E essa disposição será, entre outros factores, produto de existir um protótipo categorial mais ou menos complexo: o protótipo pode ser tão simples como o que motiva a categorização de um signo como “garrafa de água” ou tão complexo como o que motiva a atribuição de um quadro a arte nova. A modalidade é aquilo que permite que os indivíduos possam interpretar um objecto

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como sendo de uma dada categoria, ao ponderar os elementos na sua relação com o protótipo dessa categoria. Por essa razão, as modalidades são restritas a uma dada categoria.

Existe mais um aspecto relacionado com isto que convirá notar: se os agentes significam um objecto, podemos perguntar-nos se eles o fazem em cada momento em que o encontram. Haverá sempre uma significação de uma árvore sempre que se vê a mesma árvore? Ou haverá um momento em que, por habituação, o processo semiótico não decorre? Mais precisamente, perguntaríamos: quando é que acontece o processo semiótico?

Podemos notar que a categorização tendencialmente costuma ser tida como um processo que requer mecanismos automáticos, apesar de existir evidências a contrário disto, devido à estrutura cognitiva em que a categorização se insere (Greene & Fei-Fei, 2014), pelo menos em domínios como reconhecimento de objectos. Repegando a noção de modalidade, bem como as categorias fenomenológicas de Heidegger (Harman, 2002; Heidegger, 1962), podemos dizer que um objecto, quando é encontrado, não o é sempre da mesma maneira. Quando um indivíduo vê pela primeira vez um castelo, o encontro pode envolver categorização cultural, e experiência estética; mas à medida que passa todos os dias pelo castelo, a modalidade com que vê o castelo muda para ser “um objecto no meu caminho para casa”. Estendendo a ideia de ready-to-hand de Heidegger, no lugar de algo que é manipulado automaticamente, temos um objecto que é tido numa modalidade na qual os seus elementos estão todos mais ou menos ao “mesmo nível” – nenhum elemento do castelo tem mais relevância que qualquer outro, e por isso o castelo é visto como toda uma coisa, não ressalva nenhum aspecto interpretável, torna-se um acessório de caminho. E assim permanece até que haja alguma coisa que exija que este indivíduo tenha de re-analisar, segundo uma qualquer modalidade, o castelo – que lhe seja chamado à atenção a importância que este signo tem na história nacional, ou em geral (se existir uma significação prévia do castelo em tal modalidade), que se peça para significar algo dentro da categoria associada.

À significação que acontece fora de qualquer categoria designatória, como parte de uma existência quotidiana ou regular, chamamos de semiose automática. Não quer isto dizer que este tipo de significação, funcional e operatória, que se engloba no que

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em geral se designa como “cognição automática”, não tenha um domínio focado, mas antes que tal domínio não requer processos de atenção; e, mais ainda, implica que quando esses processos automáticos são quebrados se volte a significar – aquilo que Heidegger chamava de Bedwantiss [envolvimento], “unready-to-hand”, o objecto como este é quando está partido, ou “present-at-hand”, o objecto como foco de um olhar analítico, não mais envolvido num processo funcional mas como foco de consciência e análise. Essa invocação traz-nos bastante potencial para definir processos de re- significação, em contextos habituais: como iremos ver, esta é uma possível forma de aceder às significações dos indivíduos face a elementos que lhes são próximos.

AC8: A interpretação de elementos numa modalidade habitual – executada repetidamente, e sem uma estrutura de atenção – leva a semiose automática.

O que se torna necessário é notar que na maior parte dos casos a semiose automática constitui um tipo de processo e relação que tem como base – uma semiose

não-automática –, que lhe dá o início e que começa a cadeia causal de novos moementos

de significação, que é na maior parte dos casos de repetição6.