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3. Micro-Fundações da Cultura

3.4. Elementos Grupais

3.4.3 Estruturas Formais e Cultura

Aqui chegados temos elementos suficientes para podermos falar de estruturas formais, e definir de que maneira algo como uma “cultura” pode ser produzido pelos agentes – e de igual forma, como é que isto pode ser distinguido e analisado para ser tratável. A nossa afirmação será, talvez, algo desapontante ao dizer que uma cultura tem uma definição formal dada pelo tipo de acções (comunicação, produção e conhecimento nomeadamente) e estruturas em função das quais se interpreta (categorias designatórias, apresentadas por modalidades), e uma definição aplicável que é inteiramente dependente dos agentes: a cultura é uma coisa que os agentes concebem como tendo uma coesão semiótica.

Para percebermos isto, tomemos a propriedade fundadora de um grupo como um território – indivíduos que têm um território em que habitam em comum. Uma possível forma de categorização que pode surgir, em particular quando um território não está muito próximo de outros, é a sobrevalorização da realidade que os agentes conhecem: aquela torre de igreja, igual a todas as outras, ser vista como particular e especial. Ora, se os indivíduos considerarem que um território tem uma particularidade qualquer, podem isolar tais propriedades dos elementos como um tal código simbólico, dizendo, por sinal, que a igreja do território é bastante “icónica” do território, enquanto que uma árvore não terá a mesma significação11. Os agentes formam assim um código semiótico

11 Esta descrição presume a categorização em torno de protótipos; poderíamos reformular isto em torno

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para associar o elemento à estrutura que vinculam ao território, que se comprime de um conjunto de signos, qualificações, predicações e argumentos, que o agente se diz

conhecer (uma relação entre um indivíduo e os elementos, nos quais o indivíduo possui

uma proposição, uma predicação, ou uma simples memória de um evento que lhe evoca o elemento). Isso implica admitir uma função de pertença a um conjunto na qual a igreja tem maior pertença do que a árvore12, e, semioticamente, uma categoria segundo a qual

a igreja pode ser interpretada muito mais provavelmente que a árvore, que é acedida através de uma modalidade. O nome que essa categoria tem no caso mais geral é cultura – uma lente que faz salientar os elementos com maior proximidade ao código simbólico, dentro de dadas restrições – e que poderá gerar ainda outras categorias conexas: se surgisse outra igreja no contexto, e tendo em conta a funcionalidade das igrejas, a categoria “património religioso” enfatizaria esses elementos. Considera-se a extensão geral de uma cultura todos os elementos com uma pertença não-nula (restrições à extensão podem exigir níveis mais elevados de pertença).

A forma máxima dessa “cultura” – quando não tem nada que a especifique, é a cultura humana de Tylor, a cultura na qual a estrutura de significação depende daquilo que consideramos mais marcadamente humano, mais, ou menos, “importante”. Ao contrário dessa forma máxima, a descrição que demos em cima fala de um território que serve de delimitação, e de um grupo que opera essa predicação. Isto serve para ilustrar o que chamaremos o aspecto da cultura (uma intensão que é aplicada por um agente, para definir um conjunto): uma cultura pode ser territorial quando presumimos que aquilo que isola os elementos é um dado território (i.e todos os elementos que pertencem ao território podem ter pertença não nula, e todos os que não terão necessariamente pertença nula), grupal quando depende de um determinado grupo que presumimos que a (re)produz continuamente, ou temporal quando depende de um conjunto de eventos delimitados. No caso do território, o indivíduo que efectua a significação vai postular o protótipo elemento (ou protótipos elementos) na base do seu corpo de justificações, que tendencialmente será informação prévia sobre aquela categoria (se existente), e vai avaliar em função deste os vários elementos. O mesmo se

12 A avaliação semiótica da relação de significação depende formalmente do número de cadeias

semióticas que o agente consegue tomar para chegar à significação da estrutura – quanto mais cadeias existirem, e mais curtas, mais alta a significação.

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verifica para os restantes casos. Naturalmente, para além do aspecto, existe uma cláusula designatória (em termos gerais, um nome), que diz qual o território, grupo ou tempo considerado.

No entanto, rapidamente notaremos que a cultura territorial tendencialmente será diferente da cultura grupal em termos dos tipos de elementos que tendencialmente predica (uma restrição ontológica): a cultura territorial tende a significar elementos como objectos, relações-propriedades e propriedades; a cultura grupal, acções, crenças e afirmações (propriedades), agentes e relações-acções; a cultura temporal engloba todos os anteriores. Isto não é uma distinção fixa: é perfeitamente possível ter objectos pertencentes a uma cultura grupal (as ferramentas de tribos nómadas), e acções pertencentes a culturas territoriais (um cumprimento associado a uma tradição local). O facto de falarmos do aspecto ou do tipo da cultura é uma restrição – obriga a significação a ocorrer dentro de um contexto mais específico. E o mesmo se fala em termos dos modos, ou, analogamente, da rede semântica da cultura restrita – que são, operacionalmente, as categorias conexas à categoria que tem o nome da cláusula designatória. Se a categoria original for “Cultura Territorial Lisboeta Objectual” – já bastante restrita – notaremos, no entanto, que existe uma história desses objectos, uma pertença multi-local (o facto da categoria local ser original não implica que a categoria nacional não polua essa associação), existem diferentes tipos de objectos, com diferentes formas e interesses, etc. A rede semântica associada à categoria original será, em grande medida, um grafo ponderado, de tal forma que certas categorias terão uma conexão mais forte face à categoria original, o que deve ser tido em conta quando não especificamos o modo; especificá-lo seria dizer “Cultura Territorial Lisboeta Patrimonial História Nacionalista”. No fim teríamos: 1) uma lista de elementos com 2) uma função de pertença de cada indivíduo para cada objecto em função da query lançada. Se nos interessar, poderíamos, por fim, restringir a propriedade da cultura, considerando apenas (ou com mais peso) os indivíduos com uma determinada propriedade – quer, por exemplo, na selecção de uma cultura territorial os indivíduos com uma propriedade relativa face ao território, na cultura grupal a propriedade de pertença ao grupo, a posse de determinados “capitais”, etc.

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Naturalmente, em casos concretos quereremos, por questões de simplicidade, controlar uma ou outra categoria, um ou outro tipo de objectos, e nunca todos. É a partir desse racional que nos estudos de sociologia da cultura se fala de “alta” e “baixa” cultura, de cultura popular ou erudita, na antropologia se restringe a cultura à cultura de uma dada população, uma nação, uma comunidade, e por vezes se distingue “arte” e “cultura”. Mas é bom manter em mente esta dupla consequência: a cultura é sempre mais densa semanticamente do que as nossas análises, e sendo pertencente ao domínio da significação, é permanentemente contingente de existirem indivíduos que reforcem as significações. Mais ainda do que a economia – dado que podemos presumir algum inatismo para alguns produtos económicos que daria uma homologia imperfeita entre as funções de utilidade – a cultura depende, assim, de uma cadeia semiótica contínua e dinâmica.

Nesse sentido, a cultura é apenas um código simbólico no qual a operação de categorização fundamental é a pertença e não pertença, e cujas acções gerais são definidas por terem uma base nesta categorização – aquilo que chamamos de relações

características.

PF3: Uma relação característica é um tipo de acções que decorre dentro de um sistema socio-conceptual que distingue o sistema de outros, em termos de especificidade ou generalidade.

PF3-E1: Um sistema socio-conceptual pode ter potencialmente aspecto, quando é necessário restringir uma isolação dos elementos que pertencem à categoria face a outros elementos, tipo, quando os elementos que podem pertencer à categoria são ontologicamente distintos, modo, quando a categoria mobilizada tem categorias análogas numa rede semântica e é necessário especificar, e propriedade, quando os indivíduos que a significam têm de ter uma certa propriedade.

AHB55: As relações características das culturas são a comunicação, que transmite de uma dada mensagem, e a produção, que opera com a criação de elementos à ordem desses códigos simbólicos.

AHB55-E1: A produção é a construção de elementos, com uma determinada intenção de que este elemento caia na categoria de um ou mais sistemas sociais.

87 AHB55-E2: A comunicação, ao exteriorizar a significação, tem a função de tornar esta inteligível aos outros

AHB56: A definição de cultura parte da construção pragmática que os indivíduos têm do que é cultura.

A relação de produção consiste na manipulação por parte de um indivíduo, máquina, animal, ou outro tipo de agente dotado de capacidade de alterar matéria (independentemente da origem), a qual toma um código simbólico e recombina-o de alguma forma que produza um elemento com uma intenção de pertencer a um ou mais determinados sistemas culturais. O contraste entre intenção simbólica de um acto de produção – aquilo que o autor ambiciona ser a interpretação certa – e a forma como isto acontece, é o cerne dos estudos sobre a mediação, recepção e produção que têm marcado os estudos culturais e subculturais, bem como certas interpretações da estética (DiMaggio, 1977, 1987; Hebdige, 1979; Muggleton & Weinzierl, 2003). Mais ainda, o grau de proximidade entre o elemento e o código semiótico do sistema que ele mobiliza pode não se dar integralmente: como antes falámos de distintividade e assimilação, aqui poderíamos recapitular essas ideias a propósito da “transgressividade”, ou “reprodução”, de uma obra de arte ou objecto cultural, as intenções por detrás dessa acção, e o equilíbrio face ao meio (Bourdieu, 1984b; Guerra, 2013).

As relações características que discutimos podem ser vistas de forma relativamente intuitiva noutros sistemas: na economia, a relação de significação passa a prender-se com a utilidade de um elemento para um agente. Mais ainda, a economia engloba a importante relação de propriedade, que engloba todas as sub-relações de troca, aquisição e venda de objectos e/ou proposições transferíveis.

Convirá notar o facto trivial de que nenhuma acção tem necessariamente de ter impacto num único domínio expressivo, algo que poderemos ver na secção sobre sistémica (cf. 4.1.3) – adquirir um quadro pode ser, de certa forma, uma comunicação na qual o indivíduo expressa uma significação daquela cultura.

Surgirão aqui algumas hipóteses de trabalho: notámos que a cultura com um dado nível de aproximação terá uma dada estrutura dada pela significação difusa, ou seja, com determinados elementos sendo mais relevantes que outros. Se assim é, então

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aqueles elementos que tiverem mais menções e cujas menções tiverem mais pertença serão os mais significativos da cultura. Mas isto assume que todos os indivíduos têm a mesma importância; se admitimos aqui a mediação, e a estrutura dos grupos, é precisamente porque cremos que é na dinâmica destas estruturas que se encontra parte da força de restrição de sistemas como a cultura. Isto não é, de todo, novo, repetindo um tema bourdeusiano e foucaultiano: quem é que decide o que é importante, e quem decide o que é legítimo? E veremos que a partir da descrição supra é possível chegarmos a um modelo de relação baseado no que chamaremos de grupos bourdeusianos, que satisfazem as seguintes premissas:

1. Os indivíduos têm pertenças desiguais baseados em critérios de pertença e exclusão; 2. Indivíduos com mais pertença têm mais capacidade de afirmar as suas significações

como certas junto do grupo – conseguem persuadir mais indivíduos a significar como eles;

3. Os critérios de pertença e exclusão prendem-se, em parte, com a afirmação de significações consideradas pelo grupo, e em parte com outros critérios de formação do grupo – se tais outros existirem.

Convirá notar que tal concepção é apenas uma concepção limite, não podendo, de maneira alguma, poder ser afirmada a priori – no entanto, desde já mostra-nos o potencial para pensar as peças analíticas que até agora temos como modelos activos de construção de conceptualizações.

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