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A estrutura jurídica do campo editorial

No documento UNIVERSIDADE PAULISTA (páginas 152-161)

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9. A estrutura jurídica do campo editorial

isso, nos dois capítulos que seguem estaremos apresentando questões que nos darão subsídios para uma discussão mais profunda destas novas formas de pensar a autoria. Nos capítulos oito e nove, quando discutirmos as novas identidades de autores e editores, pretendemos retomar esta discussão.

No conceito de campo, temos a solução de diversas questões relacionadas aos estudos das ciências sociais aplicadas, em primeiro lugar, resolvemos a dicotomia entre forma e conteúdo, fato que pode efetivamente limitar a análise. Em segundo lugar, conseguimos dar conta de manifestações complexas, isolando-as de forma relativa de contextos mais gerais, podendo, assim, estudar o objeto, admitindo sua formatação específica, sem, entretanto, desconectá-lo do geral.

Vimos neste capítulo que o conceito de autoria, como o compreendemos, teve sua gênese lentamente desenvolvida entre o final da Idade Média e os primeiros três séculos da Idade Moderna.

Por isso, fala r em mercado editorial medieval seria um anacronismo, já que o conjunto de agentes que compõem este mercado não existiam. Entretanto, o livro, principal produto deste mercado na modernidade, já existia e circulava, e uma série de agentes participavam de sua reprodução e distribuição. O que nos permite afirmar que , para a produção do livro nas diversas eras históricas, corresponderam campos “editoriais” distintos. O da logosfera era composto por sábios, copistas, bibliotecários e compiladores. O da grafosfera será composto por livreiros, editores, gráficos, tradutores, autores e multiplicadores. Mas a gênese deste campo na grafosfera confunde-se com a gênese dos campos artístico e literário, compondo um conjunto que Bourdieu identificará como uma economia de trocas simbólicas:

A história da vida intelectual e artística das sociedades européias revela-se através da história das transformações da função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura destes bens, informações correlatas à constituição progressiva de um campo intelectual e artístico, ou seja, à autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos. (Bourdieu, 1987: 99)

Para Bordieu os campos se formam a partir de um processo de autonomização em relação às estruturas mais gerais da sociedade. Desta maneira, sem que as dinâmicas gerais

deixem de afetá- los, os campos estabelecem seus próprios códigos e hierarquias. Os participantes de um campo possuem uma autonomia relativa dentro do próprio campo, podendo desta forma proceder no sentido de lutar por mudanças na estrutura do campo. A formação dos campos na sociedade moderna está diretamente vinculada aos desencaixes promovidos pelos processos de especialização. Desta forma quando pe nsamos no campo da comunicação no século XV, basicamente estamos nos referindo ao mercado editorial de livros. Quando pensamos este mesmo campo no século XVIII devemos incluir revistas e jornais. No século XIX o domínio da eletricidade incluirá o telégrafo, e no século XX teremos a inclusão do rádio, da TV, do cinema, da telefonia e da Internet. E cada um desses meios pode ser pensado como campo autônomo, ou como subcampo da comunicação.

É interessante perceber que os campos muitas vezes estão sobrepostos, e seus agentes podem participar de vários campos ocupando posições diferenciadas ou homólogas.

Isto torna a análise uma ação complexa e delicada. Complexa pelo arbítrio que representa a secção necessária ao estudo, e delicada porque errar a mão pode significar agrupar em um mesmo objeto ou campo agentes que a ele são estranhos. É o caso, por exemplo, da figura do jornalista. Poderíamos afirmar que o jornalista, por colocar sua pena a serviço do capital, é uma versão moderna dos poligrafis, e esta seria uma comparação válida até certo ponto.

Ocorre que a amplitude de atuação de um jornalista, sua forma de remuneração e a especialização que muitos desenvolvem extrapolam sobremaneira aquela do universo dos poligrafis. Outro fato interessante é que muitos jornalistas se tornam escritores, ou muitos escritores se tornam jornalistas, de forma que existe uma relação forte entre estes profissionais e o campo editorial. Mas o ponto de contato mais importante é, certamente, a

crítica especializada que os periódicos fazem dos livros, funcionando como legitimadores dos textos e de seus respectivos autores.

A formação do campo editorial do livro é diretamente afetada pelo processo de especialização e de divisão social das atividades. Em seu princípio a figura do editor confundia-se com a do gráfico e do livreiro. Os autores podiam ser intelectuais prestigiados ou poligrafis, e entre uma forma e outra podíamos encontrar professores que também escreviam por encomenda e intelectuais que se recusavam em receber por sua criação. A medida em que o campo vai se consolidando o papel dos agentes vai ficando mais bem delineado. Os escritores de sucesso obtiveram uma autonomia relativa dentro do campo, passando a negociar melhores contratos e a trocar o crivo do editor pelo do público. Os capitalistas do negócio especializaram suas atividades, alguns dedicam-se à edição, outros ao comércio e ainda outros à impressão. Os mais bem sucedidos poderão estar nas três atividades. A autonomia do editor se funda no surgimento de um profissional que se relacionará com os autores, que escolherá o texto e sua forma específica e que pensará nos leitores. Roger Chartier assinala que este profissional surge na França por volta de 1830.

No século XX, esta divisão entre as atividades ficará cada ve z mais evidente. Entre os profissionais da escrita, haverá o jornalista, o revisor, o tradutor, o escritor de prosa, o escritor de poesia, o ensaísta, o profissional de auto-ajuda, o ghost writer, etc. A maior autonomia dentro do campo dependerá do sucesso em relação à sociedade, demonstrando o peso da palavra relativo no conceito de autonomia.

O mesmo vale para os capitalistas do meio, por um longo período as casas editoriais desfrutaram uma certa autonomia em relação às empresas capitalistas de outros segmentos, de modo que o editor pôde individualizar-se como um misto de capitalista e intelectual, um

especialista na seleção de conteúdos que seriam submetidos ao mercado. No caso do livreiro existem muitos exemplos de fenômenos parecidos em que o livreiro era um exímio conhecedor de seu acervo, mantendo, assim, uma cumplicidade com seus clientes e com a especificidade simbólica dos bens que comercializava. À medida que o campo editorial vai sofrendo a influência da dinâmica capitalista mais geral, essa s figuras do editor intelectual e do livreiro esclarecido serão modificadas. A entrada dos grandes grupos de comunicação no mundo da edição de livros marcará esta virada. Neste sentido o campo editorial (aqui pensado só no âmbito da edição de livros), diverge a partir do século XIX, do campo mais geral da comunicação que será marcado pelo crescimento do jornal diário, pela criação das agências de notícias e depois pela entrada do Rádio e da TV em seu escopo de atuação.

Quando pensamos a edição de livros no Ocid ente, devemos estar cientes de que existem muitas particularidades nos diversos mercados locais e que as dinâmicas mais gerais podem ocorrer em ritmos distintos de um país para outro. Por isso é difícil descrever as principais características do campo editorial generalizando-as, porém, algumas tendências comuns podem ser notadas em mercados diferentes, como o americano, o europeu e o brasileiro, que nos permitem aferir as características mais gerais do campo63, são elas:

1 – A figura do editor como um profissional dedicado à produção de livros e a sua comercialização, que mantém fortes laços com seus autores, seleciona para o mercado, mas sempre com certa autonomia.

2 – A presença de livrarias independentes nas quais o livreiro conhece seu público e o conteúdo das obras que coloca à venda.

63 Importante deixar claro que estas tendências são notadas com certa defasagem temporal em cada um dos mercados.

3 –A existência da figura de escritores divididos em duas categorias principais:

aqueles que produzem para o campo erudito em que se encontram inseridos e aqueles que produzem para um mercado leitor mais amplo.

O campo editorial, composto por estes personagens, podia ser encontrado na França no século XIX, nos EUA a partir da segunda metade do século XIX e, no Brasil, desde as primeiras décadas do século XX. A estabilidade dos mercados se dará a partir das identidades que estas três categorias de agentes mantiveram durante boa parte do século XX.

No século XX, ocorre a partir da década de 60 nos EUA, de 70 na Europa e de 90 no Brasil, uma mudança considerável no campo editorial. Um negócio relativamente estável, que jamais fez grandes milionários, que fora mantido essencialmente por um grande número de pequenas editoras e livrarias independentes, passou a ser assediado pelo capital de grandes conglomerados de comunicação. Este fenômeno que se iniciou nos EUA com a compra da Randon House pela RCA, ainda está em curso e tem, no grupo AOL Time-Warner, seu exemplo mais acabado. Um campo com características específicas cujas identidades dos agentes se forjaram lentamente no decorrer de alguns séculos, viu-se obrigado a modificar de forma significativa suas forma de atuação.

No caso das editoras, sai à figura do intelectual editor e entra a figura do profissional de marketing; no caso das livrarias, as redes passam a substituir as livrarias independentes, homogeneizando a figura do livreiro, que é substituída pelo gerente comercial, e no caso dos autores, ocorrem dois movimentos, um que funde a identidade daqueles que escrevem para o mercado com o dos que escrevem para um público erudito, criando o famoso intelectual bestseller. Poderíamos citar como exemplos deles, na França,

Bernard Henri Levy, na Itália, Umberto Eco, no Brasil Eduardo Gianetti. O segundo movimento no campo da autoria distancia ainda mais os escritores eruditos daqueles que escrevem para o mercado, relegando os primeiros ao gueto das edições de uma centena de exemplares (print on demand).

Este fenômeno não ocorre sem que haja uma certa anuência dos autores, pois a própria criação dos campos artístico e literário obedecem a uma dinâmica de oposição entre o mercado da indústria cultural e aquele da produção erudita:

O campo da produção propriamente dita deriva sua estrutura específica da oposição – mais ou menos marcada conforme as esferas da vida intelectual e artística – que se estabelece entre, de um lado, o campo da produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação destes bens) objetivamente destinado (ao menos a curto prazo) a um público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais e, de outro, o campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não produtores de bens culturais (o grande público) que podem ser recrutados tanto das frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como das demais classes sociais. (Bourdieu 1987: 105)

Bourdieu apontará para a constituição de uma estrutura de conservação e consagração que atuará no interior dos campos e na relação deste com os outros campos regulado a legitimação dos agentes e opondo-se a presença de outsiders.

Podemos imaginar esta hierarquia do campo pensada da seguinte maneira. Um autor que publicou sua obra numa editora para a qual ele teve que pagar para a edição sair é considerado menos importante no interior do campo que aquele que é publicado por uma editora que dele não cobra nada. Caso se trate de uma obra acadêmica, o pagamento pela

edição pode ser melhor aceito pelo campo do que de uma obra de ficção. Entre os poetas poderá ocorrer processos similares. Os autores que são publicados por uma editora de prestígio como a Cia das Letras, ou a Record, desfrutarão de maior força no meio, que aqueles editados por editoras menos importantes. Os jornalistas especializados em cobertura do universo editorial concederão maior espaço em suas colunas aos autores das editoras de maior prestígio, como se pode perceber na leitura dos cadernos de domingo.

Muitos dos colunistas e críticos dos jornais são autores destas editoras. Jornalistas e comentaristas de sucesso na TV e no Rádio são convidados a publicarem seus livros pelas editoras de prestígio e dessa forma o círculo se fecha.

Este tipo de fenômeno pode ser detectado no século XIX, mas é nas últimas décadas do século XX que ele se intensifica e que a oposição entre campo erudito e indústria cultural assume essa nova configuração de cooptação e exclusão exacerbados.

A autonomia relativa do editor de escolher originais que considerava de qualidade encontra-se cada vez mais submetida a esta estrutura de legitimação do campo, o que não significa que uma consciência conspiratória e manipuladora está de alguma maneira controlando este processo, mas que o conjunto de agentes e suas identidades parecem perder cada vez mais suas autonomias relativas em função de um habitus comandado pela

“lógica de fluxo”64 da mercadoria.

O corpus jurídico construído conjuntamente com a constituição do campo editorial e agrupado debaixo do guarda chuva da propriedade intelectual encontra-se subordinado à dinâmica destas identidades em transformação. Aparentemente, a lógica da mercadoria encontra neste corpus um elemento de estabilidade, porém, a emergência da sociedade de

64 Nos capítulos sete e nove retomaremos a questão dos modelos de fluxo (flot) versus o modelo editorial preconizados por Bernard Miège.

informação, que traz consigo a aceleração dos fluxos de conhecimento, e uma série de novos desencaixes parece estar desestabilizando essa relação. Como quem dá as cartas no campo editorial não são mais os seus tradicionais agentes, mas esse novo sócio capitalista que não tem face e cuja origem pode ser uma empresa aeroespacial ou uma rede de supermercados é provável que a estrutura jurídica deva ser alterada. O modelo atual de propriedade intelectual funciona como um entrave à veloz circulação de conhecimento e informação que caracterizam os setores de vanguarda da economia. Assim como este corpus foi construído para responder às necessidades econômicas de seus principais agentes, Igreja, Estado, livreiros editores e autores, pode ser que a atual dinâmica da economia exija uma transformação na atual estrutura do copyright.

Mas lembramos que o direito de autor não foi apenas o resultado de uma convergência de interesses políticos e econômicos. Sua construção baseou-se em profundas mudanças culturais, principalmente no conceito de autoria, forjado na relação entre produtores de conhecimento e seus respectivos receptores. Para avaliarmos a intensidade das mudanças em curso, em especial as alterações que o aparecimento de uma nova tecnologia de armazenamento e recuperação de conhecimento pode acarretar ao formato atual do livro e do campo editorial, precisamos entender melhor as características atuais da indústria cultural e a relação desta com a emergente sociedade de informação.

No documento UNIVERSIDADE PAULISTA (páginas 152-161)