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Aspectos jurídicos

No documento UNIVERSIDADE PAULISTA (páginas 49-57)

admitiremos que estas esferas também estão integradas ao fenô meno editorial. Para estudá-lo de forma apropriada deveremos revolver cada um destes espaços, sem jamais perder de nosso horizonte a convicção de que são interdependentes.

Em nossa proposta diacrônica abordaremos a introdução do livro impresso por um longo período que vai de meados do século XV até fins do século XVIII. Ao analisarmos o segmento econômico verificaremos a formação da cadeia de valores da indústria editorial e a evolução de seu modelo de negócios, bem como as implicações do comércio do livro para o restante das atividades econômicas. Neste quesito também acompanharemos a formação de uma classe de trabalhadores especializados no conhecimento, sua modalidade de exploração e colaboração com uma emergente burguesia tipográfica. Não deixaremos de observar as práticas comerciais desviantes que haverão de ter se formado no seio do emergente mercado editorial22 e as relações centro/ periferia, já neste princípio estabelecidas, tanto entre regiões européias, quanto entre os próprios países europeus, muitos deles recém- unificados.

intelectual. O mercado editorial é a primeira das empreitadas capitalistas a perceber que para além de sua mera materialidade os produtos possuíam uma dimensão intangível que precisava ser protegida, sob pena de representar imensos prejuízos a seus proprietários.

Anthony Giddens identifica na modernidade uma série de transformações, no interior das quais a questão da propriedade intelectual pode se enquadrar. Ele as chama de “desencaixe dos sistemas sociais”: “Por desencaixe me refiro ao deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço.”

Giddens distingue dois tipos de mecanismos de desencaixe, que se ligam ao desenvolvimento das instituições modernas:

a. Fichas simbólicas: são meios de intercâmbio que podem circular e serem reconhecidos em todos os lugares, uma das mais relevantes seria o dinheiro.

b. Sistemas peritos: trata-se de sistemas de excelência técnica que organizam grandes áreas da vida material e social. E aqui podermos traçar uma homologia com o “campo” de Bourdieu. Como exemplo teríamos os advogados, economistas, médicos, engenheiros, etc.

Estes dois mecanismos de desencaixe estão presentes na propriedade intelectual. O conteúdo de um texto estará vinculado a um autor e a uma casa editorial, mas o que me assegura sua autenticidade, o que me garante sua verdade. Certamente o prestígio do autor e a reputação da casa editorial, muitas vezes atestada na qualidade do impresso. Aos poucos o meio editorial vai se convertendo em um sistema perito e os conteúdos editoriais em fichas simbólicas que podem – ressalvando-se a questão da tradução – circular por todo o mundo.

Neste cenário, lentamente o corpus jurídico do direito autoral irá se estabelecer, primeiro para assegurar o direito do gráfico-editor e tardiamente como forma de permitir ganhos também aos autores. Nosso salto diacrônico nos coloca diante de uma série de novos possíveis desencaixes, que podem estar ocorrendo com a emergência da sociedade de informação. A defesa do copyleft23, pelos adeptos da cultura hacker, e a visão de conteúdo livre, predominante nos usuários da Internet, seriam um exemplo deste desencaixe, no qual a noção de propriedade intelectual passa a ser questionada por parte dos agentes criativos e por imensas parcelas de receptores.

Os desdobramentos políticos destes conflitos podem ser facilmente identificados nos discursos de seus principais agentes. É notória a pressão que os EUA exercem sobre a OMC, e seus países membros, principalmente aqueles em desenvolvimento, para que haja um eficaz controle da pirataria. Os líderes da indústria de software protegido patrocinam campanhas para coibir a prática pirata, que apelam para aspectos morais e insinuam as possíveis punições aos infratores. Creio que uma recente experiência pessoal pode muito bem ilustrar a preocupação dos agentes tradicionais em relação a este deslocamento. Estava visitando a biblioteca do SESI em São Paulo, que fica no porão da sede da Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP), a mais importante entidade patronal do país, localizada no seio da avenida Paulista. Na parte térrea do prédio, ligada as calçadas da avenida movimentada, ocorria uma exposição de produtos piratas, softwares, brinquedos, roupas, etc. Os transeuntes podiam ver o original e ao seu lado o produto pirata. Em uma

23 Palavra em inglês que se contrapõe ao termo copyright. Funciona como um trocadilho, já que copyright, a palavra utilizada para definir a propriedade intelectual, é formada da fusão de duas outras palavras: “copy”

que significa original, ou cópia e “right” que significa legal, direito. Ora, copyleft seria a fusão de “copy” e

“left” esttá última palavra significa esquerdo, canhoto. A escolha deste termo para designar a abdicação do autor de parte ou do todo de seus direitos autorais configura o caráter político de sue uso.. Este tip o de licença de conteúdo nasceu a partir da defesa do software livre, os adeptos deste movimento, ao invés da expressão

“all rights reserved” (todos os direitos reservados) do copyright, utilizam a expressão “some rights reserved”

(alguns direitos reservad os). Em muitos casos o autor abdica de todos os direitos, os pecuniários e morais.

instalação interativa, era concedido aos transeuntes o “priv ilégio” de destruir os produtos piratas. Um imenso painel eletrônico explicitava os números da pirataria e o prejuízo que a mesma causava ao país em empregos formais, impostos e consumo. Creio que este exemplo pode ser pinçado como um dos sintomas do atual conflito que vive a questão da propriedade intelectual. É muito provável que a maioria dos transeuntes que passaram por esta instalação fossem usuários de algum produto pirata: roupa, CD, livro, software, calçado – “quem nunca pecou que atire a primeira pedra.”

A contradição básica entre o corpus jurídico moderno e a demanda por consumo de conhecimento e produtos culturais reflete um ponto de conflito da atual sociedade, que não será resolvido por campanhas publicitárias ou simplórias ameaças de coerção. O consumo maciço de produtos culturais pirateados, entre os quais se encontram textos, é um subproduto da sociedade de consumo e uma conseqüência lógica do avanço das técnicas de reprodução. Ao discutirmos a mudança de materialidade do livro, cuja característica principal é a desmaterialização dos conteúdos24, não poderemos deixar de perceber que este atributo técnico, atende diretamente as demandas de consumo de uma imensa parcela que se encontra a margem da indústria cultural.

24 Alguns teóricos utilizam este conceito para designar a passagem de conteúdos que se valem de tangíveis de suporte, para conteúdos digitalizados, cujos suportes não são necessariamente tangíveis. O conceito será trabalhado de forma detalhada no capítulo 6 desta tese.

9. A transição do livro impresso ao livro eletrônico, tendo por agentes de sua realização, editores, autores e leitores25, com suas respectivas identidades e papéis.

Em nossa abordagem do campo editorial identificamos três categorias de agentes que, ocupando espaços específicos dentro do campo, colaboram e conflitam em sua constituição. Nos referimos a autores, editores e leitores.

Editores: Quando do advento da prensa de tipos móveis, a função editorial como hoje a conhecemos estava totalmente misturada com as tarefas de gráfico e livreiro e muitas vezes submetida a essas duas. No século XVI, convivem as figuras do mestre impressor e a do editor. O primeiro pode ser dividido em três categorias: os itinerantes que em geral possuem uma única prensa e exíguos conjuntos de caracteres, vivem de pequenos trabalhos atendendo os vilarejos que não possuem prensa; os artesãos locais, estabelecem pequenas oficinas e atendem demandas pequenas de cartazes, folhetos todo o tipo de prospectos e abecedários e folhas de aulas que são usadas nos colégios locais e raramente imprimem um livro; finalmente temos os mestres impressores proprietários de oficinas nas grandes cidades comerciais, ou universitárias. Destes homens será exigida uma cultura superior, pois deverão compor obras em suas línguas vernáculas, mas também em grego e latim. Desta terceira categoria de gráficos surgirão editores e livreiros de prestígio.

Mantendo relações com os comandatários; obrigado a procurar sempre trabalho para que os prelos não fiquem inativos e a dividir regularmente esse trabalho, controlando o dos companheiros, retido sem cessar pelo fastidioso e delicado trabalho de correção de provas, que devem ser devolvidas na hora certa para que a tiragem possa prosseguir, ao

25 Por falta de tempo para realização de uma pesquisa de recepção com leitores, não nos aprofundaremos na análise dos impactos da introdução do livro eletrônico sobre estes.

mestre impressor portanto não falta ocupação. Tanto mais que mantém em geral uma livraria instalada perto da oficina. Se consegue lucros suficientes, se pode reunir algum capital, torna-se ele mesmo editor, associando-se às vezes para assumir as despesas da publicação com outro livreiro que partilha com o ele os riscos e os benefícios da empresa e que se encarrega de distribuir uma parte da impressão. Graças a esse sistema, o impressor consegue às vezes tornar-se um grande editor. ( Febvre, 1991:212)

Outra categoria de editor será a do empreendedor intelectual, que por suas ligações com a universidade, a nobreza ou a burguesia ascendente, utilizará o serviço dos gráficos para imprimir títulos previamente selecionados. Alguns comerciantes, atentos ao nascente comércio do conhecimento, também se lançaram a este tipo de empreitada, de forma que é possível já no século XVI encontrar editores em algumas cidades italianas, nos países baixos e em cidades alemãs como Frankfurt. Os aspectos que regulavam a identidade destes agentes serão objetos de nosso estudo, bem como suas relações com outra parte indispensável da produção editorial, os autores.

Atualmente o conceito de autoria encontra-se em deslocamento, dentre os sistemas peritos, este talvez seja o mais transversal e eclético. Muitos dos participantes de outros sistemas peritos, para obterem legitimidade, precisam se transformar em autores. Entre os juristas, por exemplo, muitos dos grandes advogados se transformam em autores de importantes compêndios. Médicos, engenheiros, jornalistas, economistas, també m obtêm na publicação de suas idéias a legitimação de suas posições no campo. Portanto, a autoria além de participar do campo editorial, é uma competência transversal presente nos outros campos. Mas o prestígio desta modalidade de atuação social é fruto da modernidade e encontra-se em profunda transformação com o advento dos meios eletrônicos de edição.

O autor medieval era completamente diferente de nossa concepção moderna, Roger Dragonetti identifica no termo latino auctor, múltiplos significados : Deus, o espírito, o copista de um manuscrito, mas jamais o inventor de um texto. Em oposição ao medieval, o moderno implica uma subjetividade que desvenda o real, tornando cognoscíveis os espaços outrora vedados à razão. O espírito ou deus, se manifestavam nas letras grafadas pelo copistas, ou nos sermões lidos pelo clérigo. A modernidade não depende mais deste tipo de incorporação. O sujeito, invenção moderna, recorrerá a mediadores, que não serão mais simples canais de transmissão, mas sim fundadores de uma nova realidade. A ausência de uma interação direta com a divindade será substituída por uma mediação em relação ao real, aos agentes desta mediação emprestar-se-á o nome medieval de autor, que de meio se converte em mediação. Gumbrecht identifica este desencaixe e o atribui principalmente ao desenvolvimento da imprensa:

Na era da subjetividade, o homem concebe-se como a instância que confere seu sentido aos fenômenos, por oposição a cosmologia medieval fundada, em razão do ato divino da criação, na imanência do sentido (...) Mas a intervenção do sujeito criou assim as condições propícias ao aparecimento do papeldo autor, foi a invenção da imprensa que o tornou uma necessidade concreta. Foi, com efeito, o livro impresso que transformou em caso excepcional o que até então era a situação normal da comunicação humana, a saber, a copresença física dos participantes. (Gumbrecht, 1998: 104)

O caminho da glória é longo e acidentado, antes de obter o reconhecimento e de ocupar um papel respeitado no campo da edição impressa, os autores deverão constituir sua própria identidade. Nos primórdios da era editorial multiplicaram-se as reedições de clássicos da Antiguidade e das obras capitais da Idade Média. Este primeiro fluxo de textos, após algumas décadas, se esgotou, porém o aparato industrial e logístico necessários à

edição já se encontra plenamente instituído. Neste cenário a figura do editor prospera, oportunistas comerciantes do conhecimento percebem a imensa demanda por esta nova moeda simbólica, o livro, e investem em oficinas de criação textual, empregando autores que escrevem por encomenda, Peter Burke nos apresenta a realidade destas linhas de produção do texto,

Para cada homem de letras de sucesso podiam-se contar centenas de trabalhadores – e trabalhadoras – literários na pobreza, na que foi conhecida como Grub Street( como na Veneza do século XVI e na Amsterdã do século XVII). Eram os mercenários, os escritores de tração, como foram descritos por analogias as carruagens puxadas por cavalos, os táxis dos séculos XVIII e XIX.(Burke, 2003:150)

Conhecidos na Veneza do século XVI como poligraphi, estes homens letrados, viviam alugando suas penas a gráficos, editores e nobres. Escreviam por encomenda, revisavam originais e, por vezes, atuavam na própria oficina tipográfica na composição. Dentre os intelectuais da época, alguns poucos conseguem escapar deste esquema de produção industrial fazendo valer sua independência, é o caso por exemplo de Erasmo e Montaigne. Exceções que reforçam a condição precária que viviam os autores nos primeiros três séculos da grafosfera.

O movimento pelo estabelecimento de direitos autorais, diferentemente do que o senso comum possa pensar, só ganhou relevância quando editores, igreja e estado passaram a ver ameaçados seus quinhões pela pirataria e publicação de livros contestadores e apócrifos. Por um lado Igreja e Estado precisavam da autoria identificada para punir eventuais agitadores, do outro, editores cada vez mais afetados pela edição de exemplares pirateados concordavam em pagar alguma coisa aos autores em troca da proteção legal dos

seus direitos exclusivos de impressão. Isto não significa que os autores não batalharam seus direitos, mas relativiza esta luta ao verificar que todo um aparato técnico produtivo influiu no estabelecimento do corpus jurídico.

Nossa investigação irá esmiuçar as relações deste agente, o autor, buscando identificar os elementos que comporão sua identidade e as relações que esta categoria mantém com os outros agentes do campo. Por se tratar de um estudo diacrônico, identificados os elementos genéticos, passaremos a uma análise das atuais relações autorais, buscando identificar em que, a emergência de novas modalidades do livro afetam a antiga identidade do autor. Cruzaremos com esta os questionamentos da cultura hacker em favor do copyleft e verificaremos até que ponto, aspectos culturais de um outro campo podem afetar o campo editorial.

No documento UNIVERSIDADE PAULISTA (páginas 49-57)