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A EVOLUÇÃO DE UMA CARREIRA E A CONSTITUIÇÃO DA CORPORAÇÃO

As diferenças entre os ativistas apareceram não tanto na trajetória social, mas na posição relativa que ocupavam num dado momento. Assim aqueles, por exemplo, recém-ingressados no campo sindical necessitavam ganhar o apoio e a confi ança dos companheiros – que eram também seus concorrentes. Para isso, precisavam provar o seu devotamento e reafi rmar a sua crença nas representações produzidas e assimiladas pelo movimento sindical. Não dis- pondo de economias próprias, eles eram obrigados a acumular capital social (e sindical). Os aprendizes de sindicalistas necessitavam mostrar-se c onfi antes no futuro e sempre disponíveis: “Eu botei o sindicalismo dentro do sangue... na veia e vesti a camisa e venho lutando... Já fui ameaçado de morte. Mas nunca me intimidou, nunca me desestimulou” (Entrevista 9).

Assinalemos que somente alguns poucos privilegiados conseguiam atingir o cume da carreira, chegando à direção da Federação ou mesmo da Confe- deração Nacional. O que os distingue dos demais é a velocidade com que percorreram o caminho sindical.

Um elemento fundamental de diferenciação do sindicalismo rural anterior e posterior ao golpe militar é o desenvolvimento, no segundo período, de uma verdadeira corporação dos sindicalistas. Se, na época dos comunistas, a atividade sindical era apenas uma decorrência da militância política nos quadros do PCB, os dirigentes sindicais dos anos da ditadura, embora saídos do campesinato, foram se constituindo enquanto um grupo à parte, numa categoria especializada na representação dos “trabalhadores rurais”. Reconhe- cer a existência de uma corporação de especialistas da representação signifi ca

tanto evitar a armadilha de reproduzir de maneira acrítica o discurso ingênuo do mandatário devotado, desinteressado, cheio de abnegação, quanto fugir de uma visão maniqueísta do mandatário cínico e usurpador consciente (Bour- dieu, 1984, p.53). Isso também não quer dizer que o dirigente sindical não tenha nada em comum com a base dos representados. De modo geral, eles tinham a mesma origem social e alguns ainda cultivavam um vínculo com a terra, possuindo um sítio ou uma chácara. Entretanto, o fato de exercerem uma atividade específi ca, diferente do trabalho agrícola, fazia com que fos- sem levados a defender também, paralelamente aos “interesses da categoria”, interesses particulares dos mandatários. Ao defenderem as “aspirações dos trabalhadores rurais”, esses especialistas da representação estavam lutando também pelos interesses do grupo diferenciado do qual faziam parte. Tais sindicalistas serviam aos interesses dos seus representados “à medida que eles serviam também aos seus interesses, em lhes servindo” (Accardo, Corcuff, 1986, p.131).

Nesse jogo, o dirigente protegia a sua condição de porta-voz e, por ex- tensão, os interesses da corporação dos representantes: promoção social do grupo, manutenção de eventuais privilégios, sua sobrevivência e reprodução. A existência dos mandatários signifi ca assim, de um lado, a manutenção da representação do campesinato e a perenidade de sua expressão enquanto grupo político e, de outro, a preservação do próprio espaço de intervenção, isto é, do campo sindical. Assim sendo, eles eram os primeiros interessados, o grupo seleto dos representantes tinha tudo a ganhar em continuar sendo o “guardião do campo”. A perpetuação da condição de mandatário está em função direta com a manutenção da corporação e do campo sindical. Mas, como era de esperar, a representação ofi cial negava esse fato e escudava-se na ideologia do desinteresse, alegando a transitoriedade da condição de dirigente sindical. Ora, como não existia nenhuma norma nem tradição de renovação das direções, na prática, eles se mantinham à frente das entidades durante quatro, cinco, vários mandatos sucessivos (Entrevista 2).

Muitas vezes os interesses eram complementares: ao servir à corporação, servia-se à “classe”. No entanto, era quando os interesses se mostravam contraditórios que os problemas começavam a aparecer. Quanto mais a cor- poração se especializava, quer dizer, quanto mais ela se capacitava profi ssio- nalmente para exercer a sua função, mais ela se diferenciava e se distanciava dos mandantes e, então, maiores eram os riscos de incompatibilidade de interesses.

No intuito de evitar tais distanciamentos, era de esperar que os represen- tantes tivessem a preocupação de aparecer como a vitrine da “classe”, posando como representativos do campesinato ou, pelo menos, de um campesinato idealizado. No entanto, não se percebeu nenhum esforço nesse sentido, e os vínculos com o território e com a atividade produtiva rural eram muito débeis, mesmo que muitos dirigentes fi zessem questão de frisar que “foram buscá-los

na roça” para o sindicato. Da mesma forma, alguns procuravam manter uma pequena propriedade rural, mais como símbolo – ou para fazer valer como tal – de pertencimento à categoria (FETAEP, 09/07/1966; Entrevistas 5 e 26). Seja como for, nesse período, todo aquele que chegou à condição de presidente de sindicato abandonou as lidas agrícolas em troca da militância em tempo integral. O agricultor se tornou sindicalista “liberado” e passou a receber uma gratifi cação pelo exercício da função. Mas, daí em diante, ele não aspirava mais a continuar sendo um “trabalhador rural”, independentemente do que dizia. É como se o afastamento da atividade braçal signifi casse comodidade e ascensão social, um símbolo de prestígio.

Operou-se um verdadeiro desenraizamento do mundo rural, em que o ativista passou por um processo de “urbanização”, no qual a transferência do local de moradia para o centro urbano era o indicativo mais evidente. Pior ainda, acompanhando o êxodo rural, esses dirigentes não tomaram a iniciativa, ou não conseguiram manter seus descendentes no meio rural. A maioria esmagadora dos fi lhos dos sindicalistas pesquisados tornou-se cita- dina (Entrevista 22).

No momento em que esses sindicalistas ingressaram na carreira sindical, eram, do ponto de vista econômico e produtivo, representativos da “categoria”, à medida que compartilhavam uma série de características dos agricultores familiares. Mas mesmo os aprendizes de dirigentes já apresentavam algumas propriedades sociais que os distinguiam dos demais, como a capacidade de liderança e uma certa rede de relações que os diferenciava (Entrevistas 18 e 26). Portanto, eles foram escolhidos como mandatários muito mais por aquilo que os distinguia do que por aquilo que os assemelhava aos demais. À medida que o tempo passava e os dirigentes progrediam na hierarquia sindical, distanciando-se de sua condição de “trabalhador rural” e acumulan- do capital social e cultural, deixavam de ser socialmente representativos da “base” camponesa, para se tornar representativos da corporação dos chefes sindicais. Então, conforme se afastavam socialmente dos mandantes, mais adquiriam competência específi ca para exercer a função de mandatários, mais eles se tornavam profi ssionais da representação.

Podemos ir além nesse raciocínio dizendo que quanto maior é o dis- tanciamento em relação às “bases”, maior a autonomia da corporação, e o espírito de corpo se reforça. A legitimidade de representante depende mais do reconhecimento de seus pares, dos quais ele se aproxima nas altas esfe- ras da corporação, do que do respaldo da “categoria”. Em outros termos, a legitimidade que o dirigente poderá usufruir junto aos “trabalhadores rurais” passa a ser decorrência direta do apoio recebido dos sindicalistas. Assim, para ser dirigente estadual ou nacional, mais valia ser portador de um excelente histórico dentro do movimento sindical do que ser exemplar junto à “base”. Os serviços prestados dentro do campo sindical é que contavam para o pro- gresso na carreira (Entrevistas 5, 14 e 22).

Outro aspecto que contribuiu para reforçar esse espírito de corpo do sin- dicalismo rural pós-1964 foi o nepotismo. Além da permanência na direção da entidade por sucessivos mandatos, a agregação de membros da família (especialmente do presidente) foi também facilmente observável nessas or- ganizações (Entrevistas 4 e 5).

Acrescenta-se o papel centralizador e monopolizador da fi gura do pre- sidente não só para consolidar a corporação, mas para feudalizar o órgão sindical. Toda a vida sindical girava em torno da fi gura do presidente. Isso era ainda mais verdadeiro no sindicato local, onde a entidade e o seu presidente eram praticamente sinônimos. Os demais membros da diretoria – salvo o tesoureiro, que assinava os cheques da entidade – eram peças quase deco- rativas. Com raras exceções, não existia trabalho de equipe nos sindicatos (Entrevista 2). A própria FETAEP incentivou o que se convencionou chamar de “presidencialismo”; ela só recebia os presidentes de sindicatos. Embora houvesse outros membros liberados, o presidente era normalmente a única fi gura pública da entidade, além de concentrar, em suas mãos, todo o poder (Entrevistas 3, 5 e 6).

O fechamento do sindicalismo-FETAEP sobre si mesmo era tão forte que raramente ocorriam disputas eleitorais. A existência de chapas de oposição era tida como um “problema”; enquanto a chapa única era tida como atestado de desempenho sindical: “nunca tive... durante o período que eu fui aqui pre- sidente... oposição de chapa na Federação. Nunca tive!” (Entrevistas 5 e 10). Somente a partir dos anos 80, com o ressurgimento da esquerda no campo, é que o monopólio sindical começou a ser contestado, multiplicando-se os grupos de oposição sindical.

A linguagem era um outro elemento indicador da constituição da corpo- ração dos sindicalistas e do desenvolvimento do campo sindical enquanto espaço social relativamente autônomo. Ser sindicalista signifi cava dominar um saber-fazer particular, que implicava no conhecimento de um linguajar técnico específi co. Era preciso saber manejar um conjunto de conceitos e ex- pressões – notadamente jurídicos – completamente estranhos aos ouvidos dos leigos. Ao mesmo tempo em que ajudava a defi nir os contornos da corporação, o uso de uma linguagem “esotérica” funcionava como um sinal de distinção. O emprego adequado de um conjunto de conceitos e jargões próprios é que defi nia o pertencimento ou não ao grupo dos iniciados, funcionando como uma espécie de certifi cação (de qualidade) social.