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DECADÊNCIA, OCUPAÇÃO E EXPULSÃO

A Baixada é uma área cuja ocupação, bastante antiga, data ainda do século XVI. Dedicando-se, a princípio, ao cultivo da cana e à produção de açúcar, ela foi, aos poucos, perdendo terreno para a região de Campos, ao norte do estado. Igualmente o café teve por ali uma passagem, ainda que reduzida e localizada, antes de se fi xar no vale do Paraíba. Observava-se, assim, um gradativo desinteresse e um abandono daquelas terras pelos grandes proprietários (Santos, 1984, p.24).

A situação da Baixada, já no fi nal do século XIX, era de decadência, ruína e abandono. Seus rios e canais de drenagem deixaram de ser limpos e desobstruídos, o que levou ao alagamento de grandes trechos de terrenos e favoreceu a disseminação de doenças (Mendes, 1950, p.75-8).

Foi na década de 1930 que o Governo Federal iniciou a implementação de medidas sistemáticas de recuperação, não apenas da Baixada, apesar de ter sido ela o alvo das maiores atenções e investimentos, mas da Baixada Fluminense de maneira geral.8 Criou-se para tanto, em 1933, uma Comissão

de Saneamento da Baixada Fluminense. Essa comissão elaborou um plano geral coordenado para a região, abrangendo desde a realização de obras hi-

7 Entre os estudos sobre as Ligas Camponesas e a mobilização do campesinato nordestino

ver, particularmente, Camargo (1973).

8 Das obras realizadas, até o ano de 1944, em toda a extensão da Baixada Fluminense, a me-

tade, aproximadamente, incidiu sobre as áreas mais próximas à cidade do Rio de Janeiro. Cf.: Mendes (1950, p.113) e Lamego (1964, p.297).

dráulicas, que visavam a melhorar a salubridade e recuperar as áreas férteis, até o fomento da colonização das terras públicas e do desenvolvimento de culturas intensivas, passando pelo estabelecimento de uma rede viária e de transportes para o escoamento da produção (Góes, 1939, p.19-20). Tratava- se de reforçar o que se dizia ser a vocação agrícola da região, tornando-a um celeiro do Distrito Federal e do estado como um todo.

Embutida no plano estava já uma representação da Baixada como região de fronteira. É como se ela tivesse retornado, com o abandono e o alaga- mento, a um estado anterior à chegada do colonizador. Sua recuperação, assim, assumia o caráter de desbravamento. Com a recuperação, as terras poderiam receber pequenos lavradores, colonos, que, instalados em núcleos por um projeto dirigido e controlado pelo Estado, as tornariam produtivas.

Deve-se ressaltar, contudo, que a política de criação de núcleos coloniais bem como a idéia de formação de um cinturão verde ao redor do Rio de Janeiro não fi caram restritas aos anos 30. A partir da década de 1940, elas foram incentivadas, também, por crises de abastecimento vividas durante, e logo após, a Segunda Guerra Mundial (Arezzo, 1984, p.1).

Foram sete os núcleos coloniais criados no estado do Rio até o ano de 1955. Todos eles se localizavam na Baixada Fluminense e é interessante observar que apenas um, o de Macaé, estava fora da Baixada. Os outros eram os de Santa Cruz, situado parte no antigo Distrito Federal e parte no município de Itaguaí; o de São Bento, em Duque de Caxias; o de Tinguá, em Nova Iguaçu; o de Duque de Caxias, em Duque de Caxias e Magé; o de Papucaia, em Cachoeiras de Macacu; e o de Santa Alice, em Itaguaí (Arezzo, Barros, 1984, p.19-22).

Na verdade, a criação de núcleos e as grandes obras públicas realizadas na Baixada não parecem ter estimulado a produção agrícola na região. No início dos anos 50, grandes extensões de terra permaneciam incultas e o quadro de abandono persistia ali (Geiger, Mesquita, 1956, p.1).

É preciso ver, no entanto, que a recorrente caracterização da Baixada enquanto área abandonada e decadente representa apenas uma das faces da moeda. Ela se refere ao desinteresse dos grandes proprietários e à inexistên- cia, na região, de uma intensa atividade agrícola, com alta produtividade e baseada em métodos modernos. Com efeito, suas terras, além de nunca se terem tornado totalmente despovoadas, passaram a receber, já a partir das primeiras décadas do nosso século, um número crescente de lavradores que, em condições diversas, ali passaram a produzir juntamente com suas famílias.

A ação do Estado no sentido de recuperar a Baixada, associada à proposta de promover a sua colonização, ao reforçar a idéia de que a região dispu nha de terras disponíveis para serem trabalhadas, parece ter funcionado como fator de atração de lavradores. Não são poucas, dessa forma, as indicações de famílias que se fi xaram na área no momento em que se processava o seu saneamento. Algumas delas teriam, inclusive, chegado a trabalhar nas obras antes de ali se estabelecerem como lavradores.

Anteriormente mesmo a isso, porém, já era possível perceber um au- mento no fl uxo de lavradores e uma divisão de grandes propriedades da região. Relacionavam-se ambos os processos, em larga medida, à expansão da citricultura ali observada a partir do ano de 1910. Um grande número de pessoas para lá se dirigiu em busca de terras e trabalho, incentivadas, também, por um esquema publicitário que propalava as possibilidades de rápido enriquecimento proporcionadas por aquele cultivo. Dessa forma, municípios da região, como foi o caso de Nova Iguaçu, experimentaram, no período, taxas de crescimento demográfi co que eram das maiores do país (Mendes, 1950, p.100-2).

O impulso da citricultura se manteve forte até o início da década de 1940, quando difi culdades de exportação geradas pela Segunda Guerra Mundial fi zeram-no declinar. Entretanto, outro fator que contribuiu para esse declínio foi a própria intensifi cação do mercado de terras na Baixada, impulsionado pelo aumento da demanda. A grande valorização dos terrenos fez com que sua utilização para fi ns especulativos se tornasse mais interessante do que a produção. Assim, os pomares começaram a ser desativados em vastas áreas de municípios como Itaguaí, Nova Iguaçu, Magé e Itaboraí (Geiger, Mesquita, 1956, p.36). Um dos desdobramentos desse processo foi, justa- mente, a liberação de lavradores envolvidos de formas diversas na produção. A especulação, da mesma forma que o fl uxo de lavradores para a Baixada, foi alimentada, ainda que de maneira indireta, pela ação do Estado, que, através das obras e investimentos, provocou a valorização das terras. Tal possibilidade já era, aliás, prevista pelos idealizadores do plano coordenado de recuperação da região elaborado na década de 1930. Pensava-se, então, na criação de uma taxa de saneamento para as áreas particulares. Incidindo sobre a valorização dos terrenos, essa taxa seria inversamente proporcio- nal à extensão cultivada, o que, supunha-se, obrigaria ao aproveitamento (Góes, 1939, p.61).

Em 1939, o engenheiro Hildebrando Araújo de Góes, que esteve à fren- te do plano de recuperação da Baixada, chamava a atenção para o fato de que várias companhias vinham sendo criadas com o objetivo de promover a colonização particular na região. Elas adquiriam grandes propriedades abandonadas, retalhavam-nas e vendiam os lotes a prazo (Góes, 1939, p.58).

De fato, o loteamento foi uma das atividades que, a partir de então, mais se expandiram na Baixada.9 Todavia, se, a princípio, ele contribuiu

9 Geiger, Mesquita (1956, p.179) caracterizam a atividade loteadora, no início da década de

1950, como uma “verdadeira febre” existente na Baixada. Mais da metade dos loteamentos existentes em Duque de Caxias, por exemplo, segundo Beloch (1986, p.206), foi aprovada até o ano de 1960. Desse total, 41,6% haviam sido aprovados entre 1950 e 1960. Em termos de área loteada, os números são ainda mais expressivos. Do total dessa área, 80% haviam sido aprovados pela prefeitura até 1960. No caso de Nova Iguaçu, dos 1.835 loteamentos aprovados até o ano de 1976, cerca de 64,9%, isto é, 1.191, referem-se ao período 1940-9.

para alimentar a perspectiva de acesso à terra, aliando-se às propostas go- vernamentais de colonização da região, já a partir de meados dos anos 40 se constituiu no principal móvel das tentativas de expulsão de lavradores que ali se estabeleceram.

A Baixada experimentou, particularmente no período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, um acentuado processo de transformação de seu espaço rural em urbano. Esse processo se deu, de forma mais intensa, em áreas próximas à antiga Capital Federal, como Duque de Caxias e Nova Iguaçu, que passaram a abrigar um grande contingente de trabalhadores urbanos e de antigos camponeses que migravam para as cidades do Sudeste (Araújo, 1982, p.206). Aqui, portanto, os loteamentos passaram a ter carac- terísticas urbanas, não se voltando para a produção agrícola.10

Se, de início, esse processo atingia apenas as áreas vizinhas aos centros urbanos, onde novos bairros seriam construídos, no seu desenrolar, ele pas- saria a invadir, igualmente, os terrenos mais distantes, onde edifi cações não seriam realizadas de imediato, ou mesmo nunca (Geiger, Mesquita, 1956, p.179). Na verdade, assistia-se na Baixada, juntamente com a transformação do espaço rural em urbano, à valorização da terra nua em detrimento da produtiva, à imposição de uma visão da terra enquanto ativo fi nanceiro e não enquanto meio de produção.11

Nesse contexto, as expulsões passaram a representar, naquela região, a possibilidade de um corte defi nitivo com a terra. Incidindo não sobre um ou outro lavrador, mas sobre um grande número e sobre várias fazendas, as expulsões indicavam que aquele que se retirasse de uma área teria difi - culdades para ser reabsorvido em outra. Conformava-se, assim, um quadro propício à luta.12