• Nenhum resultado encontrado

Mario Grynszpan

A

ação política do campesinato, bem como sua participação em grandes processos de transformação social, tem sido tema de diversos estudos. Autores como Barrington Moore Jr. (1975), Theda Skocpol (1979), Eric Wolf (1973 e 1979), Hamza Alavi (1969), Eric Hobsbawm (1978) e Teodor Shanin (1979), apenas para citar algumas das contribuições mais signifi cativas, debruçaram-se de forma sistemática sobre a questão. Em que pesem suas diferentes abordagens e ênfases distintas, uma preocupação central permeia todos os trabalhos, qual seja, a de detectar os fatores que levam à mobilização dos camponeses ou a permitem.

A forma como a questão é colocada indica que, via de regra, o ponto de partida das análises é o campesinato já constituído enquanto grupo, previa- mente à ação política. Essa ação marcaria, portanto, a sua emergência, sua chegada ao proscênio saindo das sombras em que se encontrava. Mesmo quando existe uma preocupação com o processo de formação do grupo em si, o que se observa é que a refl exão é conduzida de modo tal como se ele já existisse em latência, objetivando-se com a agregação de indivíduos para a realização de seus interesses.

Ao tomar os grupos sociais como dados, as análises, em geral, perdem a perspectiva de que eles podem ser formados na e para a ação política, ou ainda de que essa ação pode conferir novos contornos a grupos preexisten- tes. Deixam, assim, de atentar para o fato de que a forma objetivada como os grupos se apresentam, com nomes próprios, organizações, porta-vozes

*Este artigo foi publicado, pela primeira vez, na revista Dados, v.33, n.2, de 1990. Agradeço ao editor de Dados, Charles Pessanha, pela autorização para a reprodução do texto neste livro.

e reivindicações, é fruto de um conjunto de ações e de lutas, de todo um trabalho de defi nição, de agrupamento, de representação e de mobilização.1

Tais questões constituirão o fi o condutor deste artigo. Nele, procurarei mostrar como a ação política pode ser, ela mesma, conformadora de grupos e atores sociais. Buscarei, porém, analisar o processo não como fruto da ação isolada de um único agente, mas, sim, como resultante da inter-relação e da concorrência entre diversos agentes pelo controle e pela representação do novo ator.

O estudo estará centrado no caso das lutas pela terra no estado do Rio de Janeiro, no período que vai de 1950 a 1964. Particularmente rico e revelador para as questões que serão enfocadas, o estado do Rio não tem sido, até aqui, objeto de forte atenção por parte dos cientistas sociais estudiosos da mobilização camponesa que marcou o Brasil nos anos anteriores ao golpe de 1964. Os trabalhos existentes têm se voltado, em particular, para a região Nordeste, principalmente o estado de Pernambuco, e para a atuação das Ligas Camponesas.

Abrindo espaço na imprensa, as ações do campesinato fluminense assumiram uma feição radical incluindo, não raro, choques armados com a polícia. Elas eram, comumente, caracterizadas pelos grandes periódicos como rebeliões, levantes e guerrilhas rurais.2 Jornais como O Estado de S.

Paulo e Correio da Manhã, tecendo analogias com a recém-ocorrida Revolução

Cubana, denunciavam que estaria em curso, no estado do Rio, um plano de “agitação” do meio rural.3

Os principais contendores nesses confl itos, tal como se pode observar no noticiário, eram, de um lado, lavradores estabelecidos na terra havia alguns anos, referidos, em geral, como posseiros, e de outro, grileiros, falsos proprietários interessados em despejá-los. Era, assim, em particular contra os despejos que se dava a mobilização dos lavradores fl uminenses.

Os despejos parecem ter se constituído, então, num dos mais sérios problemas sociais existentes na área rural do estado. Eles ocorreram numa extensa região, abrangendo desde municípios localizados mais ao norte, como São João da Barra, Miracema e Macaé, até outros como Vassouras, Paracambi e Barra Mansa, passando por Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Silva Jardim e Trajano de Moraes. Atingindo um grande número de lavradores, eles assumiram um caráter dramático e violento, com tiros, queima de casas e destruição de plantações.

1 Valho-me aqui, em larga medida, da refl exão de Luc Boltansky (1982) sobre a formação dos

executivos, na França, enquanto grupo social.

2 Ver, por exemplo, os jornais Luta Democrática, Rio de Janeiro, 8 e 9/10/1961, p.1 e 3; Última

Hora, edição do estado do Rio de Janeiro, Niterói, 9/5/1963, p.2; Jornal do Brasil, Rio de

Janeiro, 30/6/1963, 1o caderno, p.25.

3 Ver Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28/9/1962, 1o caderno, p.3, e 6/4/1963, 1o caderno,

Ainda que disseminados por boa parte do estado, os despejos, de acor- do com os jornais e com os depoimentos de pessoas que os vivenciaram, foram mais recorrentes, mais intensos, na região a que se referem como

Baixada.4 A região chegou mesmo a ser comparada pelo jornalista Maurício

Hill, do diário Última Hora, ao Nordeste brasileiro que, assolado pela seca, se caracterizava por uma gritante situação de miséria e pelo êxodo periódico de camponeses que abandonavam as terras. Para Hill, os despejos faziam da Baixada um “Nordeste sem seca”.5

Esse quadro, contudo, não parece ser corroborado pelos dados estatísticos referentes à área rural da Baixada. Pelo contrário, eles indicam que a situação, no que diz respeito à saída de lavradores das terras, não era mais crítica na re- gião do que no restante do estado. É certo que ocorreu ali, entre 1950 e 1960, uma queda de 19,4% e de 37% no número de trabalhadores temporários e no de parceiros nos estabelecimentos rurais, respectivamente. Entretanto, para o Rio de Janeiro como um todo, o decréscimo foi mais acentuado, tendo alcançado 20,8% no caso dos trabalhadores temporários e 56,1% no dos parceiros. Já o número de trabalhadores permanentes que, no estado, no mesmo período, sofreu uma redução de 21,4%, aumentou em 9,4% no conjunto da Baixada (Grynszpan, 1987, p.61-2). Ao lado disso, o número de estabelecimentos rurais controlados por arrendatários na região, que em 1950 somava 522, subiu para 1.554 em 1960. Tal aumento se deu, particu- larmente, entre pequenos e médios arrendatários (Grynszpan, 1987, p.37). É, no entanto, no caso dos posseiros, que a defasagem entre a Baixada dos jornais e da memória dos atores, por um lado, e a dos censos, por outro, se mostra de maneira mais evidente. Os dados estatísticos não nos indicam que eles tivessem sido, de fato, a categoria de lavradores mais atingida

4 A expressão Baixada era bastante utilizada pelos jornais, nos anos 50 e 60, para designar um

conjunto de municípios fl uminenses localizados nas cercanias da cidade do Rio de Janeiro e que foi palco não apenas de despejos, mas também de reações por parte dos lavradores. Ela abarcava áreas como Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Magé, Itaguaí, Itaboraí e Cachoeiras de Macacu, diferindo, portanto, do termo Baixada Fluminense, tanto em sua acepção usual quanto naquela dos geógrafos de então. Tal como usualmente empregado, Baixada Flumi- nense tem um referencial eminentemente urbano e, por isso mesmo, reúne municípios como São João do Meriti e Nilópolis, que, já naquele momento, não tinham maior importância agrícola. Quanto aos geógrafos, que até aquele período desenvolveram intensas pesquisas nas áreas rurais do estado, o seu critério defi nidor de Baixada Fluminense era o fi siográfi co. Dessa maneira, a região abrangia toda a extensa faixa de terras localizada entre a Serra do Mar e o Oceano Atlântico, vindo desde o município de Campos até o de Itaguaí. Bastante ampla, essa concepção inclui áreas por demais diversas e que não têm signifi cação para os processos que estou analisando. Assim, trabalharei, simplesmente, com a categoria Baixada, mantendo o sentido em que era empregada, tanto por jornais quanto por atores de época, quando se referiam à mobilização camponesa no Rio de Janeiro. Eventualmente, sempre que necessário reportar-me à Baixada Fluminense, fá-lo-ei no sentido fi siográfi co.

5 Maurício Hill, “Baixada, Nordeste sem seca”, Última Hora, edição do estado do Rio de Janeiro,

pelos despejos. Pelo contrário, sua presença aumentou de forma bastante acentuada no momento mesmo em que os despejos se intensifi caram, isto é, na década de 1950.

Praticamente não fi gurando nos quadros do censo relativos aos municí- pios da Baixada em 1940, já em 1950 os posseiros passam a controlar 253 estabelecimentos rurais, saltando, em 1960, para 1.596. De 0,03% do total de estabelecimentos recenseados na região em 1940, eles passam, em 1960, a ocupar 24,2% (Grynszpan, 1987, p.37).

Na verdade, essa defasagem é apenas aparente. Os despejos tiveram sua maior concentração na Baixada não porque ali os deslocamentos de lavra- dores das terras tivessem sido mais intensos, mas, sim, porque foi a partir daquela região, justamente, que eles começaram a se organizar, resistindo contra as expulsões. As denúncias de ameaças de despejo nos jornais eram um dos meios utilizados pelas lideranças camponesas na luta pela permanên- cia na terra. Era a própria luta, a resistência, a denúncia, que transformava uma tentativa de retirar um grupo de lavradores de uma área num despejo. Através da luta, portanto, conformava-se o despejo como categoria política.

É somente a partir da ligação entre luta e despejo que o aumento conco- mitante das tentativas de expulsão e da presença dos lavradores na Baixada, principalmente como posseiros, pode ganhar sentido. No processo de luta contra os despejos, lavradores estabelecidos como parceiros, moradores ou arrendatários, além dos próprios ocupantes de áreas aparentemente abandonadas, mas que passaram, posteriormente, a ser reivindicadas, co- meçaram a reconhecer-se como posseiros, negando a autoridade daquele que se dizia proprietário e que, por seu turno, passou a ser alcunhado de grileiro. Além disso, as áreas onde as resistências contra os despejos foram bem-sucedidas, ainda que temporariamente, acabaram por se transformar em pólos de atração para outros lavradores que para lá rumaram em busca de terras. E mais, novas áreas passaram a ser ocupadas por posseiros, num movimento organizado, em larga medida, por entidades camponesas.

Já no início dos anos 60, as ocupações de terras na Baixada se intensi- fi caram bastante e, com elas, também a presença de posseiros. Os jornais noticiavam que numerosas famílias de lavradores movimentavam-se pela região à procura de fazendas onde pudessem se estabelecer. Firmava-se, portanto, uma imagem da Baixada como área de terras disponíveis para ocu- pação, atraindo posseiros de outras regiões do estado e mesmo de fora dele.6

As dimensões e as características desse processo, como mostrarei ao longo do presente artigo, estão diretamente associadas à ação política que, na Baixada, não apenas as lideranças camponesas mas também outros

6 Ver, por exemplo, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.5, e 30/6/1963,

1o caderno, p.25; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28/6/1962, 1o caderno, p.3; Última Hora,

agentes que com elas competiam, e mesmo o Estado, exerceram sobre os lavradores. Foi através da ação e da disputa políticas que se conformaram e que foram nomeados, os grupos que se mobilizaram na região, assim como também os próprios inimigos contra os quais se mobilizaram.

Essa ação, entretanto, como buscarei ressaltar, fez mais do que atribuir novos contornos e identidade aos grupos existentes. Através de um intenso trabalho de arregimentação, de agrupamento e de mobilização de lavrado- res para a ocupação de terras, constituíram-se grupos de posseiros, o que terminou, igualmente, por imprimir a uma região antiga como a Baixada características de área de fronteira. Tal fato, sem dúvida, confere especifi - cidade e relevância ao caso fl uminense, diferindo-o do pernambucano no qual a ação das Ligas Camponesas incidiu sobre foreiros já localizados nos engenhos, e no qual as invasões de terras foram bastante reduzidas.7

Se a intervenção política foi fundamental para a defi nição dos atores e do espaço privilegiado das lutas pela terra no estado do Rio, cabe antes perquirir, contudo, as condições que, na Baixada, tornaram os lavradores propensos à ação.