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Um elemento importante para entender a eclosão das lutas, na Baixada, é o fato de que a subordinação que se impôs aos lavradores ali não se re-

Anteriormente a isso, ou seja, até 1939, apenas dez loteamentos haviam sido aprovados. Cf.: Bernardes (1983, p.46).

10 O próprio Ministério da Agricultura relatava, no começo da década de 1950, que boa parte

das terras próximas aos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro, mantinha-se inculta, visando apenas à especulação. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 3/5/1952, 1° caderno, p.3.

11 Ignácio Rangel (1978, p.67-8) observava que, no início dos anos 60, a terra vinha se tornando

um ativo de grande procura pelas camadas de mais alta renda, como forma de fazer frente à erosão da moeda.

12 Como observa Barrington Moore Jr. (1975, p.544-5), novas e súbitas modifi cações na vida

dos camponeses, incidindo ao mesmo tempo sobre um grande número de pessoas, podem representar uma quebra nas regras e costumes aceitos, sendo, portanto, decisivo para levá- los à revolta.

vestiu das mesmas características de outras regiões do estado, como, por exemplo, o norte, onde também ocorreram expulsões, mas onde as lutas foram escassas. No caso da Baixada, a entrada de lavradores nas terras era relativamente recente e, de maneira geral, seus proprietários não exerce- ram com continuidade o papel de organizadores da produção. Os vínculos entre eles e os lavradores não eram, dessa forma, tão consistentes quanto no norte fl uminense, zona de propriedade consolidada, onde os donos de terras gozavam de grande poder e prestígio.

A presença de grileiros contribuiu para esgarçar ainda mais os laços de subordinação que prendiam os lavradores na Baixada. Isso se deu porque, em larga medida, quem promovia as expulsões, o grileiro, era não aquele que exercia a dominação direta sobre o lavrador, mas, sim, um elemento externo, alguém vindo de fora da área. Assim, quando surgia o grileiro, e muitas vezes eram vários deles reivindicando um mesmo terreno, era para ele, e não para aquele que dominava diretamente, que, a princípio, se dirigia a hostilidade do lavrador. A continuada pressão e as constantes tentativas de expulsão, no entanto, fariam reverter a situação.

A concorrência pela terra, a disputa para se impor como proprietário terminaria por contribuir para a ilegitimação mesmo daquele que, de início, ocupava a posição de proprietário.13 Em decorrência dela, os lavradores,

que não se sentiam donos das terras, iriam aos poucos relativizando sua situação, desconfi ando que aqueles que se diziam donos também não o eram e tornando-se propensos à luta.14

Se o “efeito involuntário” da presença dos grileiros na Baixada foi o de ser um dos principais elementos responsáveis pela eclosão das lutas, ele foi também, a par disso, o de permitir aos lavradores a construção de uma identidade própria.15 Essa identidade, forjada na luta contra aqueles mesmos

grileiros, expressou-se através da categoria posseiro.16

13 Ver o caso da Fazenda Penha-Caixão, em Duque de Caxias, relatado por José Pureza (1982,

p.18-21), antigo líder camponês fl uminense.

14 O antropólogo Eric Wolf (1973, p.394-96; 1979, p.267) já havia chamado a atenção para

o fato de que o esgarçamento dos vínculos de dependência e subordinação pode conferir mobilidade tática a um grupo camponês, tornando possível o seu ingresso numa rebelião. Em seu conhecido estudo sobre a participação do campesinato em alguns dos grandes processos de transformação política ocorridos no século XX, o autor observa que, num contexto de difusão do sistema capitalista, a emergência de novas elites, que passariam a competir com as antigas pelo controle dos recursos sociais, poderia comprometer a própria base da dominação tradicional.

15 Devo a Moacir Palmeira a sugestão de pensar as lutas, em parte, como um “efeito involun-

tário” da presença dos grileiros na Baixada.

16 Em sua refl exão sobre as condições sociais que determinam a obediência e a revolta, Moore

Jr. (1978, p.87-8) desenvolve o argumento de que a quebra da autoridade, que se constitui numa relação vertical, possibilita a redefi nição das redes horizontais de solidariedade e leal- dade, bem como a construção de uma nova identidade ou de uma identidade politicamente efetiva para os antigos dominados.

Relativamente comum na Baixada, um dos fatores que certamente ali favoreceram a grilagem, a apropriação indébita de terras, dando margem a diversos litígios, foi a indefi nição quanto aos limites e à titulação dos terre- nos. Boa parte das terras não apenas da Baixada, mas da Baixada Fluminense de maneira geral, não havia. Quando existiam, indicavam, na maioria das vezes, limites imprecisos (Geiger, Mesquita, 1956, p.64-5).

Tal confusão se dava, sobretudo, no que tocava às terras públicas, para as quais não se dispunha de um cadastro. Assim, em áreas como a Fazenda Nacional de Santa Cruz, sujeitas a sucessivas apropriações, nem mesmo o Ministério da Agricultura tinha exata noção das terras que ainda eram patrimônio da União e das que se constituíam em propriedade privada por título legítimo (Silva, 1961, p.2).

Se isso ocorria, entretanto, é preciso ver que nem todos aqueles que pro- moviam despejos eram, realmente, grileiros ou falsos proprietários, apesar de serem assim referidos. Da mesma forma, por detrás do termo posseiro, empregado para identifi car os lavradores, que vinham sendo alvo dos despe- jos, encontramos, em larga medida, parceiros, moradores ou arrendatários. Na verdade, a afi rmação da categoria posseiro e também a de seu ter- mo oposto, grileiro, estava relacionada a um trabalho das lideranças dos lavradores, de seus advogados e também de outros agentes que atuavam no campo fl uminense, no sentido da construção de uma representação le- gítima das lutas. Buscava-se, através da dominação dos atores, impor uma forma de percepção dos confl itos que favorecesse os atos e as pretensões dos lavradores e, ao mesmo tempo, inviabilizasse os de seus inimigos.17

A representação que se procurava afi rmar constituía-se, de alguma for ma, em uma reapropriação daquela que viria nos anos 30, e que havia embasado os projetos e a ação do Estado na Baixada, qual seja, a de que a região se constituía em uma área de fronteira, agreste, e que deveria ser conquistada. Nesse sentido, é interessante observar que, nas versões sobre as lutas, o momento de chegada dos lavradores é recorrentemente apontado como a década de 1930 e o início da de 1940. A Baixada seria, então, uma área abandonada, inculta, com terras aparentemente sem dono, tomada por matas e pântanos. Os próprios posseiros a teriam desbravado, saneado, valorizado, enfi m, com o trabalho nela investido. Somente após isso é que os grileiros começariam a aparecer, dizendo-se donos, pleiteando a terra, promovendo os despejos.18

Tal era a versão apresentada, mesmo quando as coisas não se haviam passado dessa forma. Tinha-se em vista com isso, além de neutralizar as pre-

17 Sobre a ação de nominação como imposição de uma visão legítima do mundo social, bem

como seu lugar nas lutas políticas, ver Bordieu (1984).

18 Ver, por exemplo, Imprensa Popular, Rio de Janeiro, 15/3/1952, p.5, 8/3/1953, p.4, 22/1/1954,

tensões dos grileiros apresentando os despejos como algo injusto e ilegítimo, favorecer a própria luta jurídica dos lavradores para permanecerem na terra.

Era com base no instituto do usucapião que as organizações campone- sas buscavam, durante os anos 50, garantir o acesso à terra pela via legal, resistindo contra os despejos. Para tanto, o que se exigia era que a posse fosse mansa, pacífi ca e ininterrupta, por um intervalo de tempo que po- deria variar de dez a vinte anos, de acordo com o caso. Além disso, não poderia ser considerado possuidor aquele que, em relação de dependência para com outro, conservasse a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas (Código civil brasileiro, 1970, p.189). Dessa forma, a reivindicação da posse da terra passava, necessariamente, pela negação da dependência e dos direitos daqueles que se diziam donos, assim como também pelo seu estranhamento, pelo convencimento de que se tratava de grileiros e pessoas desconhecidas. Constituía-se o Poder Judiciário, por isso mesmo, numa das arenas privilegiadas das disputas pela nominação, desempenhando os advogados um papel decisivo.

Ao lado da luta jurídica, outras formas de ação eram conjugadas pelas organizações camponesas nas resistências contra os despejos. Os lavrado- res eram orientados no sentido de permanecerem na terra o máximo que pudessem, procurando neutralizar as violências e as investidas dos grileiros. Ao mesmo tempo, eram promovidas manifestações nas cidades, dirigidos apelos às autoridades para que tomassem providências e denunciadas as ocorrências nos jornais.

As manifestações patrocinadas pelas organizações camponesas ocorriam, geralmente, na capital do estado, Niterói. Os lavradores promoviam pas- seatas buscando o apoio da população e procuravam, também, sensibilizar os deputados estaduais e os juízes em idas à Assembléia Legislativa e ao Tribunal de Justiça. Tentavam, ainda, no Palácio do Ingá, sede do governo, obter o concurso do governador.

O que se tinha em vista com a produção desses eventos era trazer para a cidade, tornando-a visível, a situação vivida pelos lavradores. Dessa ma- neira, buscava-se transformar aquilo que, normalmente, seria uma tentativa localizada de expulsão, resolvida através de jagunços ou da própria polícia, num despejo, numa questão social. Gerava-se assim um debate em torno da questão, atraía-se a solidariedade dos setores urbanos, ao mesmo tempo em que se tentava ilegitimar a ação dos grileiros, difi cultando eventuais decisões em favor destes por parte da polícia ou da Justiça.19

Da mesma forma, ao incluírem a Assembléia Legislativa e o Palácio do Ingá nos trajetos das passeatas de lavradores, as organizações camponesas procuravam tornar os despejos um problema político. Assim, as manifesta-

19 Para uma refl exão sobre as manifestações como eventos políticos voltados para a produção

ções contribuíam para o reconhecimento dos posseiros no campo político, produzindo, no interior deste, um processo de tomadas de posição a respeito deles e de suas reivindicações.20

As denúncias através dos jornais, assim como as manifestações, também conferiam visibilidade aos problemas locais, trazendo-os ao conhecimento nacional. Além de buscarem a formação de uma opinião pública favorável aos lavradores, as denúncias contribuíam, igualmente, para o seu reconhe- cimento político. Desse modo, o que estava em jogo no noticiário, mais do que o simples registro, era a própria disputa pela afi rmação de uma visão legítima dos lavradores e de suas lutas.

A representação que se procurava produzir dos lavradores, através das manifestações e dos jornais, era articulada com a luta jurídica. O que importava era caracterizar os lavradores como posseiros, a fi m de obter o controle da terra com base, a princípio, no usucapião.

Em sua argumentação, as organizações camponesas procuravam, igual- mente, mascarar as ocupações recentes de terras que, incentivadas por elas mesmas, vinham se tornando recorrentes na Baixada. Lavradores de diversas procedências eram reunidos por aquelas organizações e dirigidos para áreas onde vinham ocorrendo resistências, ou mesmo para novas terras sem dono ou que vinham sendo griladas.

Quando se tentava despejar os novos posseiros, o argumento de defesa que as entidades camponesas utilizavam era o mesmo das resistências, procurando mostrar que não eram posses recentes. Para justifi cá-lo, os la- vradores eram orientados no sentido de que, logo que entrassem nas terras, construíssem casas e preparassem o terreno.

Até o fi nal dos anos 50, as ocupações apareciam como resistências de antigos posseiros contra o assédio dos grileiros. Já no início dos 60, contudo, elas passariam a ser feitas de forma aberta.

É preciso ver que aquele era um momento de crescente politização da questão agrária em nível nacional. O movimento camponês se projetava de forma evidente na cena política, alimentando o debate em torno da reforma agrária e dos instrumentos necessários à sua implementação, entre esses o mecanismo da desapropriação de terras, previsto pela Constituição vigente.21

As organizações camponesas com sua estrutura mais consolidada con- seguiam uma integração maior, movendo quadros de fazendas e mesmo de municípios próximos para as áreas onde se verifi cavam confl itos. A solidariedade e o apoio de setores urbanos e de parlamentares, fundamen- tais para o sucesso das lutas dos lavradores, tornavam-se igualmente mais consistentes. Os novos governadores do estado passavam a reconhecer os posseiros, atentando e mostrando-se receptivos às suas reivindicações.

20 Sobre a noção de campo político ver Bordieu (1981).

Nesse contexto, o que passavam a buscar as lideranças era não mais o usucapião, mas sim, expondo a violência e a radicalidade das lutas, carac- terizar os locais onde vinham ocorrendo despejos como áreas de confl ito, de tensão social. Seu objetivo era forçar a desapropriação daquelas áreas e sua entrega aos lavradores.

Tendo em vista caracterizar o litígio, de forma a obter a desapropria- ção, as organizações camponesas deslocavam quadros e advogados para diferentes pontos do estado a fi m de, através de pesquisas em cartórios, inclusive, identifi car terras passíveis de ocupação. Em suas pesquisas e consultas buscavam delimitar áreas cuja ocupação teria boa acolhida do governo, facilitando uma solução favorável aos posseiros.22

Da mesma forma que os grileiros, portanto, as organizações camponesas procuravam, em suas ações, benefi ciar-se da situação de indefi nição quanto à propriedade das terras da Baixada. Mais ainda, elas precisavam dispor de recursos semelhantes aos dos próprios grileiros que, para se apoderar de uma área, necessitavam, igualmente, do acesso a cartórios, dos serviços de advogados e, inclusive, do controle de armas.

Os contingentes de ocupantes eram compostos, na maioria dos casos, de lavradores sem terra, vindos de diversas partes do estado, e mesmo do país, e que eram agrupados para a ação. Ou seja, os grupos de posseiros eram formados pelas organizações camponesas para as ocupações. E, à medida que essas ações eram bem-sucedidas, logrando os posseiros permanecer na terra, as áreas ocupadas, da mesma forma que nos casos de resistência, se transformavam em pólos de atração para novos lavradores. Era comum, portanto, naquelas áreas, o aumento constante do número de posseiros. Para isso contribuíam, mais uma vez, as organizações camponesas, que se incumbiam de difundir as notícias, chamando outros lavradores para engrossar as ocupações (Grynszpan, 1987, p.170-6).

Foi a partir da lutas, por conseguinte, que se afi rmou a presença de posseiros na Baixada. Isso se deu tanto porque moradores, parceiros e arrendatários, em luta contra os despejos, passaram a ser identifi cados e a se identifi car como posseiros – identifi cando os seus opositores, em contrapartida, como grileiros – quanto porque a Baixada passou a ser vista como área de terras disponíveis para ocupação, atraindo lavradores de outras regiões do estado e mesmo de fora dele.23 Tal fato, entretanto, deve

22 Entrevista com Oay Fonseca, antigo advogado da Federação das Associações de Lavradores

do Estado do Rio de Janeiro (Falerj), realizada em 1986.

23 Um levantamento cadastral realizado na Fazenda Piranema, em Duque de Caxias, no começo

de 1964, revelou que, dos 222 posseiros ali instalados, apenas 97 eram fl uminenses, provindo o restante de outros estados. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 4/3/1964, 1o caderno, p.4. Ver

também, por exemplo, o caso da Fazenda Cachoeira Grande, em Magé, em Lindoso (1984, p.37).

ser visto como um efeito da ação política, não podendo ser pensado isola- damente da atividade das organizações camponesas, dos advogados e de outros agentes que atuavam no campo fl uminense. Cabe, por isso mesmo, deter-me na caracterização desses agentes.