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Com o golpe de 1o de abril de 1964 e seus desdobramentos, houve certa

expectativa de resistência em Goiânia e posteriormente em Trombas. Na capital, a direção do PCB aguardava um posicionamento favorável de Mauro Borges, na mesma linha de compromisso com a legalidade quando da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart. Alguns militantes, inclusive, planejaram transferir a sede do governo para Trombas, diante das difi culdades de resistência efetiva, por Goiânia estar próxima a Brasília, e, de lá, desencadear um movimento de retorno à constitucionalidade. Con- tudo, essas esperanças rapidamente se esvaeceram quando Mauro Borges tomou posição ao lado dos golpistas, os mesmos que iriam cassá-lo pouco tempo depois. Paralelamente, em Brasília, o deputado comunista Marco Antonio Coelho igualmente ensaiou um plano de resistência que incorpo- raria a região de Trombas como cenário maior. Articulado com o ex-tenente Walter Ribeiro e com Valter Waladares, que, como estudante, fora um ativo participante da luta de Trombas, planejaram se reunir na região e, dali, iniciar uma resistência efetiva ao golpe em curso. Marco Antonio Coelho adverte em suas memórias que essa possibilidade somente se efetivaria com o fi rme posicionamento de João Goulart em defesa de seu mandato e com ele à frente do processo de resistência, intenção que logo se frustraria com a ida de Goulart para o exílio, sem esboçar a mínima reação (Coelho, 2000, p.267).

Em Trombas, ocorreu o reencontro do Núcleo Hegemônico bem como o de outros militantes advindos da capital, Goiânia. Debateu-se intensamente sobre a possibilidade de resistir ao golpe, tendo se chegado a duas posições ao fi nal: uma de José Porfírio, defendendo a resistência aos golpistas, e outra, que aglutinava os demais membros do PCB, que argumentavam em con- trário. Com as notícias indicando que não havia reação nacional em curso e diante da impossibilidade de atuar isoladamente, acabou prevalecendo a posição de recuo. As armas existentes foram escondidas em uma grota isolada e, em seguida, as principais lideranças caíram na clandestinidade. Não demoraria muito, a região seria invadida por tropas policiais e um interventor nomeado para a prefeitura de Formoso. A Associação e os conselhos deixaram de existir.

Ainda assim, um núcleo comunista se rearticularia em Trombas pouco tempo depois do golpe, atuando muito timidamente. Mas o mito da Repú- blica de Formoso se fazia presente e militantes do PCdoB, com o objetivo de viabilizar a Guerrilha do Araguaia, começaram a sondar as possibilidades de cooptar os posseiros de Trombas para aquele projeto. Mais tarde, o Par- tido Revolucionário dos Trabalhadores (uma dissidência da Ação Popular) começou a desenvolver intensa atividade na área com o mesmo objetivo, com um pouco mais de sucesso. Este último conseguiu inclusive a adesão

do José Porfírio. Em meados dos anos 70, com a detecção da Guerrilha do Araguaia, a região foi invadida de forma extremamente violenta, desta feita por tropas do Exército e também da polícia militar. Dezenas de posseiros foram presos e muitos deles violentamente torturados. Algumas das armas escondidas em 1964, bem como algumas munições, foram encontradas, todas em péssimo estado de conservação. Desta feita, muitos dos antigos dirigentes comunistas, bem como muitos posseiros, foram confrontados com uma cópia da Constituição de Trombas, documento forjado ainda no pré-64, que objetivava criar uma situação de tensão e proporcionar condi- ções para a intervenção do exército na área. O documento8 sustentava em

seu preâmbulo que:

O povo das Trombas e Formoso, por seus representantes, em Assembléia Constituinte, para organizar juridicamente o Estado das “Trombas” sob o regime Comunista, decreta e promulga a seguinte:

CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DAS “TROMBAS”

Art. 1o – O Estado das Trombas está situado no Brasil Central, paralelo 14 norte

de Goiás, 250 quilômetros de Brasília, parte integrante e autônoma sob Regime RUSSO, exerce em seu território todos os poderes que explicita ou explicitamente, lhe são vedados à Constituição de Moscou.

Art. 2o –São poderes do Estado, o executivo e judiciário, combinado com exe-

cutivo regido pelo Sr. Ditador JOSÉ PORFÍRIO DE SOUZA. Art. 3o – è vedada a publicação e a liberdade de pensamento.

Art. 4o – O Estado das Trombas, fi ca compreendido dentro dos seguintes limites:

ao norte com Parangatu e Peixe; ao leste, com Niquelândia; ao sul, com Pirenopólis; ao oeste, com Itapeci.

Art. 5o – O Estado das Trombas é administrado sob o regime de comissão exe-

cutiva, com poderes especiais, assim compreendidos: Comissão da Cana Brava, Comissão do Rodovalho, Comissão do Vai e Vem, Comissão do Formoso, Comissão de Estrela do Norte (vargem do coelho), Comissão do Morro de Campos, Comissão da Chapada, Comissão da Fazenda de São Sebastião, Comissão da Fazenda de Santa Maria, Comissão de Camponorte e Comissão de Trombas, Capital do Estado.

Art. 6o – São autoridades do Estado das Trombas: José Porfírio de Souza, Ditador.

E são os seguintes chefes de Comissão: José Márquez Vianna, Joaquim Correia, Tiago Custódio Batista, Burandanga, João Soares, José Ribeiro, Rodolfo Fernandes. São orientadores de Comissão: Deputados Mendonça Neto, Chico de Brito, Dr. Everardo de Souza, Dr. Domingos Velasco, Dr. José Ludovico de Almeida (governador de

8 Há uma cópia muito apagada dessa Constituição no arquivo do DOPS localizado na Uni-

versidade Federal de Goiás. O documento também é citado em vários jornais entre 1971 e 1972, coincidentemente, o período mais agudo da repressão na área. Sugestivamente, consta nele como data de sua elaboração 2 de março de 1957; mas vários entrevistados do autor sustentam que fora elaborado e passara a circular em fi ns 1963. Sobre este aspecto ver Cunha (2007) e Esteves (2007, p.132-3).

Goiás) Ubiratan de Lemos e José Medeiros (repórteres de O CRUZEIRO), Dr. José Gomes e Dr. Teles (Secretários de Segurança Pública e Interior do Estado de Goiás).

Art. 7o – É vedado o intercâmbio comercial com qualquer estado do Brasil.

Art. 8o – São imunes e impunes os que praticam o assassínio a bem de nosso

regime e livre o direito de matar.

Art. 9o – Os Chefes de Comissão são invioláveis no exercício de seu mandato.

Art. 10o – É vedada a penetração de policiais, de qualquer estado dentro do

perímetro do Estado das Trombas.

Art. 11o – Serão impunes e invioláveis cidadãos de qualquer parte do mundo

que praticarem crime e auxiliar no Estado das Trombas.

Art. 12o – As terras de propriedade privada serão divididas aos intrusos e inva-

sores, pelas comissões executivas.

Art. 13o – O Estado das Trombas elegerá reforços de Comissões para manter a

ordem do regime.

Art. 14o – O Estado das Trombas *********** qualquer povos circunvizinhos de

auxiliar o crescimento de nosso regime e criar novos estados sob regime russo. Art. 15o – Compete privativamente o Ditador:

I – Ser jurado, promulgar e fazer publicar leis ****** decretos e regulamentos para fi el execução.

II – Nomear e demitir os chefes de Comissão e reforçar os postos militares de excepcional importância, com trincheiras necessárias, para a defesa das **** aqui constituídos e das terras que compõem do Estado das Trombas.

Art. 16o – Esta lei foi constituída em 02 de março de 1957 e agora publicada e

distribuída ao presidente da República do Brasil e a todos os estados do Brasil pra que dela tomem conhecimento e faça respeitar em todos esta constituição.

Art. 17o – Revoga-se as disposições em contrário.

José Porfírio – Ditador João Soares – Secretário

Os artigos eram de tal ordem estapafúrdios que nem foram anexados aos IPMs sobre Trombas. Mas, a partir da segunda invasão, desapareceu qualquer atividade de esquerda em Formoso e Trombas. Aos poucos, os antigos posseiros foram se mudando e desapareceu o grupo originário dos anos 50, sendo essa uma virtual política de estado. O quadro fundiário e político resultante na região é revelador por este depoimento:

Apesar de 64 e tudo que veio depois a nossa luta, nós entendemos assim que nós nunca vamos esquecê a união. Que nós estamos calado, porque ainda não pode fazê nada, só uma coisa, não ajuda eles (o governo). Mas nós aprendemos a lição, o coletivo, e vimos que não é terra que importa, é o sistema de ter terra. Porque depois que acabou a Associação a maioria dos camponeses teve que ir embora, porque acabou o mato, a terra só servia para gado e nós tivemos que ir por falta de recurso de recuperá a terra e pela repressão. (Camponês W. in: Fernandes, 1988. p.130)

Desata-se o Nó Górdio de Formoso e Trombas, lamentavelmente, pelos militares. Fecha-se um ciclo histórico, inicia-se outro, ainda a ser resgatado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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. O camponês e a história: a construção da Ultab e a formação da Contag nas

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O MASTER

E

AS

OCUPAÇÕES

DE