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A expectativa do Reino de Deus na palestina na época de Jesus

CAPÍTULO II O Reino de Deus na perspectiva da Palestina no século I, na Época de

2 O funcionamento e a estrutura do Reino de Deus na Palestina no século I, e os movimentos

2.1 A expectativa do Reino de Deus na palestina na época de Jesus

Há um consenso virtualmente unânime de que a noção de Reino de Deus era a centralidade para o anúncio de Jesus, uma noção cujas implicações políticas deveriam ser

reconhecidas à luz de seu uso na literatura da época, seja ela judaica ou pagã. Entretanto, nem todo mundo estava preparado para aceitar a ideia de que os escritos apocalípticos constituem o cenário apropriado para compreender o uso que Jesus fazia dessa imagem. Jesus ao discutir a relação da noção do Reino de Deus, ele opta por um entendimento sapiencial e não apocalíptico de sua pregação. O modelo de dominação monárquica que Jesus acolhe em suas palavras e aforismos é, segundo ele de um reino dos destituídos. Um reino realizado, e não apenas proclamado82.

A realidade escatológica afirma que o reino de Deus é universal, ou seja, nele podem entrar todos, embora nem todos de modo igual. Mas mesmo sendo universal, contata-se que o Reino de Deus na época de Jesus é unicamente dos pobres. E se isso é assim, o Reino é por essência totalmente parcial. Essa afirmação tão evidente biblicamente, mas tão difícil de aceita e ver as intermináveis discussões sobre a atual opção pelos pobres. Foi preciso qualificar como preferência para opção não ser tão radical, e por isso, ela tem suas raízes no Antigo Testamento, que faz dessa parcialidade algo essencial. Se tantas vezes se argumenta como no Antigo Testamento para compreender a noção de Jesus, será preciso ver também a parcialidade que percorre o Antigo Testamento para que possamos compreender que tipo de Reino Jesus encontra na sua época e depois anuncia a todos.

No acontecimento do Antigo Testamento, o Êxodo mostra que Deus é parcial para com o povo oprimido, mas não a todos e se revela e liberta. Essa parcialidade é mediação essencial de sua própria revelação. Deus não se revela, primeiro como Ele é, e depois, se mostra parcial para com os oprimidos. É antes e através de sua parcialidade para com os oprimidos que Deus revela sua própria realidade. E isso é mantido durante todo o Antigo Testamento. Deus é pai dos órfãos e defensor das viúvas, nos profetas Deus chama meu povo não a Israel todo, mas aos oprimidos de Israel. Javé é defensor de Israel, o Go’el, o que defende os pequenos, e na medida em que Israel os defender, ele continuará sendo seu Deus83.

A parcialidade do Reino não deveria estranhar. Se apocalipticamente Jesus acentua seu caráter escatológico e sua vinda iminente, profeticamente sublinha a parcialidade de Deus como Deus dos pobres. E essa parcialidade de Deus, também em termos de Reino, está presente na época de Jesus e no Antigo Testamento. Significa que o Rei esperado, a utopia, não é qualquer rei, mas o rei parcial para com os oprimidos, a justiça do Rei não consiste primordialmente na emissão de um verídico imparcial, mas na proteção do que se prestar aos

82 FREYNE, Sean. Jesus, um judeu da Galileia – nova leitura da história de Jesus. São Paulo: Paulus, 2008,

pp.131-2.

desvalidos, às viúvas e aos órfãos. Era essa forma de expressar a utopia em termos da realeza em Israel e nos povos vizinhos, distribuir justiça, pois ao mesmo tempo aparece na linguagem do esperado juiz justo. Quando na história se idealizou a função do juiz ou que se chegou a chamar juiz, foi exclusivamente para ajudar aqueles que por serem fracos, não podem se defender, os outros não precisam dele Quando a Bíblia fala de Javé juiz ou do juízo, cujo sujeito é Javé, pensa precisamente no significado do que vimos na raiz, salvar os oprimidos da injustiça.

O Reino de Deus é a centralidade da tradição do Antigo Testamento, como uma forma de exprimir o desígnio de salvação de Deus e a esperança do povo. Israel, de fato, passou por inúmeras vicissitudes, problemas e tragédias, mas manteve sempre uma esperança baseada em sua fé. Não confinou Deus a um nebuloso além, mas teve a experiência de sua passagem pela história, e de uma forma concreta. No Egito Deus escutou os clamores de um povo oprimido e desceu para libertá-lo, e essa foi a origem de sua confissão de fé e de sua esperança, fazendo com que fosse formulada sua terminologia de realeza, reinado. Ele vem para reger a terra, Ele governará o mundo com justiça e os povos com equidade (Sl 96,13).

Quando Deus reina, o mundo se torna o reino de Deus, por isso, antes de reino, é preciso mencionar o reinado de Deus. Quanto ao conteúdo, esse reinado torna real, antes de tudo, o ideal anelado de justiça. Deus mostra que reina no mundo pelo fato de ser bom e misericordioso com todas as suas criaturas (cf. Sl 86,15s;145,9), transforma uma realidade histórica social injusta em justa, na qual reina a solidariedade e na qual não há pobres (cf. Dt 15,4).O reinado de Deus deve ser compreendido como libertação, não só como ação benéfica e como parcial, pois os oprimidos estão, por direito, no centro do olhar e da ação de Deus. Tem uma dimensão histórica, pois trata de opressões objetivas, embora o olhar vá abrindo-se à transcendência social, pois é libertação e justiça para um povo, ainda que o olhar vá dirigindo-se ao pessoal. E, como dissemos, é questão teológica, pois Deus revela sua realidade ao passar, e não de outra maneira pela história84.

Digamos que o reinado de Deus também tem uma dimensão pessoal. Deus reina quando os seres humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus, reproduzem em suas vidas a bondade e a compaixão de Deus, a justiça e a reconciliação. Deus reina quando o coração de pedra se transforma em coração de carne (Ezequiel), quando o ser humano chega a conhecer em intimidade a Javé (Jeremias).

84 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação – pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo:

Jesus vinha dessa tradição. Anunciou a chegada iminente desse reino e deu sinais de sua presença: curas, expulsão de demônios, acolhida de pecadores desprezados, refeições com eles. É a Boa Nova, a Boa Noticia de Deus, o Evangelho, especialmente para os necessitados. Colocou-se a serviço deles e os defendeu de seus opressores até seu final na cruz, e mesmo no meio da escuridão, manteve-se a esperança da vinda do Reino. Pensou que o fim chegaria depois de sua morte, e que até mesmo sua morte poderia adiantar a chegada dele. Depois de sua morte, porém seus discípulos reconheceram que em Jesus Deus estava reinando na história: “Jesus passou fazendo bem e curando todos oprimidos pelo diabo”, o que interpretaram como uma passagem de Deus: “porque Deus estava com Ele” (At 10,38).

No Evangelho, fica mais explicitado do que no Antigo Testamento o reinado de Deus. Não sobre um povo, mas sobre as pessoas. Jesus anuncia a Boa Noticia às pessoas bem concretas e as tornam reais para elas. E exige delas, pessoalmente, uma forma de vida para que Deus reine em Israel. Exige o seguimento, uma práxis do reino e um configurar-se segundo a mensagem e a pessoa do próprio Jesus, na linha das parábolas do Samaritano, do Filho Pródigo, das Bem-Aventuranças. E exige, também, participar de seu destino de perseguição e cruz, por causa do confronto profético com o mundo opressor.

Finalmente, Jesus convida os seus a chamar a Deus de Abba – como Ele mesmo tinha o costume de chamar. E exige que eles deixem o Abba ser Deus, mistério não manipulado, que pode exigir a denúncia profética, a inserção em conflitos, o correr perigos e, também, o não saber, percorrer caminhos desconhecidos, a disponibilidade até o fim, até o meu Deus, porque me abandonaste. Isso deverá configurar o modo de ser dos seus, de modo esplendido, que o desígnio de Deus é que cheguemos a ser filho no Filho. É a forma em que Deus reina sobre as pessoas85.