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Um aspecto importante do “Jesus histórico” é mostrar a sua missão para os povos da América Latina 

CAPÍTULO I A Cristologia na perspectiva da América Latina

3 Os conceitos principais e as categorias da missão de Cristo

3.3 Um aspecto importante do “Jesus histórico” é mostrar a sua missão para os povos da América Latina 

Um dos pontos principais em relação à cristologia da América Latina refere-se à relevância libertadora do Jesus histórico, mostrando que a prática de Jesus dentro desse contexto é uma prática que revela a sua missão, a sua história, e não o Cristo da fé. Leonardo Boff escreve que existe um isomorfismo¨ estrutural de situações, ou seja, uma forma igual entre a época de Jesus e o nosso tempo, principalmente no que tange à opressão e dependências objetivas vividas subjetivamente como contraditórias ao plano histórico de Deus39. A prática de Jesus é entendida como historificações daquilo que significa o Reino de Deus, uma mudança libertadora da situação. Nesse ponto, Jesus se revela dentro de sua história como aquele que se aproxima dos projetos dos grupos dos oprimidos e marginalizados.

A cristologia latino-americana não revela em seu registro o que se deve compreender por milagres interpretados como ação de Deus dentro de um projeto de curas maravilhosas, e sim dentro de um sentido, onde ocorre uma interferência de Jesus, que quer mostrar que deverá ocorrer uma libertação total. As atitudes de Jesus encarnam a sua humanidade, e por isso ele se coloca diante dos mais fracos que também são humanos. Essa atitude de Jesus encarna o Reino e corporifica o amor do Pai, fazendo com que ele se aproxime daqueles que todos evitavam, que são os pecadores, impudicos, bêbados, leprosos, meretrizes ou em uma só palavra os marginalizados social e religiosamente, não é por um mero espirito humanitário, mas porque a histórica atitude amorosa do Pai para com esses pequenos e pecadores. Sua situação não representa a estrutura final da vida, não estão definitivamente perdidos, pois nesse sentido, Deus pode libertá-los de todas as opressões.

38 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há Salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo,

Paulinas: 2008, pp. 122-123.

A práxis de Jesus possui um eminente caráter sócio-político e busca alcançar uma estrutura na sociedade e da religião de sua época. Ele não se apresenta como reformista acético à maneira dos essênios nem observantes da tradição como os fariseus, mas simplesmente como um libertador profético40.

O anúncio e as práticas de Jesus procuram visualizar uma nova imagem de Deus e um novo acesso a Ele, revelando-se o Deus de infinita misericórdia e de bondade que ama os ingratos e os malvados (cf. Lc 6,35), que se aproxima em graça, além do que fora prescrito e exigido pela Torá. Esse Deus não é um em si, fora de toda a história, que foi revelando-se epifanicamente, mas é um Deus que se revela na história enquanto realiza seu Reino e com isso transforma toda a situação de sofrimento. Jesus na Cristologia latinoamericana deve ser primeiramente pensado a partir de sua história, vida, morte e ressureição e posteriormente a partir do futuro, ou seja, do Reino que vai implantar como total libertação dos mecanismos do passado e como plenitude de vida ainda não experimentada. Portanto, o acesso a Jesus não se faz primeiramente pelo culto, pela observância religiosa ou pela oração, isso são mediações verdadeiras, mas em si ambíguas, então afirmar-se que o acesso privilegiado e sem ambiguidade se faz pelo serviço ao pobre, no qual o próprio Deus se esconde.

A prática libertadora do Jesus histórico constitui o caminho mais seguro para o Deus de Jesus Cristo. Quando falamos da palavra libertadora, destacamos uma situação relacionada às relações sociais. A sociedade de sua época estava muito estratificada: distinguiam-se próximo e não próximo, puros e impuros, judeus e estrangeiros, homens e mulheres, observantes das leis e povo ignorante, homens de profissões de má fama, enfermos considerados pecadores. Mas nesse ponto Jesus solidariza-se com todos eles e isto lhe vale difamações de glutão e beberrão, amigo de coletores de impostos e desacreditados (cf. Mt 11, 19), e por isso ocorre ataques impiedosos a Ele em relação a isso.

A cristologia latino-americana está voltada à justiça e ocupa o lugar central no anúncio de Jesus, pois, Ele declara abertamente a todos: “Bem-aventurados os pobres”, não por olhar a pobreza como virtude, mas por ela sendo fruto de relações injustas entre os homens. Provoca a intervenção do Rei messiânico, cuja primeira função é fazer justiça e defender os fracos em seu direito. Jesus rechaça também a riqueza que vê dialeticamente como consequência da exploração dos oprimidos. Ele qualifica simplesmente de desonesta (cf. Lc 16,9). O ideal de Jesus não é uma sociedade de opulência, e nem de explorações, mas sim uma sociedade de justiça e fraternidade para todos.

A Cristologia da libertação da América Latina tem a função de não concordar com as injustiças, e ao contrário denunciar através de críticas todo poder de dominação (cf. Lc 22,25- 28), desmitificando sua eficácia e sua qualidade de mediação para Deus. A relativização operada por Jesus atingiu também o poder sagrados dos Césares, aos quais nega caráter divino (cf. Mt 22,2) e à condição de pretensa ultima instância (cf. Jo 19,11). A paz romana, baseada na dominação, não encarna o Reino de Deus41.

O Jesus histórico ocorre dentro da sua história que tem ainda futuro e nos faz pensar em uma compreensão que postula a protelação da parusia,ou seja, que significa que é mister relativizar essa atitude do Jesus histórico e atribui-las ao condicionamento e limites de suas categorias culturais de expressão. Isso não exime a teologia da necessidade de pensar na tomada de poder politico como forma legitima e adequada de proporcionar mais justiça aos marginalizados; tal poder, enquanto se submete à lei do serviço e por isso mesmo não se absolutisa,pode construir uma forma histórica de concretização do intencionado pela ideia de Reino. E isto porque Jesus não propugna um amor despolitizado, des-historizado, mas um amor politico, ou seja, situado e que tenha repercussões visíveis para o homem42. O apelo de Jesus a toda renúncia de vingança em favor da misericórdia e do perdão nasce de uma fina percepção na realidade histórica: sempre haverá estruturas de dominação, mas isso não deve nos levar ao desânimo ou assumir essa estrutura, ao contrário, impõe-se a necessidade do perdão que é a força do amor capaz de viver com as contradições e superá-lo de dentro, essa é a verdadeira prática de Jesus, como ponto de partida para a verdadeira prática da cristologia latinoamericana.

A cristologia da América Latina relata que o Jesus histórico em todo seu contexto de missão aborda o aspecto da justiça (“Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu” – cf. Mt 5,10). A justiça é um ponto fundamental da prática, e do ministério de Jesus. Para Jürgen Moltmann, a justiça significa “estar em ordem”, encontrar-se na relação certa, ou seja, significa a correspondência e concordância de estar próximo da verdade, mas pode significar “ser capaz de ficar de pé”, ter firmeza e encontrar razão para existir e assim é ter um contexto de existência43.

No Antigo Testamento, justiça não significa concordância com uma norma ideal ou com o logus do ser eterno, mas significa estar em relação com uma comunidade histórica,

41 BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis, Vozes: 2009, p. 30. 42 BOFF, Leoanardo. Jesus Cristo Libertador. Petrópolis, Vozes: 2009, p. 31.

43 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança: estudo sobre os fundamentos e consequências de uma

instituída pela promessa e pela fidelidade. Quando Israel louva a justiça de Deus, e relembra com gratidão sua fidelidade às promessas da aliança, visível no decurso da história de Israel. A justiça de Javé é sua fidelidade à aliança, e por isso, a sua justiça acontece, e de fato ela pode ser narrada e confiada plenamente para o futuro, e esperada através da salvação de sua justiça. Quando os homens colocam sua confiança na fidelidade de Deus à aliança e vivem de acordo com sua aliança, segundo a promessa e sua ordenação, eles dão a razão a Deus e alcançam a justiça. Alcançam a justiça não só para com Deus, mas principalmente uns com os outros em relação às coisas.

A história da justiça de Deus evidentemente não é reconhecida na própria história de Israel e na história humana, mas no decorrer e,no destino de toda criação. Por justiça de Deus entende-se o modo como Ele, na liberdade de suas ordenações, mantém a fidelidade a sua palavra e a sua ação e guarda a sua estabilidade. Nesse aspecto, acrescentamos que tudo aquilo que deve sua existência à ação de Deus, isto é, toda a criação tem necessidade da justiça de Deus. A justiça de Deus é o fundamento da existência, e acrescentamos que é a razão da constância no ser. Sem sua justiça e sua fidelidade nada pode subsistir e tudo afundaria no nada.

A justiça de Deus é universal, ela diz respeito à justificação da vida humana e ao fundamento da existência de todas as coisas, se é da justiça de Deus que se espera a justificação do ser humano, e assim chamamos a sua harmonização consigo mesmo, com seus semelhantes e com toda a criação, significa que ela pode se tornar o conceito que inclui uma escatologia universal que espera do futuro da justiça um novo ser para todas as coisas. A justiça de Deus, não se refere a uma renovação do que existe, mas ao novo fundamento do ser e uma nova ordem de vida da criação em geral. Com a vinda da justiça se espera uma nova criação44.

No contexto da cristologia latinoamericana, diante do fator histórico revelado pelo Cristo, a justiça de Deus acontece agora e aqui, e como a prática de Jesus foi anunciar a todos o Reino e a justiça, é importante que o Evangelho se torne manifesto pelo fato de anunciar o evento da obediência de Jesus até a morte de cruz, evento esse de sua entrega à morte, sua ressureição e sua vida como a vinda da justiça de Deus para os injustos. A realização e revelação de uma nova justiça de Deus para os pecadores se tornam assim o mistério de Jesus Cristo que é revelado na promessa do Evangelho: Jesus foi entregue à morte por nossos

44 MOLTMANN, Jürgen. Teologia da esperança: estudo sobre os fundamentos e consequências de uma

pecados e ressuscitou para nossa justificação (cf. Rm 4,25). “Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que Nele nos tornássemos justiça de Deus” (cf. 2Co 5,21). Portanto, dessa forma por obra de Deus Nele se realiza a reconciliação dos não reconciliados45.

4 A Cristologia latinoamericana mostra situações adversas dos pobres e oprimidos da