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A experiência e a pessoa deficiente visual

1. O que é experiência?

1.2. A experiência e a pessoa deficiente visual

Como pensar a experiência das pessoas com deficiência visual?

Se pensarmos na metáfora da experiência como um momento de passagem, de travessia, perpassada por perigos e insegurança, quais seriam os desafios para uma pessoa que não enxerga?

Amiralian (1997, p. 22) diz que quando pensamos na pessoa cega a associamos a “[...] uma pessoa sofrida que vive nas „trevas‟ e em eterna „escuridão‟”. Para as pessoas que enxergam a cegueira é escuridão, dificuldade de locomoção,

sentimento de perda e desolação. O sujeito cego é visto como um ser incapaz de agir, que vive na “escuridão” total, tanto no sentido físico quanto no psicológico.

A imagem que sempre nos vêm à mente quando pensamos na travessia sem o sentido da visão é a imagem que o homem do final da Idade Média possuía do mundo. Isto é, para além daquilo que era conhecido. Nos confins do mundo havia um domínio de monstros perigosos e ocultos, prestes a atacar. O desconhecido era muito perigoso.

Figura 1: Publicado em: Novi Orbis Indiae Occidentalis, 1621: Various incarnations of the "Land Down Under"3.

Descrição da figura gravura criada pelo cientista-artista Honório Philopobus em 1621 que foi

originalmente publicada pela, Novi Orbis Indiae Occidentalis. Atualmente foi publicada no livro de Joseph Nigg, The Book of Fabulous Beasts. A gravura é um mapa que conta a lenda de São Brandão que saiu da Irlanda em uma embarcação junto com alguns monges em busca do paraíso. No centro tomando grande parte da gravura encontramos a baleia Jasconius, um peixe gigante do tamanho de uma ilha. Sua cabeça está voltada para a margem direita. Do alto de sua cabeça jorram dois jatos de água em direção ao continente europeu e africano. Na frente da baleia perto do canto superior direito encontramos parte do mapa da Europa representando a península ibérica. No canto inferior direito entramos parte do mapa da África Ocidental, onde se encontram a Mauritânia e o Senegal. No centro perto da margem inferior está um barco com três homens. O barco esta voltado para a diagonal esquerda na direção oposta à África. Dois homens estão sentados de costas para o continente Africano. Eles têm aparência de monge, cabeça raspada no alto e roupas característica dos franciscano ou beneditino, ambos leem um livro. O terceiro homem está de pé com um remo na mão. O homem pé possui barba e cabelos longos e uma auréola em volta de sua cabeça, que tradicionalmente representa uma santidade. Ele está na frente dos dois monges, no lado oposto do barco. Acima de sua cabeça está a baleia-ilha. No dorso das costas da baleia vemos várias figuras ajoelhadas em semicírculo, no centro há uma figura de costas com paramentos de padre, à sua frente um altar com um crucifixo. Mais para a esquerda seguindo o corpo da baleia Jasconius, está uma caravela atracada sobre o dorso da baleia perto de seu rabo. Acima da caravela atracada, na sua

3 Unsual and Marvelous Maps. Disponível em: <http://www.webofentertainment.com/2009/08/unusual- and-marvelous-maps.html> Acesso em: 20/08/2010

parte central da margem superior encontramos a ilha de São Brandão. Seguindo a margem superior em direção ao canto esquerdo há duas caravelas apontando para direção da diagonal esquerda. Entre o rabo da baleia e o centro da margem esquerda encontramos mais uma caravela. Abaixo da caravela, entre a ilha baleia e o canto inferior esquerdo estão as ilhas canárias e a ilha da fortuna. No canto esquerdo encontramos uma caravela navegando para o lado esquerdo.

A pessoa com deficiência visual parece ser alvo constante de interrogação por parte daquele que possui o sentido da visão.

Como ela consegue? Como ela entende? Como ela aprende?

Esses pensamentos nos remetem ao nosso interesse em propiciar experiências diferenciadas à pessoa com deficiência visual, mais explicitamente em oferecer oportunidades de conhecer o mundo e o mundo cultural. Então, como dar acesso às poéticas artísticas, às experiências do mundo, tendo como referencial não a percepção da pessoa com visão, mas sim a dos demais sentidos?

Estar diante de uma pessoa cega ou com baixa visão é estar diante de experiências distintas das nossas, e este contato coloca-nos diante de diferentes percepções, diferentes maneiras de perceber o mundo.

Masini salienta que “para poder saber do DV (deficiente visual), é, pois, necessário aproximar-se de seu corpo e da experiência que ele tem através dos sentidos de que dispõe, de maneira total e não fragmentada” (MASINI, 1994, p. 91).

Para que uma pessoa com deficiência visual organize-se no mundo, é preciso fornecer oportunidades para a exploração de todas as experiências perceptivas.

Por ser a visão o sentido que mais nos coloca em contato com as coisas, principalmente a distância e em detalhes, parece no mínimo intrigante pensar como o cego estrutura seu mundo mental e como se apropria do conhecimento das coisas que não pode vivenciar pelo tato, olfato e audição – como o conceito de lua e nuvem, por exemplo. (ORMELEZI 2000, p. 37).

Então, qual é a chave de acesso para tornar visível o invisível, dizível o indizível, pensável o impensável?

Em nossa mente, o não-ver é identificado com a incompreensão, incompetência, ou incapacidade de compreender e conhecer com profundidade verdades do mundo.

Tenho claro na memória a lembrança do momento em que olhei para meu bebê cego e pensei: O que faço agora? Como poderei me comunicar com ele? Qual forma de educá-lo? Como ele irá conhecer o mundo, aprender com as outras crianças, sem enxergar? (SIAULYS, 2007, p. 180).

Segundo Vygotski (1997), o que realmente decide o destino de uma pessoa não é a deficiência em si, mas sim as consequências sociais e as representações

psicossociais. Em vista disso, é preciso saber de seu passado para traçar-lhes um futuro, o que significa a “necessidade dialética de compreender os fenômenos em eterno movimento, descobrir suas tendências e seu porvir determinado por seu presente” (VYGOTSKI,1997, p. 45). “Assim como a vida de todo organismo está

orientada pela necessidade de adaptação biológica, a vida da pessoa está orientada pelas necessidades do ser social”4(VYGOTSKI, 1997, p. 45, tradução nossa).

Pensando nestas questões levantadas por Vigotski, da maneira como encaramos a deficiência como uma insuficiência, uma carência de algo que não pode ser restabelecido, o não-ver pode vir a significar para muitos dos videntes o fracasso nas relações humanas e no desenvolvimento profissional e intelectual. A representação da falta de visão habitualmente é a de falta de possibilidades, e se alguém não enxerga não aprende, não convive com o outro, não se preocupa com. Temos a impressão de que é muito difícil compartilhar as coisas do mundo com pessoas que possuem uma deficiência sensorial.

Ormelezi (2008, p. 152) afirma: “muitas vezes, pais, professores e a sociedade

confundem a não visão com a não existência, pondo em dúvida a capacidade de aprender, desenvolver-se e relacionar-se”.

Vygotski (1997) assinala que uma criança com alguma imperfeição não é inevitavelmente uma criança deficiente. O grau da sua imperfeição e da sua normalidade irá depender da compensação social. Esse autor é enfático em afirmar que, dos pontos de vista pedagógico e psicológico, uma criança cega ou surda não difere em nada de uma criança normal. O cego ou surdo é capaz de ter uma vida ativa como todas as pessoas; o que difere é a ausência de uma das vias que percebe e analisa os elementos exteriores da natureza. Portanto, em sua educação deve haver uma substituição de uma das vias por outras, para que possam analisar o ambiente exterior, reordenar o mundo em partes singulares com as quais estão vinculadas nossas reações ao meio, que são os vínculos condicionados.

O tato no sistema de conduta do cego, e a visão no surdo, não desempenham o mesmo papel nas pessoas que vêem e escutam normalmente: as obrigações e funções do tato e da visão em relação ao organismo são outras: eles devem criar uma enorme quantidade desses

4 [...]

“la exigencia dialéctica de comprender los fenómenos en eterno movimiento, descubrir sus tendencias y su porvenir, determinado por su presente.” “Así la vida de todo organismo está orientada por la exigencia biológica de la adaptación, la vida de la personalidad está orientada por las

vínculos com o ambiente – vínculos que nas pessoas normais recorrem a outras vias-. Daí é que vem a sua riqueza funcional – adquirida pela experiência – que, erroneamente, acreditavam ser inata própria da estrutura orgânica5 (VYGOTSKI, 1997, p. 77, tradução nossa).

Seguindo o pensamento de Vigotski, entendemos que a pessoa cega não se sente imersa nas trevas, que a cegueira não é uma desgraça, mas que se converte em desgraça em função da reação social. “A cegueira é um estado normal e não patológico para a criança cega, e ela a percebe apenas indiretamente, secundariamente, como resultado de sua experiência social refletida nela”6 (VYGOTSKI, 1997, p. 79, tradução nossa).

Somente a cegueira ou outros defeitos parciais não transformam o indivíduo em deficiente. A deficiência perturba o curso normal do contato da criança com a cultura de seu meio. Cultura essa que está adaptada a uma pessoa sem defeitos, ou problemas, físicos ou mentais. O que torna uma pessoa cega, ou com baixa visão, deficiente, é sua exclusão da sociedade, do mundo cultural, do convívio com os outros. Esse mesmo autor (VYGOTSKI, 1997) coloca que a cegueira não é apenas a falta de visão, mas uma reestruturação de todo o organismo e da personalidade. Desta forma a cegueira, ao criar uma nova configuração da personalidade, oferece nova força e reorganiza de forma criativa e orgânica a psique do homem. Por isso, a cegueira não é um defeito, mas uma fonte de revelação, uma abertura para novas possibilidades.

Se colocarmos em dúvida as capacidades de construção e reconstrução de saberes desses indivíduos, estamos restringindo as oportunidades de contato com o mundo, com as coisas e com a sociedade. Restringem-se também as possibilidades desses indivíduos tornarem-se sujeitos formadores, com capacidade de agir e transformar, limitando-os a sujeitos da informação que apenas recebem, como se nada passasse por eles.

5 El tacto en el sistema de la conducta del ciego, y la vista en el sordo, no desempeñan el mismo papel que en las personas que ven y oyen normalmente: las obligaciones y funciones del tacto y de la vista con respecto al organismo son otras: deben crear una enorme cantidad de tales vínculos con el ambiente – vínculos, que en las personas normales, recorren en otras vías-. De ahí proviene su riqueza funcional –adquirida en la experiencia- que erróneamente se tomaba por innata, propia de la estructura orgánica.

6 La ceguera es un estado normal y no patológico para el niño ciego, y él lo percibe sólo indirectamente, secundariamente, como resultado de su experiencia social reflejada en él.

Masini (2007) e Siaulys (2007) concordam que, para que uma pessoa com deficiência visual possa ter oportunidades de conhecer o mundo, de se iniciar nos mistérios do mundo, é preciso compreender seu modo de estar no mundo. “Faz-se, pois, necessário acompanhá-la na totalidade de sua maneira de ser: como age, como se comunica e se expressa, como sente, como pensa” (MASINI, 2007, p. 21).

Siaulys (2007) fala da importância da intervenção precoce como forma de oferecer oportunidades de experimentações do mundo, de aguçar a curiosidade e colocar a pessoa cega dentro do mundo familiar, explicando, descrevendo e compartilhando modos de conhecimento.

Foi com brincadeiras, conversas, contato corporal e sua participação em tudo o que acontecia ao redor que fomos encontrando o caminho, juntas. Procurava brinquedos e inventava brincadeiras, conversávamos, explicava- lhe tudo o que acontecia em casa. (SIAULYS, 2007, p. 181).

Anaute e Amiralian (2007) esclarecem-nos sobre a importância da intervenção precoce como forma de propiciar aos pais uma orientação de como se relacionar com seu filho com deficiência, oferecendo um “contato adequado, eficaz e autêntico com o meio que os circunda, permitindo, assim, que venham a desenvolver um sentido real de eu, do outro e da realidade”. Essas autoras acreditam que é pela mediação nas relações sociais que o homem se constrói. “Acreditamos que o bebê necessita da presença segura da mãe, que lhe inspire a fé em si mesmo e no mundo. O bebê só tem a possibilidade de usar os seus mecanismos mentais se o contato com a mãe-ambiente for suficientemente bom” (ANAUTE e AMIRALIAN, 2007, s/n). A qualidade do ambiente no qual esse bebê cresce é que será geradora das suas possibilidades de desenvolvimento. “A formação da identidade dessas crianças só se dará por meio da interação com os outros” (ANAUTE e AMIRALIAN, 2007, s/n). O que se busca é que essas pessoas tornem-se seres capazes, responsáveis, e que consigam explorar todas as suas habilidades e potencialidades, conseguindo ainda interagir na sociedade de forma afirmativa e positiva.

[...] Construir um ser como indivíduo total, integrado, habitando um corpo, tendo capacidade de se relacionar com outros seres humanos respaldado por um ego fortalecido, é o objetivo fundamental dessa intervenção precoce com os pais, que serão instruídos a propiciar essas condições, permitindo, assim, a entrada dessas crianças no mundo e na sociedade (ANAUTE E AMIRALIAN, 2007, s/n).

Quando isso não é possível de acontecer, pessoas com deficiência visual muitas vezes acabam sendo encarceradas dentro de seu próprio mundo, deixam de se interessar pelo que acontece fora do seu alcance. Pais, professores, todas as pessoas que convivam com pessoas cegas ou com baixa visão devem se preocupar em proporcionar oportunidades de descobertas do mundo, de experiências compartilhadas para que efetivamente todos façam parte ativa da sociedade.

Masini (2003) propõe uma Aprendizagem Totalizante para que as pessoas com deficiência sensorial compreendam aquilo que lhes é transmitido. Essa aprendizagem considera a pessoa e sua experiência para oferecer condições de compreender aquilo que lhe é ensinado, e está ligada estreitamente aos conceitos da Aprendizagem Significativa da Teoria da Aprendizagem Significativa de Ausubel (TAS) e do Aproximar-se, da Daseinsanalyse.

A aprendizagem Significativa “é aquela que ocorre quando o aprendiz organiza, elabora e compreende o que é ensinado” (MASINI, 2003, p. 237).

Masini (2008) afirma que, de acordo com Ausubel, para que a aprendizagem tenha significado é preciso perceber, compreender e elaborar as informações que lhe são transmitidas. Além disso, é necessário “saber quais são as representações, e/ou os conceitos e/ou ideias que o aprendiz já dispõe, para que ele possa elaborar a nova informação a partir do que já conhece”. (MASINI, 2003, p. 238).

Masini (2003, p. 238), citando Boss, oferece-nos o conceito de aproximar-se – “estar aberto para o que se mostra do outro, levando-se em conta a totalidade de seu comportamento comunicativo” – e explica:

Aproximar-se na Aprendizagem Totalizante é estar aberto para o que o aprendiz revela de sua experiência vivida, dos objetos incorporados na sua vida, das brincadeiras com amigos, da sua linguagem e hábitos familiares. Envolve condições existenciais e não apenas o aspecto intelectual. Neste sentido é do aproximar-se das relações motivacionais da sua vida, que depende a possibilidade de alcançar os seus significados para propiciar-lhe uma aprendizagem significativa (MASINI, 2003, p. 238).

Masini (2008), ensinando sobre o Aproximar-se, chega ao conceito de solicitude oferecido por Heidegger, que seria ter consideração e paciência com o outro.

Consideração e paciência entendidos como a maneira como se vive com os outros por meio das experiências e expectativas de algo que possa vir a acontecer, do que foi vivenciado e experienciado. O ter paciência sempre pressupõe uma expectativa. Há duas maneiras extremas de solicitude ou de cuidado com o outro, onde existem, obviamente, também inúmeras

variações. Uma delas é o cuidar do outro pondo-o no colo, mimando-o, fazendo tudo pelo outro, dominando-o, ou manipulando-o, ainda que de forma sutil. A outra maneira de cuidado com outro é colocar-se diante do outro, propiciando que este assuma seus próprios caminhos, cresça, amadureça e encontre-se consigo mesmo. Esta é uma solicitude que propicia emancipação (MASINI, 2008, p. 70. Grifo do autor).

Por meio de sua pesquisa na Aprendizagem Totalizante, Masini chega à conclusão de que esta forma de contato entre educando e educador é capaz de oferecer sentido às coisas e de aproximar os dois polos, educando e educador, em um movimento dinâmico de troca de experiências, respeito mútuo e de desenvolvimento intelectual, pessoal e social.

Se for por meio de nossas experiências que compreendemos o mundo, e se são as nossas experiências que nos dão suporte para análise e reflexão, como é pensar a experiência estética da pessoa com deficiência visual? Podemos pensar em uma experiência estética sem o sentido da visão? O que é belo para o cego? Como ele percebe? Como ocorre a fruição por meio da arte? Como afirmar a potência criadora da arte para todas as pessoas? No item a seguir iremos nos aprofundar mais nesse assunto.