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2. O ateliê: percurso do contato do cego com arte

2.3. Os materiais adaptados

Para elaboração de materiais adaptados para o projeto Lygia Clark tínhamos que ter um olhar muito cuidadoso sobre a compreensão das obras, seu sentido e o que ela estava trazendo. Era preciso criar situações de aprendizagem que contagiassem os alunos, que fossem provocativas e que aguçassem a sua curiosidade. Era preciso construir momentos em que haveria um aprendizado ensinando e haveria um ensinar aprendendo. Martins (2010, p.119) citando Murray Louis, coreógrafo e bailarino, oferece-nos uma visão dos momentos significativos dentro de uma sala de aula:

Na rede de significações do mundo da arte, de seus produtores e fruidores, o educador com “uma rédea no criativo, uma rédea no técnico, uma rédea no estético, uma rédea no processo de vida, uma rédea no futuro e uma no passado, todas elas puxadas ao mesmo tempo. Com habilidade de um auriga romano, ele manobra essa impressionante energia em direção a uma meta. As Musas se detêm para observar. Outra trajetória já foi percorrida; outra aula foi dada”

Para desvelar os mistérios da arte tínhamos também que desvelar os mistérios do perceber da pessoa com deficiência visual. Queríamos iniciar nossa trajetória a partir das obras bidimensionais de Lygia Clark e, para isso, era preciso compreender e selecionar da melhor forma possível os materiais disponíveis. Além disso, era nossa meta abrir caminhos de expressão e comunicação, desenvolvimento de um pensamento independente capaz de comunicar ideias e sentimentos. Era preciso ampliar a compreensão e percepção do mundo. Tínhamos pouco tempo e o desafio de trazer mais próximo o universo da arte para nossos alunos.

Durante muito tempo nos interessamos em conhecer as iniciativas de adaptação de obras de arte que são oferecidas ao deficiente visual. Em 2004 tivemos a oportunidade de participar do curso da Pinacoteca do Estado de São Paulo, “Ensino da Arte na Educação Especial e Inclusiva”, coordenado por Amanda Tojal e Margarete Oliveira. Participamos, após o curso, como voluntária do Programa Educativo para Público Especiais dessa mesma instituição. Essas experiências foram fundadoras para o início de pesquisa na adaptação de obras de arte.

Figura 15: Fotos de obras adaptadas.

Descrição da figura: Foto 1: Canto Superior esquerdo. Foto da obra São Paulo de Tarsila do Amaral

(1924), óleo sobre tela. A obra retrata uma paisagem do centro da cidade de São Paulo. Trabalha com cores fortes e bem definidas, azul, vermelho, verde laranja, passando para um azul claro, um creme e um rosa pálido. A artista faz uma representação em três planos utilizando figuras geométricas para a representar as coisas. No primeiro plano à esquerda,próximo da margem inferior, temos um circulo verde sustentado por um pequeno retangulo marron na vertical, representando uma árvore. À direita da árvore temos uma bomba de gazolina. No canto direito esta um poste de luz. No plano hozontal do meio temos a representação de uma praça com uma oval verde. Um pouco acima econtramos duas torres paralelas como se fossem colunas de apoio de um viaduto. No ultimo plano horizontal superior, temos a representação de uma passarela de viaduto que descansa sobre as coluna paralelas que estão logo abaixo dela. Sobre essa passarela, próxima à margem direita vemos um vagão de trem. Em cima da passarela vemos prédios e seguindo na horizontal mais para o meio da pintura há um coqueiro. Após o coqueiro estão representados dois prédios que chegam até a margem esquerda. Foto 2: Centro superior. Foto da maquete da obra elaborada pela ação educativa da Pinacoteca do Estado de São Paulo - Programa PEPE. Foto 3: Canto superior direito. Foto mostrando as mãos de várias pessoa iniciando a montagem da obra São Paulo. Já colocaram a bomba de gazolina e o poste de luz. Foto 4: Canto inferior esquerdo. Continuação da montagem da maquete com adição dos prédios que estão à esquerda da obra. Foto 5: Centro inferior. Continuação da montagem da maquete com a colocação do viaduto no centro e dois prédio à direita. Foto 6: Maquete finalizada com a adição de um trinagulo verde representando a grama.(fotos Ana Carmen Nogueira 24/06/2004)

Para nós a experiência junto à ação educativa da Pinacoteca do Estado foi muito importante por que dela não surgiram certezas, mas muitas interrogações e dúvidas.

Como aquelas pessoas que iam visitar aquele espaço cultural eram preparadas?

Como aquelas obras adaptadas os estava atingindo? Que tipo de experiência eles estavam tendo?

Qual a compreensão do que estava sendo apresentado? O que ocorria após a visita?

As visitas aos equipamentos culturais de uma cidade são muito importantes, mas acreditamos que exigem uma preparação para compreender o que se está se observando, sentindo e no caso da arte contemporânea, muitas vezes, participando.

Essa preparação é o que Martins (2010) chama de nutrição estética, cujo objetivo é provocar leituras que desencadeiem um aprendizado de arte e propicie fruição estética.

Seu foco principal está na percepção/análise e no conhecimento da produção artístico-estética: no entanto, o centro não está na informação dada, mas na capacidade de atribuir sentido, construir conceitos, ampliá-los pelas ideias compartilhadas entre os parceiros, com o professor e, se for o caso com os teóricos que também se debruçaram sobre essa obra, artista ou movimento. (MARTINS, 2010, 130)

Além desses pontos tão relevantes levantados por Martins, devemos também saber de nossos alunos. Devemos ter um olhar voltado para a maneira como eles estão compreendendo o mundo. Precisamos sair do mundo cujo paradigma é marcadamente visuocentrista e deslocar para uma abertura de experiências estéticas com referenciais nos outros sentidos.

Percorremos um grande caminho até chegarmos à adaptação das obras de Lygia Clark. O universo estético da pessoa com deficiência visual não está restrito à música e a literatura, é possível ao cego adentrar ao universo das artes visuais pelo tato. No entanto, “a mera adaptação de uma pintura à percepção tátil (através da equivalência entre cores e texturas) pode não ter sentido para uma pessoa cega congênita.” (KASTRUP, 2010, p.64)

Oliveira (2002) ressalta que por meio dos sentidos podemos experimentar diferentes sensações de prazer ou repulsa. Desfrutar da beleza é uma característica essencialmente humana. O prazer estético vem de coisas que percebemos exteriormente a nós, das vivências que o mundo nos proporciona. “Pertencendo o fenômeno estético à esfera cognitiva, é natural que a vivência do belo inicie-se nos sentidos e tenha seu momento conclusivo na inteligência” (OLIVEIRA, 2002, p. 129- 130). Esse autor acredita que é possível ao cego ter acesso às artes visuais, como uma escultura, por sua tridimensionalidade, que oferece oportunidade de uma apreensão tátil.

Para Oliveira, “a pintura, arte fundamentada na cor e que se desdobra na superfície, é devido a essa mesma natureza, inacessível à pessoa que absolutamente não vê” (OLIVEIRA, 2002, p. 202). Por outro lado, continua esse autor,

há ainda a possibilidade da pintura tátil, tendo em conta que o tato não percebe cores e que é preciso ter relevos e contornos bem definidos.

Neste aspecto, Kastrup (2010, p.64) levanta uma questão: “Talvez sejamos

obrigados a reconhecer que algumas obras criadas para serem vistas não se prestam efetivamente à percepção tátil direta”.

Almeida (2010) comentando sobre a adaptação de pinturas para a compreensão tátil admite que o alto-relevo parece ser, para um grande número de pessoas, uma solução adequada, pois pode tornar as formas acessíveis ao tato. As linhas representadas bidimensionalmente, tornam-se táteis e assim a obra só estaria perdendo a cor.

O principal problema das reproduções em alto-relevo talvez seja o fato de que, apesar de replicarem os quadros numa forma tangível, elas mantêm, apesar disso, sua forma visual. O alto-relevo geralmente pressupõe, por exemplo, que o percebedor domine as regras de transposição de formas em três dimensões para duas dimensões (HATWELL; MARTINEZ-SAROCCHI, 2000). Ocorre que estas regras são visuais, fazendo pouco ou nenhum sentido para o tato. (ALMEIDA, 2010, s/n)

Obras bidimensionais adaptadas para o tato podem ser muito difíceis de serem compreendidas para quem nunca enxergou. Eriksson, (1999) lembra que existem muitas obras de arte que mesmo pessoas que enxergam não conseguem compreender e interpretar. Um objeto é diferente do outro por sua forma, tamanho, material e cor. A forma é a característica principal do objeto. Podemos distinguir uma bola de um cubo porque eles têm formas diferentes, material e cor são secundário, completa essa pesquisadora. Para que uma criança cega consiga distinguir os objetos no ambiente é preciso auxiliá-las em suas explorações.

Eriksson, (1999) afirma que crianças cegas não sabem se utilizar muito bem da exploração dos objetos. Em vez de esquadrinharem o quadro com a ponta dos dedos, usam a mão inteira batendo levemente no objeto. Elas gostam de escutar os sons que esses objetos produzem. No entanto, os sons não são capazes de oferecer a aparência desses objetos, não mostram a forma. Por isso a criança deve ser guiada pelos objetos para a descoberta das formas que lhe são apresentadas.

Eriksson (1999) explica que compreendemos a forma por suas linhas gerais e estas mesmas linhas formam o contorno da representação, por isso é importante compreender a forma para conseguir compreender as linhas de contorno.

As pinturas que são adaptadas para compreensão tátil pedem um conhecimento da percepção tátil, mas também da representação simplificada. Erikson (1999) admite que a maioria das imagens possa ser transferida para imagem tátil, no entanto apenas a reprodução de relevos não é suficiente para a compreensão dessas imagens. Para a interpretação tátil é necessário que elas tenham formas simples e claras.

Almeida (2010) faz uma reflexão de que a simples alteração de mídias não é uma estratégia inclusiva, na verdade é preciso recriar uma obra de arte que se adapte às necessidades da pessoa com deficiência visual.

Ao se propor a adaptar um romance para o cinema, o cineasta sabe que o livro não será transportado, ponto a ponto, para a tela. O que se tem pela frente não é um trabalho de reprodução; é um esforço de reinvenção. [...] Nosso verdadeiro problema não é, portanto, o acesso à estética visual, mas a criação e a disponibilização de uma estética tátil. (ALMEIDA, 2010, s/n)

Na primeira etapa do estudo das obras de Lygia Clark, nosso desafio era desvendar com os alunos os mistérios de suas primeiras obras, e descobrir formas para transpor o repertório das obras essencialmente pictóricas para a percepção tátil.

Caminhamos, neste primeiro momento, seguindo o desenvolvimento das ideias de Lygia Clark com estudos sobre as seguintes séries, que abarcam o período concretista e neoconcretista: Linha orgânica; Quebra da Moldura; Superfícies

Moduladas e Espaços Modulados.

Enfrentamos o desafio de trabalhar as obras de Lygia Clark de seu período concretista e neoconcretistas desenvolvendo obras adaptadas aos alunos com deficiência visual.

Figura 16: Esquerda: Composição nº 5, série Quebra da moldura; Lygia Clark, 1954. Direita: Obra

adaptada.

Na Composição nº 5, de 1954, óleo sobre tela e madeira, a tela encontra-se rodeada de uma estrutura em madeira em um mesmo nível. Esta obra demonstrou o material a ser usado como suporte para adaptação ao aluno com deficiência visual: a madeira.

Observando suas soluções compositivas, delimitamos os espaços a serem compostos e o tipo de material que deveria ser coberto. A partir desta obra ficou definido que o branco teria textura lisa de tinta acrílica, e o preto seria representado pelo papel camurça preto colado à madeira. Ainda teria de ser incorporada uma terceira cor, o vermelho, que foi descartado. O espaço vermelho foi então representado por um espaço vazio dentro da composição.

A madeira foi cortada como um quebra-cabeça no formato A4, com chapa vinílica imantada em sua parte de trás e montado em uma placa de metal no formato A3. Desta forma, os alunos podiam manipular com bastante liberdade, sem a preocupação de desmontar a figura apresentada.

Figura 18: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 1, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.

Todas as outras obras foram feitas a partir do referencial da primeira composição. Placas de madeira cortadas de acordo com a obra que estava sendo transposta, respeitando suas projeções e formas. O preto era representado pelo papel camurça negro e o branco por tinta acrílica branca. A cor cinza foi representada por um vinil texturizado com uma trama quadriculada, em cinza claro.

Figura 19: Esquerda: Planos em superfície modulada nº 5, Lygia Clark, 1957. Direita: Obra adaptada.

Estudávamos cada peça separadamente, verificávamos sua forma, textura e localização dentro do espaço que havia sido proposto. Verificávamos se era alguma figura geométrica conhecida ou se era uma junção de várias figuras. Por exemplo,

se era um retângulo –: “parece ser um retângulo, mas um dos lados possui uma

ponta” foi uma das observações surgidas durante os trabalhos. Assim, era proposto montarmos uma figura parecida com aquela forma, utilizando um jogo de figuras geométricas, o que fez com que surgissem observações como “ela usou um retângulo grudado com um triângulo”.

Figura 20: Esquerda: Espaço Modulado nº4, Lygia Clark, 1958. Direita: Obra adaptada.

Após esta exploração do particular para o todo, voltávamos nossa atenção para o aspecto geral da obra, e em como estavam organizadas as formas dentro da superfície. Desta maneira, chamamos a atenção para o que Lygia denominou de linha orgânica. Para o nosso grupo, deveríamos prestar atenção à linha-fresta que se formava entre as peças quando as texturas eram iguais, a qual chamamos de linha-fresta orgânica.

Em nossa pesquisa para a dissertação encontramos um material que na época não tínhamos à mão. Esse material deixa claro como Lygia ia montando seu espaço e elaborando concretamente suas questões. Ao pensar na linha orgânica, Lygia, em seu diário de bordo, vai oferecendo o seu raciocínio por meio das imagens que não são simples imagens. São imagens táteis. Essa preciosidade faz parte do acervo da Associação o Mundo de Lygia Clark, disponível em seu site. Além disso, ela vai dando instruções de como se devem observar essas imagens.

Figura 22: Descoberta da linha orgânica.

A seta está apontada para esta linha orgânica (uma linha organicamente formada pelo encontro dos dois quadrados pretos). Levante o quadrado e você verá a linha orgânica desaparecer. Ela foi absorvida pelo contraste entre o branco e o preto. Isto iniciou a busca que me levou a todo meu trabalho posterior (CLARK, 1954. Descoberta da linha orgânica s/n).

Lygia segue em frente ofertando-nos soluções estéticas táteis de grande riqueza. A artista vai produzindo um sentido estético à medida que utiliza outras matérias que oferecem ao tato a possibilidade de explorar e compreender algumas de suas inquietações.

Figura 23: Descoberta da linha orgânica.

A faixa preta funciona como moldura: ao levantá-la você verá um ângulo reto marcado entre as letras A e B. abaixando a moldura (faixa preta) você sentirá melhor a linha orgânica, onde está marcado AB. O que eu quis fazer nesta experiência foi negar a relação do quadro dentro da moldura, integrando-o dentro da moldura através da cor. É por esta razão que a

moldura é tão larga, isto é, ela passa a ser parte integrante do quadro em si mesmo (CLARK, 1954. Descoberta da linha orgânica s/n).

Figura 24: Plano em Superfície Modulada.

O trabalho com as obras adaptadas com nossos alunos foi instigante e prazeroso, e temos certeza que respeitamos as propostas da artista e também trabalhamos a partir do que era importante para os nossos alunos. Experimentamos de diversas maneiras os espaços proposto pela artista, e depois cada um criou sua própria obra.

Essa porta de entrada ao universo de Lygia, por meio das obras adaptadas dos períodos iniciais, proporcionou momentos de grande interesse e atenção. Além disso, pudemos notar uma grande alegria na compreensão das formas, nas montagens do quebra-cabeça e na descoberta de outras possibilidades de apropriação do espaço e de fruição estética.