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Corpo – experiência de espaço

1. O que é experiência?

1.4. Corpo – experiência de espaço

A percepção, segundo Merleau-Ponty (2006, p. 6) é a abertura para o mundo: “o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”. Cada um percebe o mundo de acordo com a sua experiência, e através de seu corpo.

A cada momento, meu corpo perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações (MERLEAU- PONTY 2006, p. 5 -6).

Esse filósofo diz que o corpo não está no mundo, ele habita o mundo. Tudo o que sabemos do mundo é por meio de nossa experiência de habitar o mundo: “minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3).

Perceber, compreender e acompanhar a pessoa com deficiência visual em suas descobertas e experiências no mundo exige de nós uma abertura para diferentes formas de perceber, compreender e vivenciar o mundo. Masini (2003) faz uma interessante ligação entre a filosofia merleaupontiana e a pessoa com deficiência visual. Essa autora esclarece que em Merleau-Ponty o sujeito no mundo é o corpo no mundo. O corpo é a fonte de todos os sentidos, todas as relações feitas pelo homem são feitas por meio do corpo que habita esse mundo. É o corpo que trará significado das relações com os objetos, com o outro e com a natureza.

Para compreender a percepção é necessário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva. Neste sentido, diz-se que as coisas "se pensam" em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, já que, ao entrar em contato com o objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo (MASINI, 2003, p. 40).

A autora aponta os caminhos para melhor compreensão e conhecimento das pessoas que não possuem o sentido da visão. Sendo a percepção o solo originário

de todo o conhecimento, para se compreender a pessoa com deficiência visual e como ela habita o mundo, devemos saber de sua experiência perceptiva.

Em nossa cultura, a exploração do mundo por outros sentidos que não o da visão muitas vezes pode ser dificultado, sendo quase proibitivo. Quantos “não toque”, “não cheire”, “não pise”, “não sinta” nos são impostos sem que percebamos?

Nietzsche (2009), em Assim Falou Zaratustra, fala dos menosprezadores do corpo. Quem são eles? Somos nós que muitas vezes o desconhecemos, o esquecemos, o desprezamos.

O corpo do ser humano não é uma máquina a serviço do cérebro, ele é uma totalidade.

A experiência perceptiva (que é corporal) não surge da associação que vem dos órgãos dos sentidos (tal como é vista pelos Empiristas), mas sim da relação dinâmica do corpo como um sistema de forças no mundo (MASINI, 1994, p. 84).

Como pensar na pessoa com deficiência visual que precisa desenvolver os sentidos de que dispõe, estando imersa em uma cultura na qual o corpo é esquecido, e o toque é considerado quase uma violação?

Observando pessoas-videntes e não videntes, muitas vezes temos a impressão de que desconhecem seus próprios corpos, seus limites e possibilidades. Aquelas nas quais a visão não é o sentido predominante podem deparar com caminhos fechados para descoberta do mundo. se não o explorarem por meio do próprio corpo na experiência de habitar o mundo (MASINI, 1994.).

Esse sentido é reiterado nas palavras do filósofo alemão Nietzsche, para quem o corpo deve ser vivido e entendido, além de ser uma grande razão.

Tu dizes „Eu‟ e orgulhas-te dessa palavra. No entanto, maior – coisa que não queres crer – é o teu corpo e a tua razão grande. Ele não diz Eu, mas procede como Eu (NIETZSCHE, 2009, p. 44).

Para que uma pessoa com deficiência visual organize-se no mundo é preciso fornecer oportunidades para que suas experiências perceptivas ocorram e possam ser comunicadas, bem como ouvidas sem preconceitos sociais, religiosos, regionais, ou conceituais. Requer que se esteja atento às outras vias perceptuais e sensoriais para conhecermos o mundo no qual vivemos, uma vez que “há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria” (NIETZSCHE, 2009, p. 44).

Larrosa (2004), em O corpo da linguagem, analisa o mesmo aspecto da obra de Nietzsche sobre os menosprezadores do corpo. Neste texto de Larrosa, o termo menosprezadores do corpo que encontramos em Assim Falou Zaratustra, edição da editora Martin Claret, é substituído por denegridores do corpo. Por ser uma diferença entre traduções, escolhemos a palavra menosprezadores por acreditarmos traduzir com maior força o texto de Nietzsche. Menosprezar é depreciar, diminuir o seu valor, desprezar, enquanto que a palavra denegrir oferece-nos uma conotação um pouco mais branda, de conspurcar, manchar, diminuir a pureza.

De qualquer forma, encontrar este texto de Larrosa permitiu-nos maior embasamento e tornou mais claros pensamentos tão complexos da filosofia nietzschiniana. “Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”

(NIETZSCHE, 2009, p. 44).

O corpo é linguagem, e desprezar o corpo seria falar uma língua sem corpo. “Porque assim como o homem, quando é inteiro, é corpo, também a linguagem quando é inteira é corpo” (LARROSA, 2004, p. 168).

O homem é um vivente de palavra, de linguagem, de logos. E isso não significa que o homem tenha a palavra, ou a linguagem, como uma coisa, ou como uma faculdade, ou como uma ferramenta, mas que o modo de viver específico desse corpo ao mesmo tempo vivente e mortal (vivente porque mortal e mortal porque vivente) que é o homem se dá na palavra e como palavra (LARROSA, 2004, p. 170).

O corpo é a fonte dos sentidos, é por meio dele que o sujeito constrói sua relação no mundo. O corpo desperta para as relações que faz no mundo com outros corpos.

Por meio de nossos movimentos e interações com o derredor, vamos desenvolvendo nossas habilidades de perceber, experienciar, organizar e compreender o mundo onde estamos (MASINI, 2007, p. 20).

Estamos sempre construindo nosso próprio mundo. Cada um tem uma maneira de perceber o que está ao seu redor e de organizar estas informações para agir dentro dele.

O poeta Walt Whitman (1819-1892) falava que o corpo é a alma. Para ele, segundo entende Lehrer (2009, p. 17), “nós não temos um corpo, nós somos um corpo” (Grifo do autor), todos nossos sentimentos vêm da carne. O corpo é fonte de significações da relação do sujeito no mundo. “Para compreender a percepção é

necessário considerar o sujeito da percepção e saber de sua experiência perceptiva”

(MASINI, 2007, p. 22).

Ao entrar em contato com um objeto, entramos em contato conosco. O corpo vivo do sujeito no mundo, em contato com o outro, compartilha conhecimentos do mundo.

Se ao perceber imagina, e se cada um possui uma maneira peculiar de perceber o mundo, então, como afirma Masini (2007, p. 23) “é preciso partilhar com a

pessoa com deficiência visual o conjunto dos caminhos de seu corpo”, mas é também importante que todos aprendam que os caminhos perceptivos são os desencadeados pelos órgãos dos sentidos, para, assim, compartilhar as experiências de outras formas de representação e compreensão.

Merleau-Ponty evidenciou ser a corporeidade a via de contato com o outro, no mundo que habita. De acordo com esse autor (2006, p. 328), “o espaço não é o

ambiente (real ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível (...) potência universal de conexões”, onde o corpo é no espaço.O corpo é no espaço e é com ele que se constrói uma imagem corporal. “Ser corpo, [...] é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ele é no espaço. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 205).

Em Bachelard (2008, p. 26) encontramos a importância dos espaços da casa, espaços protegidos que nos confortam e guardam nossos tesouros. A casa é nosso primeiro universo, nela está ancorada nossa alma. “É corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano” Sendo o primeiro mundo do ser humano, fazendo uma ponte para o pensamento de Merleau-Ponty, esses espaços protegidos são nossa alma, nosso corpo, somos nós.

Eu sou meu corpo, portanto sou espaço e sou tempo. É por meio de minha experiência motora que tenho acesso ao mundo. Assim, o corpo móvel compreende o mundo por meio das relações que faz com os objetos e com as outras pessoas. É por meio da orientação que “eu o reconheço e tenho consciência dele como de um objeto” diz Merleau-Ponty (2006, p. 341). O corpo reconhece o espaço e se reconhece na sua orientação espacial por meio da consciência corporal.

Para Merleau-Ponty (2006, p. 206), “a espacialidade do corpo é o desdobramento de seu ser de corpo, a maneira pela qual ele se realiza como corpo. Ao procurar analisá-la, apenas antecipamos aquilo que temos a dizer da síntese corporal em geral”. O espaço e o corpo encontram-se em uma relação de

encadeamento. Para vivermos a experiência espacial temos que viver a experiência corporal.

Sendo que somos nosso corpo, ao mesmo tempo em que vemos e sentimos, interpretamos nosso corpo próprio para assim conhecer o que nos é tocado. Percebemos, por meio do movimento que fazemos com nosso corpo. Merleau-Ponty

(2006) aponta que a bengala para o cego é uma extensão dele próprio, pois deixa de ser objeto para ser algo sensível, que em um movimento exploratório sabe do objeto antes do objeto saber dele. É por meio do hábito que o cego aprende a compreender o que é sentido através da bengala. Portanto, é por meio do movimento que o corpo apreende o espaço. “O hábito exprime o poder que temos de dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando a nós novos instrumentos” (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 199).

O hábito, continua este filósofo, reside no “corpo mediador de um mundo”

(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 201). O corpo faz a mediação de conhecimentos do mundo agregando novas informações, potencializando ações. O corpo é um espaço expressivo, onde as nossas ações se encontram em potência.

A exploração com a bengala pela pessoa cega, além de ser um hábito motor, é também um hábito perceptivo, pois se torna uma mediadora entre o cego e os objetos no mundo. A bengala torna-se um instrumento perceptivo para o cego; ela torna-se um apêndice do seu corpo. “A análise do hábito motor enquanto extensão de existência prolonga-se, portanto em uma análise do hábito perceptivo enquanto aquisição de um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 2011). É por meio do corpo que o hábito perceptivo vai fornecer significação. Assim, aprender a sentir as coisas é aprender a enriquecer, reorganizar o esquema corporal. O corpo é um conjunto de significações vividas, que se constrói por meio de nossa experiência no mundo.

Para o cego, ou a pessoa com baixa visão, experimentar o mundo através de outros sentidos implica uma conexão com a cultura, a expressão, a comunicação. É por meio da experiência, da invenção e da criatividade que o ser humano encontra caminhos de comunicação com o visível e o invisível, dizível e o indizível, pensável e o impensável.

Segundo Masini (2003, p. 42), “o que está sendo enfatizado, sempre, é a importância do contato, no mundo que este ser precisa ter, com pessoas e objetos, por meio dos sentidos de que dispõe sempre em interação e nunca separado, apenas como um espectador”. Esta autora, com sua grande experiência em

pesquisas a respeito da percepção da pessoa com deficiência visual, ressalta a importância do habitar o mundo, do estar como um agente capaz de uma ação e relação com o outro, criando oportunidades de refletir e de sair de si para se reconhecer.

No próximo capítulo iremos apresentar como se deu a evolução do contato dos jovens cegos dentro do ateliê de artes. Vamos apresentar a evolução das estratégias, propostas e as formas de contato com o mundo e com a arte do ateliê de artes para as pessoas com deficiência visual e serão apresentados os teóricos que apoiaram nosso caminhar.