• Nenhum resultado encontrado

A experiência estética da pessoa cega

1. O que é experiência?

1.3. A experiência estética da pessoa cega

A pele não serve apenas para nos envolver e proteger do meio externo, ela faz a comunicação entre o meio externo e o interno. É através do sentido do tato que a pessoa deficiente visual adquire um conhecimento concreto e preciso do mundo que a cerca. Só o tato e a exploração tátil estão em condições de fornecer informações exatas acerca da forma de um objeto, de suas dimensões, seu peso, sua dureza, das características da sua superfície e sua temperatura. Soler (1999)

afirma que é por meio do tato que nosso cérebro recebe um grande número de informações sobre o mundo que nos cerca, pois os receptores deste sentido estão espalhados por toda a superfície cutânea, e estão conectadas com as vias nervosas, para enviar ao cérebro sinais codificados.

Lowenfeld (1956, p.160-161) reitera essas informações, quando afirma:

O conhecimento real do mundo dos objetos pode ser adquirido unicamente através da observação completa pelo tato. Essa observação nem sempre é possível. Se os objetos são demasiado grandes, os modelos podem representá-los em formato reduzido; se são demasiado pequenos, os modelos podem representá-los em formato aumentado; se são demasiado frágeis, os modelos devem ser resistentes ao tato.

Oliveira (2007) comenta que Tomás de Aquino acreditava que o tato era um sentido primitivo, menos importante que os olhos e os ouvidos, tidos como sentidos superiores, ligados à racionalidade e ao espírito. No entanto, completa Oliveira, os sentidos superiores não servem para nos diferenciar dos animais, visto que Anaxágoras7 definia o homem como o animal que tem mãos.

Primeiro sentido a se desenvolver no embrião, o tato espalha-se pelo nosso corpo, funcionando a pele como fronteira entre ele e o mundo exterior. Embora as limitações sejam muitas, o tato pode propiciar experiência estética no campo das esculturas (OLIVEIRA, 2007, p. 149).

Esse autor, no entanto, prossegue seu pensamento afirmando que no campo das artes plásticas o tato não é capaz de superar a visão. Ele acredita que a percepção tátil é subalterna à visualidade não apenas culturalmente, mas também fisiologicamente, uma vez que sua capacidade preceptiva é bastante limitada. Para que aconteça a percepção tátil é preciso tocar o objeto.

O tato é o sentido do contato, um dos sentidos de proximidade.

O olhar não toca. Os olhos, para verem, têm que estar distantes da pele. O olhar promete, anuncia, ou o carinho ou o soco. Mas o olhar não é nem carinho nem soco. Carinho e soco são entidades do tato. (ALVES, 2005, p. 49).

A percepção tátil são as informações que os estímulos adquirem apenas através contato da pele. Na percepção tátil é o objeto que se move. Quando a mão se move livremente para explorar o estímulo, temos a percepção háptica. (SOLER, 1999).

Carneiro (2006, p. 15) ensina que “o termo háptico está diretamente associado

ao sentido do tato. No ser humano, este sentido possui dois componentes independentes: cutâneo e cinético”. O componente cutâneo tem relação com os sensores localizados na superfície da pele, responsáveis pela sensação de pressão, temperatura, vibração e dor. Já o componente cinético está relacionado aos músculos, tendões e juntas, e é responsável pelo movimento e força. A percepção háptica propicia informações que adquirimos por meio dos movimentos livres das mãos.

Ainda que toda a superfície corporal tenha sensibilidade tátil, a mão é o órgão natural do tato porque está adaptada para manipular objetos. Seus

sensores cutâneos e cinestésicos estão articulados com os mecanismos motores, e o que faz com que a manipulação fique mais eficiente são os movimentos coordenados dos dedos e das mãos, a que chamamos de percepção háptica. O sistema háptico é uma modalidade perceptiva complexa capaz de codificar a informação que chega ao cérebro pelos mecanorreceptores da pele e pelos receptores cinestésicos dos tendões, músculos e articulações.(BALLESTEROS, 2003, p. 9).

Quando estamos explorando um objeto, ou padrões de linhas ou pontos, estamos realizando com nossas mãos uma série de movimentos exploratórios voluntários.

A percepção da forma através do tato, em comparação com a percepção visual, é menos precisa e mais lenta. Portanto, o tato necessita de um maior espaço de tempo para explorar e organizar as informações. Isso fica mais esclarecido ao considerarmos que, por meio do tato, precisamos perceber traços, fazer relações uns com os outros e algumas vezes com referências internas ou externas ao objeto. O tato pode parecer inferior à visão, pois sem a visão pode torna-se difícil encontrar um referencial para codificar a forma, como assinala Ballesteros (2003, p. 9 tradução nossa): “A percepção da forma depende da organização espacial. Para codificar uma

forma, seus traços percebidos por meio do tato é preciso relacioná-lo um com outro ou com algum marco referencial interno ou externo8”.

Diaconu (2006) explica que o sentido háptico, que engloba a sensação de toque, temperatura, dor, movimento e força, o sentido do olfato e do paladar têm sido tradicionalmente negligenciados na história da estética. Essa autora esclarece que, mesmo que pudessemos aceitar a existência de formas de arte com base no sentido háptico, do olfato e do paladar, é muito difícil elaborar um discurso crítico sobre eles e uma teoria estética em razão das terminologias pobres e vagas usadas para descrever a experiência. Masini (2007) corrobora esta afirmação quando nos esclarece que a predominância da visão,

[...] está tão arraigada que nos tornamos desatentos ao fato de criarmos linguagem visual para descrever o que nos cerca. Assim, vivendo em uma cultura de videntes, pela familiaridade e senso comum, a predominância da visão e de suas representações passa despercebida, ocultas pelo hábito, da mesma forma que a prevalência na linguagem de uma terminologia própria do que é visual (MASINI, 2007, p. 20).

8 La percepción de la forma depende de la organización espacial. Para codificar una forma, sus rasgos percebidos através del tato hay que relacionarlos unos con otros, o con respecto a um marco de referencia interno o externo

Como nos afirma Diaconu (2006), a estética dos sentidos requer uma meta- estética, uma reflexão sobre a própria linguagem. Para Huchet (2004, s/n), a meta- estética é uma ética do sentido “que cria as linhas de fuga, as vertentes e as declinações de uma liberdade que nos exige, conforme Deleuze, percorrer todas as individualidades, para extrair-lhes um evento único do qual nascerá o indivíduo”. Vindo ao encontro à proposta de criação de uma nova linguagem estética que abrangesse o sentido háptico, Almeida, Carijo e Kastrup (2010) propõem uma estética tátil.

Cabe inventar novas maneiras de produzir sentido estético tanto através da forma quanto da textura, do peso e das propriedades materiais em geral. Só assim será possível, finalmente, abandonar os padrões estéticos puramente visuais que impregnam as artes plásticas, permitindo-nos criar e recriar obras de arte de uma maneira mais condizente com o modo de perceber das pessoas cegas. O respeito pelo universo cognitivo das pessoas cegas não implica, como às vezes se pensa, numa restrição do campo estético, mas em sua ampliação (2010 s/n).

Esses autores fazem uma análise dos diversos materiais que procuram dar acesso a obras de arte para pessoas cegas em museus ou instituições culturais. Iniciam sua análise sobre a questão do que se está buscando oferecer, se informativo ou propriamente estético. Segundo eles, o acesso informativo pode ser facilmente resolvido, com a descrição verbal da obra de arte por meio de um texto em Braille, áudio-descrição ou por meio da mediação de um educador, ou alguém que se disponha a explicar verbalmente a obra. Se a opção for para o estético, é necessário analisar se as opções escolhidas são realmente as que têm potencial de acesso ao universo da obra de arte, uma vez que “é comum oferecer ao toque obras que o tato, enquanto sistema perceptivo, nem sempre é capaz de apreender”

(ALMEIDA, CARIJO e KASTRUP 2010, s/n).

Yvonne Eriksson (1999) explica que a visão pode distinguir diferentes padrões de uma pintura, enquanto que o tato pode perceber as diferenças entre texturas. Um relevo que possua vários tipos de texturas pode ser muito difícil de ser interpretado. Para que uma imagem seja inteligível pelo tato, ela deve ser clara e simplificada. Deve ser reproduzida de tal modo que toda sua forma seja facilmente identificável. A imagem não deve conter sobreposições, representações em perspectivas ou objetos incompletos, e não deve estar baseada no referencial da percepção visual.

Tojal (1999) levantou algumas pesquisas desenvolvidas com pessoas com deficiência visual que frequentam museus e apresentou duas categorias de sentido

em relação à forma de percepção. São as categorias de sentidos comuns – tato, audição, gosto e olfato – e de sentidos específicos – ecolocalização, memórias espacial, temporal e cinestésica. O tato é o sentido mais investigado pelos museus, no desenvolvimento de materiais, adaptação de obras de arte e disponibilização de peças ao toque. A audição, dentro do espaço museológico para pessoas com deficiência visual, está sempre associada ao tato, e age como um complemento deste. O sentido do olfato e o gustativo têm sido negligenciados pelos profissionais dos educativos em museus, tendo poucas ações das quais fazem parte.

Os sentidos específicos possuem elementos significativos que devem ser explorados durante as visitas às exposições de museus e instituições culturais. Tojal

(1999) salienta a importância de cada um desses sentidos como forma de compreensão, apropriação e fruição das obras de artes e do ambiente em que a pessoa se encontra. A ecolocalização, explica essa pesquisadora, propicia à pessoa cega identificar ambientes abertos ou fechados, bem como localizar obstáculos durante o seu percurso.

Esta faculdade, desde que associada ao sentido da audição, transmite uma sensação acústica capaz de permitir a percepção de deslocamentos de ar, ecos ou ondas sonoras, cujo referencial adquirido em experiências anteriores possibilita uma localização física e espacial destas pessoas no ambiente em que se encontram. (TOJAL, 1999, p. 19).

Bleier e Kisk (2000, s/n) esclarecem que a Ecolocalização é a habilidade de transmitir um som e perceber as qualidades do eco refletido. Foi identificado nos morcegos, e posteriormente nos golfinhos, que utilizam extremamente bem esta habilidade ao navegar pelos oceanos.

Os dois pesquisadores ensinam que o sistema visual percebe o meio processando complexos padrões de luz, quando esta é refletida dentro do olho, a partir de superfícies ao seu redor. Se pudéssemos ver apenas fontes de luz e escuridão, nossos olhos nos dariam poucas informações sobre a natureza que nos rodeia. Percebendo e interpretando padrões de luzes refletidas extremamente ricas e detalhadas, podemos obter informações sobre características do espaço ao nosso redor e dos objetos que aí se encontram.

O som pode trabalhar de forma muito parecida. Bleier e Kisk (2000) afirmam que a visão e a audição podem processar ondas de energias refletidas. A visão processa ondas de luz, enquanto viajam desde a sua fonte, rebatem na superfície

pelo meio ambiente e entram nos olhos. Da mesma forma, o sistema auditivo pode processar ondas sonoras, viajando desde a sua fonte, rebatendo na superfície através do meio ambiente e entrando no ouvido. Ambos os sistemas podem extrair muitas informações sobre o meio ambiente, interpretando os complexos padrões de energia refletida que recebem. No caso do som, estas ondas de energia refletidas chamam-se ecos.

Os ecos e outros sons podem transmitir informação espacial, que é comparável em muitos aspectos à transmitida pela luz. Com os ecos, a pessoa com deficiência visual pode perceber informações muito complexas, detalhadas e específicas de grandes distâncias que estão fora do alcance de uma bengala ou de seu braço.

O outro sentido específico que deve ser explorado dentro dos espaços culturais é o sentido cinestésico. A cinestesia é o sentido do movimento corporal e da tensão muscular, provocados pelas forças mecânicas que influenciam os receptores nos músculos, tendões e articulações. Este sentido torna consciente a posição e o movimento do corpo.

Segundo Tojal (1999) memórias espacial e cinestésica devem ser exploradas dentro do espaço museológico, e vistas como fonte de informações capazes de garantir às pessoas cegas ou com baixa visão experiências diferenciadas nas atividades dos diversos equipamentos culturais. Assim, estaremos incentivando as pessoas com deficiência visual a exploração do mundo, oferecendo-lhes oportunidades de experiências múltiplas.

A diversidade de experiências deve ser proporcionada desde cedo, visando um desenvolvimento de uma estética própria. Soler (1999) aponta que a discriminação de textura deve ser incentivada desde o início da vida do indivíduo com deficiência visual, pois assim o bebê será motivado a tocar no seu próprio corpo, nos objetos e nas pessoas, e isto irá contribuir para o desenvolvimento de um esquema mental com forma e sentido geométrico.

A distinção de formas e tamanhos fará com que a criança conheça os objetos que a rodeiam, e auxiliará no aprendizado do Braille quando estiver maior. Soler

(1999) mostra também a necessidade de se desenvolver uma estética tátil, pela qual a pessoa possa diferenciar texturas, formas e tamanhos, nas diversas representações bidimensionais ou tridimensionais. Soler (1999, p. 60), citando Custsforth, diz que “há uma beleza tátil e um significado que não se mostra

visualmente [...] e por outro lado, grande parte da beleza visual e significado do objeto escapam completamente do tato”.

É preciso cuidar precocemente da beleza tátil. Não são todas as texturas que são agradáveis ou positivas. A criança deve conhecer o maior número de texturas possíveis, mas, continua este autor, devem predominar as que tragam experiências agradáveis e boas. As sensações positivas geram experiências táteis positivas, e as negativas geram experiências táteis negativas. Para que uma pessoa possa desenvolver um sentido estético do tato é necessário que desde muito cedo tenha experenciado maior número de experiências táteis positivas do que negativas.

Esse autor argumenta que o tato é um sentido que percebe as sensações por meio de contato direto com o objeto, planta, animal ou pessoa, e por isso carrega com ele um componente afetivo transcendental para total desenvolvimento do indivíduo. Em vista disso, quando cuidamos da educação do tato, formamos pessoas que encerram uma ou mais dessas características:

[...] tem curiosidade em tocar nas coisas; tem facilidade em mostrar afeto e estima mediante o contato direto; se sentem e fazem com que os outros se sintam próximos; são cuidadosos e hábeis; conseguem fazer descrições considerando as características morfológicas e táteis das coisas; proporcionam sensações táteis positivas aos demais; produzem aprendizagens táteis com significado próprio (SOLER, 1999, p. 62, tradução nossa9).

A criança cega percebe muitos outros estímulos do tipo auditivo, olfativo, tátil e gustativo procedentes de seu meio, através dos quais, assim que começar a se deslocar com autonomia, descobrirá o meio que a rodeia, mediante percepções sensoriais não visuais.

A multissensorialidade no ensino de ciências proposta por Soler (1999) pode ser direcionada também para o ensino de qualquer outra disciplina, inclusive de artes. Neste método, o tato, a audição, o paladar, o olfato e a visão atuam como canais de entrada de informações muito valiosas nas observações. Como vimos anteriormente, a experiência estética encontra-se intimamente ligada ao ato de fazer algo, de observar e de ser observado, de ser e estar no mundo. Então, pode-se dizer

9 [...] experimentan curiosidad por tocar las cosas; tienen facilidad para mostrar su afecto y estima mediante el contacto directo; se sienten y hacen sentir próximos a los demás; cuidan las cosas y son duchos; hacen descripciones considerando las características morfológicas y táctiles de las cosas; proporcionan sensaciones táctiles positivas a los demás; producen aprendizajes táctiles con significado propio.

que esta proposta pode proporcionar um caminho para uma experiência diferenciada, que pode ser estética.

Todas as informações, mesmo entrando por canais diferentes, têm um único destino, que é o cérebro, e aí adquirem um sentido único, que é o de aprendermos, compreendermos e refletirmos sobre nós e o mundo. Para que a “aprendizagem seja completa e significativa, é necessário que não esqueçamos nenhum canal sensorial de entrada, pois desta maneira estaríamos limitando a informação com que nosso cérebro irá elaborar o conceito final que aprendemos” (SOLER 1999, p. 18). Quando nos falta um dos sentidos, obtemos as informações do nosso meio através dos outros sentidos. Estas informações podem vir separadas ou em conjunto, o que Soler chama de multissensorialidade.

Quando falamos em observar, logo pensamos em ver ou olhar, uma observação basicamente visual. Esse autor esclarece a relevância da observação multissensorial, ao afirmar que,

na perspectiva da didática multissensorial, a pessoa que observa deve captar o meio com um número máximo de informações através de todos os sentidos que possui (...) devemos obter dados de todos os nossos sentidos que estão em funcionamento, mas devemos saber „sentir‟ essas informações (SOLER 1999, p. 32-35).

Devemos relacionar, através de operações mentais de comparação, semelhança, contradição, interdependência, complementação e indução, entre outras. Com a realização destas operações lógicas retomamos mais uma vez Soler

(1999, p. 36), conforme segue:

A curiosidade é um dos pilares de todo descobrimento (...) todas as crianças pequenas, cegas ou não, manifestam uma curiosidade multissensorial para descobrir o ambiente em que estão: olham, escutam, chupam, tocam.

Esse autor acredita que a multissensorialidade proporciona uma imaginação mais criativa e desenvolvida, pois cria coisas, inventos mais completos que podem atingir todos os sentidos, e em consequência disto servem para um número maior de pessoas.

Nesta perspectiva podemos inventar como falavam Almeida, Carijo e Kastrup

(2010), um sentido estético para as experiências que não sejam apenas visuais, e podemos começar a construir um pensamento estético que abarque os outros sentidos, e não apenas a visão. Podemos elaborar um discurso crítico sobre todos os sentidos, e uma teoria estética com terminologias apropriadas para descrever

essas experiências. Podemos pensar o corpo como uma grande razão estética que oferece novos desafios para compreensão do mundo e do estar no mundo, nos desprendendo do passado e abrindo-nos para o futuro?