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4. Análise da experiência do ateliê na perspectiva dos alunos

4.1. Aprender

Neste aspecto encontramos nos depoimentos de Bruno e Paula durante nossa entrevista como a experiência da arte foi significativa para eles.

Bruno – eu gostei por que queira saber mais, não é? Eu queria, por causa do meu conhecimento, queria ampliar, não é. Eu queria saber por que a Lygia Clark fez essa obra, como o autor fez essa obra.

Paula - O ateliê da Lygia Clark significou muito você ter trazido os quadros dela para a gente sentir como é que os quadros dela são de verdade. E a gente também poder criar obras em cima dos quadros dela com as figuras imantadas.

Bruno recordou que o trabalho de Lygia era com espaço e formas geométricas. Paula ressaltou a importância de utilizar os vários sentidos no contato com a obra e a importância de caminhar com independência e se apropriar dos materiais conforme sua necessidade.

Nas palavras de Paulo Freire (1996, p.23) “quem ensina aprende ao ensinar e

quem aprende ensina ao aprender” e que o aprender precede o ensinar, e que devemos estar sempre abertos ao aprender. Esse autor defendia uma relação onde não existe o aluno e o professor, mas sim, uma relação humana onde encontramos o diálogo de experiências humana compartilhada.

Aprendemos por meio da experiência. Aprendemos e ensinamos quando as coisas tem significado para nós. Quando estamos trocando experiências estamos aprendendo e ensinando.

Bruno focalizou a construção dos bichos como algo relevante. Os bichos assim como as obras adaptadas foram lembrados com bastante facilidade. Algumas etapas dos trabalhos com Lygia Clark foram lembradas com dificuldade. Talvez aqui a elaboração da entrevista tenha sido falha. Deveríamos ter nos preocupado como a pessoa cega ativa a sua memória. Se nossa memória é ativada por algo dos sentidos que nos remete ao passado, como as "madeleines" de Proust, deveríamos ter oferecido maiores oportunidades para que ocorresse essa ativação.

A nossa memória é constituída por alterações subtis na resistência das sinapses, o que faz com que seja mais fácil aos neurônios comunicarem entre si. O resultado final é que, quando Proust saboreia a madalena, os neurônios a ajusante do sabor bolo, aqueles que codificam Combray e Tia Leonie, se acendem.” (LEHRER, 2009, P.106)

Ficamos com a impressão de que deveríamos ter ofertado alguns materiais que favorecessem essas sinapses. Para relembrar experiências vividas no ateliê, muitas vezes falar sobre o material de que era feito foi detonador de lembrança. Assim como os primeiros filósofos gregos que pretendiam encontrar a "matéria- prima" de que são feitas todas as coisas a matéria seria uma das maneiras que o cego usa para decifrar o mundo.

Ac – Você lembra dos trabalhos dos casulos, de dobrar os papéis?

Bruno – Gostei também, achei interessante. Casulo. O que foi mesmo? Nós fizemos os casulos de que mesmo? Eu não me lembro.

Ac – Da Lygia Clark então você gostou mais dos bichos? Eles eram feitos de madeira. Você lembra que a gente montava na madeira com fita crepe e ia montando?

Bruno – Eu não estava me lembrando do material. Eu não me lembrava da madeira. Eu só lembrava que a gente fez, não do material.

Ainda dentro dessa categoria lembramos que aprender é compreender, é construir caminhos. Paula relembrou os momentos angustiantes diante do trabalho pronto no qual não conseguia compreender o que estava sendo representado:

Figura 32: O banco de pedra do Asilo Saint Remy. Van Gogh. Obra, trabalho adaptado e trabalho

conjunto.

Descrição da figura: Canto superior à esquerda: O banco de pedra do Asilo Saint Remy. Van Gogh.

Canto superior à direita: linhas principais a serem trabalhadas. Imagem inferior: produção elaborada junto com a aluna. (fotos Ana Carmen Nogueira, 2005)

Paula - Agora o que eu não gostei foi ter passado o tridimensional para o bidimensional. Bidimensional não é fácil mesmo, você não entende, você vai à Pinacoteca, pega aqueles exemplos dos tridimensionais, a gente entende tudo, agora o bidimensional é uma coisa que realmente é mais difícil de ser entendida. O que eu não gostei foi aquele dia que eu peguei o quadro e eu pegava várias vezes, tocava nele e representei aquele quadro do Van Gogh do Banco de pedra do Asilo de Saint Remy no papel, aquilo foi super difícil, não foi nada fácil.

Ac – Eu acho que não foi nada fácil e foi errado. Aí você tem toda a razão, que também eu estava aprendendo a trabalhar com você. Eu acho que foi uma experiência que não deu certo. Eu acho que a gente estava trabalhando de uma maneira errada. Impossível fazer aquele quadro ser compreensível. Do jeito que foi feito. Foi legal para passar as várias experiências táteis que podiam ter naquelas tintas, mas não daria realmente. Voce tem toda a razão, aquilo lá foi muito difícil mesmo.

Relembrou com sofrimento a não construção do conhecimento. Estava ocorrendo a lógica do “ou”. Lembrando Moreira (2010) que nos ensinou no capítulo 1, ou ela compreendia pelo referencial do vidente ou fracassava. A proposta do trabalho foi toda baseada no referencial do vidente, onde se acreditava que a simples transposição do bidimensional para o relevo seria compreensível ao cego. Neste momento foi preciso modificar a atuação do educador, perceber o outro, compreender as suas necessidades, aprender juntos.

Lembrando Almeida (2010) no capítulo 2, onde esclarece que a alteração das mídias não é uma estratégia inclusiva que na verdade é preciso fazer uma recriação da obra adaptada às necessidades da pessoa cega.

Vimos também como a exploração do espaço foi um trabalho que gerou conflitos e dúvidas. O medo do espaço, a dificuldade de se locomover nele, o modo como os jovens o percebiam e como articulavam suas relações com o mundo exterior foi ressaltado durante a fala dos sujeitos.

Paula - Na aula de artes, o que eu não gostava era da localização do espaço, sem bengala, porque o espaço de baixo eu não tinha muito acesso. Mas foi muito bom para mim porque agora eu tenho um mapa totalmente programado do que é a sua sala, do que era a sala da Rosanna, que hoje em dia é a de música. Eu não gostava muito disso, mas eu aprendi que isso foi assim muito fundamental para mim, depois. Hoje em dia, se você me colocar para andar aqui dentro eu sei. Isso me ajudou, por que qualquer desafio que você enfrente na vida, não é só o que você gosta. No que você gosta tem muita coisa que você não gosta também. Tem que enfrentar, faz parte do desafio cotidiano, que você tem que enfrentar.

Bruno - A professora de Orientação e Modalidade está trabalhando com o espaço interno. Eu já sabia daqueles espaços. Já sabia o que tinha. Aí eu fui descrevendo.

É no processo do aprender que descobrimos ser possível ensinar. Aprendemos pela relação que se cria por compartilharmos conhecimentos e descobertas do mundo.

Cada pessoa compreende o mundo de uma maneira, cada grupo irá evoluir de acordo com a bagagem que carrega e com aquilo que vai procurando ao longo de seu caminho. A experiência com a artista Lygia Clark, assim como outros projetos que foram desenvolvidos no ateliê, foram ampliadores de mundo.

Bruno foi lembrado sobre o Projeto Peter Pan. O projeto Peter Pan começou com a leitura do livro “Peter Pan” de J.M. Barrie, traduzido por Ana Maria Machado. O projeto foi desenvolvido de forma interdisciplinar entre o ateliê de artes, a oficina

da palavra da professora Rosanna Bendinelli e a aula de inglês com a professora Cristiana Mello Cerchiari. No ateliê de artes, criaram um mundo tridimensional, com suas formações de terra e água, baseado no imaginário de cada aluno e na história de J.M. Barrie. Cada um criou sua própria Terra do Nunca.

AC – A gente fez um vulcão, lembra?

Bruno – Eu lembro, mas... é, cada ilha tinha um vulcão. AC– Você lembra como você fez o vulcão?

Bruno – Com argila.

AC – O que mais? Como é que se fazia a erupção?

Bruno – com copo. A gente colocou um copo embaixo e usou bicarbonato de sódio, vinagre e detergente. Quando entrava em erupção caía espumando.

Como dissemos no capítulo 2, o ateliê de artes para pessoas com deficiência visual tinha a preocupação na construção do indivíduo como um todo. Procurava ser um espaço de provocação e inventividade, procurando retirar o sujeito do seu conforto para enfrentar desafios. Neste aspecto podemos notar pela fala de Paula que ao retirar as pessoas da zona de conforto muitas vezes criam-se conflitos.

Paula – O que não era muito fácil é que eu achava que vinha para aula de artes só para pintar, para desenhar, para realizar as obras que eu queria realizar, e eu via que de repente não era assim.

Trabalhar com arte, com projetos de artes, é trabalhar com potencialidades de expressões, caminhos, matérias, espaços. Para um projeto de artes, é preciso observar as necessidades do grupo, mapear os questionamentos, instigar ideias e criar redes de conhecimento.

Os trabalhos de desenho e de pintura foram lembrados por ambos como momentos de aprendizagem de grande importância.

Paula - Gostei muito da mesa paleta, porque nela eu pegava as tintas que eu queria. Eu escolhia as cores que eu queria sem ninguém falar nada. Eu podia sujar o dedo, eu podia colar, podia pintar, eu podia fazer o que eu bem quisesse.

Oliveira (2002) ressalta que embora a pintura não seja acessível para o cego ele pode desfrutar da alegria de pintar. Citando Rona Shaw31 “para a criança cega o divertido [do ato de pintar] não está no produto acabado, mas sim no processo utilizado”.

31 Rona Shaw. The Creative Arts, in Geraldine T. Schnoll et alii. Foudantions of Education for Blind and Visual Handcapped Children and Youth. Theory and Practice, p.392

Bruno – Eu gostava de pegar o papel e uma caneta e desenhar coisas, não é. Coisas simples que tem no céu, na terra.

Ac – Como isto te ajudou a perceber mais o mundo? Você acha que o ateliê de artes te ajudou a perceber melhor o mundo?

Bruno – Me ajudou muito. Me ajudou até como representar as coisas, que eu não conseguia desenhar, não conseguia fazer nada. Graças ao ateliê me ajudou muito na parte de desenhar. Representar o mundo.

Pensando ainda diversidade de experiência que se deve proporcionar visando uma estética tátil, Bruno relembrou um momento de desconforto e ao mesmo tempo de superação. Logo nas primeiras aulas dentro do ateliê de artes em 2005, proporcionamos a exploração de vários tipos de massa como argila, papel maché e massa de farinha. A massa de farinha era feita pelo aluno com o auxílio da professora. Em uma bacia colocava-se a farinha e aos poucos iam adicionando água até chegar à consistência ideal. A mãe de Bruno já havia alertado sobre as sensações negativas que causavam esses materiais em seu filho. No entanto, sabíamos também dos benefícios que a exploração e investigação desses materiais podiam oferecer, como vimos com Suero (2003) e Bardisa (1992) no capítulo 2.

Bruno - O único trabalho que eu não gostei muito é o da massinha. Tinha que ficar mexendo assim. É que eu não gostava de mexer assim com a mão.

Ac – você não gostava de mexer com a mão ou não gostava de mexer com a massinha?

Bruno – não, mexer com a mão não. Com a massinha. Bruno –Foi o único que eu não gostei.

Ac – Qual massinha era? Aquelas que a gente fazia de farinha? Bruno – Que a gente fez de farinha e depois colocou no forno. Ac –Porque a massa ficava grudada na mão, não é?

Bruno – É. Depois nós colocamos no forno e ela endureceu. A gente colocou sal.

Ac – Nós comemos? Bruno – Eu comi uma. Ac – Comeu? Estava boa? Bruno – Estava muito salgada.

Bruno não gostava da sensação da massa grudando em suas mãos. Ele odiava sentir as mãos sujas, mas depois trabalhou a massa e a transformou em alimento. Por sua vez, Paula mostrou uma experiência diferente em relação às massas.

Paula – Os trabalhos que foram bastante significativos foram tudo que eu fiz com massa, sempre. Manipular massa é muito bom, você trabalha sua mão para fazer exercício, sua tristeza passa tudo.

Verificamos assim na fala dos entrevistados que as atividades artísticas oferecem oportunidades de enriquecimento de seu mundo interior e exterior,

permitindo que se expressem de diferentes formas: desenhando, escrevendo, ou movimentando seu corpo. A experiência artística oferece diferentes maneiras de expressão.