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O ateliê: potencialidades no encontro do cego com a arte

2. O ateliê: percurso do contato do cego com arte

2.1. O ateliê: potencialidades no encontro do cego com a arte

No ateliê, a cada ano, duas novas propostas eram apresentadas, uma para cada semestre. No primeiro semestre de 2008, trilhamos os caminhos da artista Lygia Clark, partindo de suas primeiras obras, que foram adaptadas para a compreensão tátil.

O ano começou com discussões a respeito das inquietações referentes ao ser e o mundo ao redor. Em 23 a 24 de outubro de 2007, participamos do I Colóquio Ver

e Não Ver, no Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro. Foi neste colóquio que

aprendemos um pouco sobre Merleau-Ponty, na palestra Experiências do Perceber, de Elcie Masini. Assim, com a influência do que havíamos escutado, estávamos atentas ao modo como nossos alunos habitavam o mundo e a maneira de se relacionarem com o outro, como se davam suas experiências e qual sua compreensão a respeito delas. Masini (2007, s/n) assim nos indicava o caminho para nos aproximarmos do universo dos alunos.

Assim, o receber informações do meio ambiente e das pessoas pelos sentidos que dispõem é acompanhado pelo sentimento de ser considerada, encorajando-a e ampliando seu interesse em identificar diferenças, usando todos os seus sentidos para explorar os objetos e a natureza. Dessa forma ela vai desenvolvendo suas habilidades de perceber, de experienciar, de organizar e de ampliar o conhecimento do mundo onde está. Seu interesse por identificar diferenças, é também influenciado pela atitude dos educadores – pais ou profissionais – de encorajar a criança a usar todos os seus sentidos para explorar os objetos e a natureza. Atitude que manifesta

o privilegiar a criança com suas características próprias em vez de focalizar a deficiência.

Foi assim que iniciamos o ano focando em como poderíamos, juntos, desenvolver um trabalho que fosse significativo para videntes e não videntes. Foram em nossos primeiros encontros que surgiram as discussões sobre o medo, espaço e o porvir. Fizemos alguns levantamentos de projetos que poderíamos desenvolver, quando nos deparamos com esta frase: “Tenho pavor do espaço, mas sei também que através dele me reconstruo” (CLARK, Manuscrito s/d, apud ROLNIK, 1999).

Foi a partir deste pensamento de Lygia Clark que iniciamos a pesquisa para o trabalho com os jovens com deficiência visual. Ao nos depararmos com esta frase, parecia que Lygia estava falando diretamente conosco. Os jovens apresentavam grande insegurança de locomoção e total dependência dos videntes. O espaço não era algo no qual estavam integrados, não interagiam com ele, não havia troca de informações. Tinham medo do espaço, mas era esse medo que poderia nos dar forças para continuar e reconstruir. É por causa do medo, e não apesar dele, que conseguimos perceber o mundo ao nosso redor. Tenho medo, mas ele me dá forças para continuar e reconstruir.

Chauí (2002), analisando Merleau-Ponty, refere-se à falta, ao vazio, como um propulsor para a experiência criativa. Chauí nos explica que o que faz amarrar a experiência, a criação, origem e Ser, é o Espírito Selvagem e o Ser Bruto. Portanto, era o Espírito Selvagem que procurávamos despertar nesses jovens. O Espírito Selvagem sendo aquele que quer e que pode:

[...] agindo e realizando uma experiência e sendo essa própria experiência. [...] O Espírito Selvagem é uma atividade nascida de uma força “eu quero” “eu posso” – e de uma carência ou uma lacuna que exigem preenchimento significativo (CHAUÍ, 2002, p. 152-153).

Era preciso valorizar o Ser Bruto, que é a própria diferença e a indivisão. Chauí (2002, p. 155) explica que o Ser Bruto não separa sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Esta díade é algo que não se divide ao mesmo tempo em que mantém a diferença de cada uma das partes. Só há luz porque há sombra, alto porque há baixo, visível porque há o invisível, dizível porque há o indizível, pensável porque há o impensável, dentro porque há o fora. O Ser Bruto e o Espírito Selvagem, juntos, formam a “polpa carnal do mundo, carne de nosso corpo e carne das coisas”.

O medo do espaço, a dificuldade de se locomover nele, o modo como os jovens o percebiam e como articulavam suas relações com o mundo exterior eram instigantes para nós. A falta da visão nos lançaria para um mundo paralelo?

Sem a visão, acreditamos que o mundo se dilui, perdemos nossas referências, não conseguimos nos localizar. Não conseguimos caminhar até os locais que nos são habituais. Ao mesmo tempo em que o mundo se dilui, ele se torna extremamente concreto em seus obstáculos. O buraco no chão, mesmo que pequeno, pode nos derrubar, e ao cairmos teremos a impressão que nos quebramos por inteiro, tendo a sensação de estarmos no fundo de um buraco hostil. Ao caminharmos pela calçada, a janela aberta de uma casa pode ferir nosso rosto, e o susto será tamanho que ficaremos congelados e trancados dentro de nosso próprio corpo.

O corpo, esse corpo que nos faz sentir e perceber o mundo à nossa volta, aos poucos vai se transformando, por insegurança e medo do desconhecido, numa carapaça que nos protege das percepções e decepções exteriores. O poeta Walt Whitman, em Folhas de relva, obra de 1885, cantava o corpo como uma fonte de saber.

[...] Olha teu corpo compreende e é o sentido, o assunto principal, e contém e é a alma (WHITMAN, 199316 apud LEHRER, 2009, p.17).

Sendo teu corpo alma e o assunto principal, ele está e é espaço, e precisa movimentar-se para compreender o mundo, expressar-se, amar, sofrer.

Compreender é possuir a consciência das características essenciais de algo. Compreender a relação inseparável entre o corpo e o mundo, o corpo e os outros corpos, a existência e as ideias. Para Merleau-Ponty (2006), devemos reaprender a ver as coisas, como se as tivéssemos olhando pela primeira vez, em sua gênese. Bachelar (2004) também fala da importância de um novo perceber o mundo. Esse filósofo acredita que é o momento essencial da construção de uma imagem que irá nos ajudar a “reconstruir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem” (BACHELAR, 2004, p. 3).

Refletindo sobre quando observamos um quadro, vemos mais do que vemos e que as imagens poéticas são ressonâncias do passado abrindo-se para o futuro.

16 WHITMAN, Walt. Leaves Grass: was somebody asking. The “Death-Bed Edition”, Nova Iorque: Random House, 1993.

Assim, fizemos uma conexão com nossa experiência pessoal para tentar compreender o que Merleau-Ponty e Bachelar queriam transmitir. Assim, durante viagem, no outono, aos Pirineus, fronteira natural de montanhas entre a França e a Espanha, os quadros dos impressionistas tornaram-se mais claros. Os quadros de Monet, por exemplo, tornaram-se muito mais compreensíveis e reverberaram dentro de nós, porque caminhamos por locais parecidos com algumas paisagens elaboradas pelo pintor. A luz, a cor, a vegetação da Europa são completamente diferentes das que estamos acostumados. A luz e as cores do outono nos são estranhas, nos deslumbram e intrigam. Que luz é essa? Que cores são estas que não encontramos em nossa paleta de terra brasilis? O ar, a umidade, o cheiro, nada faz parte do que vivemos como paisagem. Lilia Schwarcz 17, em sua apresentação no Colóquio Internacional Brasil-França 2009, realizado em setembro de 2009 na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, conta que o pintor Nicolas- Antoine Taunay, participante da Missão Artística Francesa que chegou ao Brasil em 1816, tinha muita dificuldade de compreender a paisagem brasileira, e reclamava da luminosidade e do excesso de tonalidades de verde, pois tinha como referencial as paisagens europeias, tão diferentes das paisagens do Rio de Janeiro do século XVIII.

Vemos, então, que nossa percepção depende muito daquilo que já conhecemos, de nossa bagagem cultural. Percebemos e relacionamos com experiências passadas para compreender o algo percebido.

Eu teria muita dificuldade de dizer onde está o quadro que olho. Pois não o olho como se olha uma coisa, não o fixo em seu lugar, meu olhar vagueia nele como nos nimbos do Ser, vejo segundo ele ou com ele mais do que o vejo (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 18. Grifo do autor).

As coisas nos olham, o mundo nos fala. Informações captadas através das coisas que estão à nossa volta. Estas informações são internalizadas e podemos externar as coisas que sintetizamos. Podemos expressar o conhecimento do mundo através do verbo, da pintura, do gesto, da forma.

17

Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e autora de O Espetáculo das Raças (Companhia das Letras, 2003), As Barbas do Imperador (Companhia das Letras, 1998), A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis (Companhia das Letras, 2002), O Livro dos Livros da Real Biblioteca, (Biblioteca Nacional/Odebrecht, 2003) e Registros Escravos (Biblioteca Nacional, 2006), entre outros livros.

Por meio da arte podemos decifrar o mundo a nós mesmos. A obra de arte e o fazer artístico proporcionam a experiência criadora na qual nos diferenciamos e nos encontramos: “o pintor traz seu corpo para ver o que não é ele, o músico traz seu corpo para ouvir o que ainda não tem som, o escritor traz a volubilidade de seu espírito para cercar aquilo que se diz sem ele” (CHAUÍ, 2002, p. 163). A arte proporciona diferentes maneiras de perceber o mundo e é pela poética do artista que se promovem nossos deslocamentos para tornar visível o invisível, pensado o impensável.

Ao apresentar Lygia Clark para nossos alunos com deficiência visual, tínhamos a intenção de apresentar a poética da artista desde seus primeiros trabalhos. Tínhamos claro que era preciso compreender a busca do artista, a compreensão do espaço pictórico, do plano e do espaço.

Carregávamos em nossa bagagem atividades de exploração com sólidos e formas geométricas e do espaço ao redor, feitas de anos anteriores. Já havíamos estudado o espaço do papel e descobrimos as linhas e suas capacidades expressivas. Sabíamos que as nossas experiências significativas deveriam basear- se na compreensão concreta do mundo.

As descobertas, as dúvidas, os caminhos e opções que cada um estava trilhando eram compartilhados por todos, mesmo sendo de turmas e horários diferentes.

Iniciávamos nossos trabalhos no ateliê de artes fazendo uma sondagem sobre o que nossos jovens queriam, e também procurávamos entender quais eram as suas dúvidas, temores e angústias.

Realizávamos discussões durante nossas aulas após a leitura de textos, dentre os quais “Nosso medo mais profundo”, de Marianne Williamson, do livro

Return of Love, usado por Nelson Mandela no discurso de posse como primeiro

presidente negro da África do Sul em 1994, e a obra O medo, de Carlos Drummond de Andrade.

A intenção, na leitura desses textos, era a de refletir sobre as potencialidades e possibilidades de desenvolvimento, oferecendo ferramentas para ampliar a reflexão do viver no mundo, atribuir novos sentidos, construir conceitos e ampliar as ideias a partir do compartilhamento com o outro.

No ateliê de artes fazíamos primeiro uma sondagem, verificando como estava cada grupo, para depois iniciarmos uma proposta de projeto.

Para apresentação da proposta do projeto Lygia Clark, os grupos já estavam trabalhando com temas como espaço, tempo e sentidos, além das questões de sentimento de vulnerabilidade, insegurança e medo. Nessas ações, estávamos fazendo um levantamento dos problemas que poderiam ser trabalhados e os desafiando para novos olhares.

O Projeto Lygia Clark surgiu em meio a diferentes maneiras de se perceber o mundo e inquietações trazidas por nossos alunos assim como nossas próprias inquietações.

Apresentamos o projeto Lygia Clark porque sentíamos que essa artista trazia as inquietações que queríamos trabalhar com nossos alunos. Pensávamos em oferecer oportunidades de compreender a trajetória da artista desde seus primeiros trabalhos na fase concreta até os seus últimos trabalhos, os Objetos Relacionais. Tínhamos a nosso favor a grande abertura de nossos alunos. No entanto, nosso tempo era escasso, nossos encontros eram semanais e tinham duração de duas horas. Mas era um grande desafio.