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Sob a ótica da filosofia merleau-pontyana, a magnitude de uma revisão de literatura está em reanimar os estudos já realizados sobre um tema que se propõe a discutir e “lhes arrancar um oco que eles nunca haviam produzido”, o qual o autor designou de impensado (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 93).

Retomando a literatura sobre cuidadores em gerontologia, percebi que os estudos acerca do tema tiveram início há quase três décadas. Nos anos 1980, os resultados das pesquisas revelavam uma visão predominantemente negativa acerca da experiência de cuidado. Um estudo realizado por Zarit et al. (1985) constatou que o cuidar constitui fator de estresse para os cuidadores, interferindo em sua saúde física e mental. Outros autores (MACE e RABINS, 1981; CHENOWITH e SPENCER, 1986; GEORGE e GWYTHER, 1986) concluíram que o sofrimento dos cuidadores envolve quatro níveis: físico, psicológico, social e espiritual; o que corresponde, segundo Missinne (1984) e Soelle (1973), ao sofrimento em seu mais verdadeiro sentido, isto é, se o sofrimento envolve apenas um ou dois desses níveis, a pessoa consegue superá-lo e esquecê-lo mais facilmente, porém, envolvendo as quatro dimensões, será mais difícil suporta-lo. Mais especificamente sobre o cuidador familiar do portador de demência, Levine et al. (1984, p. 222) chegaram a afirmar que um cônjuge de uma pessoa com demência “vive em uma prisão, luta sobre um campo de batalha e perde o vigor em um campo de concentração”.

No final dos anos 1980 e início da década de 1990, começou a surgir um outro olhar em relação ao cuidado. Alguns pesquisadores admitem que estão sendo negligentes pelo fato de não examinarem os resultados do cuidado de uma forma potencialmente positiva (FARRAN et al., 1991). Estes autores desenvolveram um estudo com 94 cuidadores familiares de pessoas com demência do tipo Alzheimer e vascular, incluindo dados quanti-qualitativos, cujo objetivo consistiu em compreender a experiência de cuidado a partir de uma perspectiva existencialista, e ao final do estudo eles sugeriram o existencialismo como um paradigma alternativo que ajudaria a entender melhor como os cuidadores podem crescer e encontrar sentido através da

experiência de cuidado.

Em nível de Brasil, uma revisão de literatura bastante consistente sobre cuidadores foi encontrada no estudo realizado por Santos (2003) em sua tese de doutorado a qual resultou na publicação do livro Idosos, família e cultura: um estudo sobre a construção do papel do cuidador. Em tal revisão, a autora destaca os estudos sobre cuidadores familiares de idosos em distintos níveis de incapacidade, envolvendo as diversas patologias que geralmente acometem as pessoas de mais idade. Os estudos realizados por Mendes (1998), Andrade (2001) e Yuaso (2001) identificam que há uma falta de preparo da família para o exercício das funções cuidativas junto ao idoso, bem como a ausência de suporte dos sistemas de saúde e social; já o estudo de Andrade (2001) corrobora com ode Mendes (1998), destacando a falta de orientação e ajuda especializada aos cuidadores familiares, e desenvolve um trabalho individualizado de qualificação junto a eles no contexto domiciliar, considerando suas necessidades específicas. Yuaso (2001) concorda com o destacado por Mendes (1998) e Andrade (2001) acerca do despreparo dos familiares cuidadores e desenvolve um treinamento com um grupo de cuidadores familiares em um serviço público de saúde.

Continuando em sua revisão de literatura, Santos (2003) retoma os estudos realizados por Alvarez (2001) e Sommerhalder (2001) junto a familiares cuidadores de idosos portadores de diferentes patologias e que apresentavam limitações funcionais graves. Alvarez (2001) enfatiza em seus resultados, entre outros aspectos, a falta de uma rede de apoio comunitário e social às famílias e aos idosos, sobretudo, os mais carentes; destaca, ainda, a falta de cooperação por parte dos serviços públicos de saúde com as famílias que prestam cuidados domiciliares a idosos dependentes, e a carência de profissionais de saúde qualificados para o atendimento aos idosos e sua família. Sommerhalder (2001) traz um aspecto interessante em seu estudo sobre os significados associados à tarefa de cuidar de idosos dependentes no contexto domiciliar, que é a noção de ganhos ou benefícios psicossociais percebidos pelos cuidadores na diversidade de significados que fazem parte das atividades do cuidado; destacou também o ônus físico associado. Este estudo me chamou a atenção pelo enfoque psicossocial adotado, especificamente pela desmistificação do cuidado como algo eminentemente prejudicial ao cuidador.

Os estudos de Pelzer (1993), Perracini (1994) e Caldas (2000) também apontados na revisão feita por Santos (2003), direcionam-se aos familiares cuidadores de idosos portadores de demência. Pelzer (1993) destaca-se por realizar uma pesquisa que considerei de caráter mais pragmático e interventivo na medida em que buscou identificar as demandas dos cuidadores familiares e oferecer suporte profissional para ajudá-los na resolução de seus problemas, similarmente ao que fez Andrade (2001), quando procurou aproximar-se das famílias cuidadoras de idosos portadores de acidente vascular cerebral e investir no apoio ao sistema de suporte familiar ao idoso, a partir de uma perspectiva holística de saúde.

O estudo de Perracini (1994) investiu em analisar a multidimensão das tarefas desempenhadas pelos cuidadores de idosos portadores de demência, inferindo sobre aquelas tarefas que apresentavam maior grau de dificuldade para o cuidador; os dados revelaram que os déficits cognitivos manifestos pelo portador são mais difíceis de lidar que as tarefas diretas de cuidar. Os resultados desse estudo mostraram também uma carência dos familiares no que refere a uma rede de suporte social e profissionais qualificados para atendê-los com informações sobre a doença da pessoa de quem cuidam e em suas necessidades de saúde.

Já o estudo desenvolvido por Caldas (2000) consistiu em analisar de forma compreensiva o sentido de ser um familiar cuidador de um idoso que vivencia um processo demencial a partir da perspectiva existencial em Heidegger. A autora argumenta que o seu intuito foi buscar uma fundamentação para sua prática, considerando que as abordagens funcionalistas, as quais vêm norteando as pesquisas em Enfermagem, não dão conta de compreender a complexidade que envolve o atendimento de uma demanda com características peculiares, como é a desses cuidadores. Discutindo os resultados desse estudo, a autora destaca que a abordagem funcionalista trata o cuidador como objeto de prescrições, anulando suas possibilidades de tomar decisões; entende que o cuidador não pode deixar de ser uma pessoa para ser uma categoria e conclui afirmando acreditar ser possível encontrar a dimensão ontológica do cuidador através da qual se poderá compreendê-lo e dele cuidar.

(MENDES, 1998; ANDRADE, 2001; YUASO, 2001; ALVAREZ, 2001; SOMMERHALDER, 2001; PELZER, 1993; PERRACINI, 1994; CALDAS, 2000), destacou alguns pontos que elas têm em comum: o ressentimento dos cuidadores familiares pela falta de uma rede de suporte efetivo nas áreas social e de saúde; a carência de treinamento e orientações específicas que subsidiem os cuidadores na realização do cuidado domiciliar; a solicitação de profissionais especializados para tirar dúvidas ao longo do processo de cuidar; os cuidadores familiares contam apenas com a rede de suporte familiar; há necessidade de profissionais qualificados para o atendimento ao idoso e sua família nos vários níveis de atenção à saúde. Refletindo sobre os dados revelados nessas pesquisas, a autora resgata o trabalho de Debert (1999) sobre “reprivatização do envelhecimento” e desenvolve a expressão “reprivatização do cuidado” ao perceber que estamos vivenciando no Brasil “um movimento de retorno dos cuidados para a família e a esfera doméstica” (SANTOS, 2003, p. 21).

A pesquisa de Santos (2003) acrescenta importante contribuição ao conhecimento sobre familiares cuidadores, tendo como foco aqueles que cuidam de portadores de demência, e discute os resultados sob a perspectiva da Antropologia. Seu principal objetivo foi investigar a constituição do papel de cuidador de idosos que sofrem de demência, no contexto do domicílio, bem como identificar os significados dessa experiência para os cuidadores. A partir da análise dos discursos dos participantes do estudo, a autora estabeleceu cinco temas amplos, os quais constituem os resultados gerais de sua pesquisa: “a construção da demência como doença e do familiar como doente”; nesse item, a autora discute os diferentes aspectos que envolvem os significados que os participantes do estudo atribuíram à demência; “o cuidador familiar na sua pluralidade”; aqui, a autora discorre acerca do processo dinâmico em que ocorre a construção do papel de cuidador de um portador de demência no contexto familiar; “a complexidade do processo de cuidar”; este tópico trata de uma discussão sobre o significado do cuidado, e de seu impacto na vida de quem cuida e do receptor do cuidado, pautada nos diversos estudos realizados por enfermeiras; “o grupo doméstico e a dinâmica de interações com o cuidador familiar”; nesse tema, a autora busca compreender a complexidade que envolve as interações

familiares e a existência de uma rede familiar de cuidadores, bem como o grupo doméstico e a rede de apoio social; “tensões, dilemas e conflitos vividos pelos cuidadores”; esse tema comporta uma discussão acerca dos diversos conflitos que envolvem: cuidador-portador e cuidadores-demais membros da família (SANTOS, 2003, p. 207).

Bocchi (2004) efetuou uma pesquisa bibliográfica acerca da sobrecarga vivenciada pelos cuidadores familiares de pessoas com Acidente Vascular Cerebral (AVC). Foram recortados dezoito artigos dos setenta localizados nas bases de dados: Medline, Lilacs, Cinahl, envolvendo desde os primeiros estudos na década de 1980 até dezembro de 2000. A autora realiza uma análise temática do material, destacando os efeitos da sobrecarga do cuidado na saúde física e emocional dos familiares cuidadores. Tal estudo agrega-se à tradição daqueles que consideram o cuidado de pessoas com incapacidades funcionais como uma experiência negativa para os familiares cuidadores, no sentido em que lhes produz conseqüências psicossociais. A autora conclui enfatizando a necessidade de ampliação do conhecimento sobre a experiência de familiares cuidadores.

No ano de 2005, foi publicado outro importante estudo realizado por docentes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com esposas de idosos com incapacidades funcionais. Dentre vários aspectos, as autoras destacam que as esposas entrevistadas “cuidam de seus maridos idosos de forma integral, cotidiana, intuitiva, improvisada e solitária”, não contam com orientação de profissionais e “carecem de recursos públicos e sociais de apoio” (GIACOMIN, UCHOA e LIMA-COSTA, 2005, p. 1515). Enfatizam tratar-se de uma realidade que precisa ser reconhecida pelos órgãos públicos de saúde e de assistência social, bem como do esforço conjunto de todos os setores da sociedade.

Vivenciando o processo de revisão do conhecimento produzido em relação aos cuidadores familiares de idosos e, mais centradamente, sobre cuidadores familiares de portadores de demência, dois estudos me chamaram a atenção por mostrar em a existência de certa proximidade com o presente estudo. A pesquisa de Farran et al. em 1991, realizada nos EUA, a partir de uma abordagem existencialista, busca compreender como os cuidadores podem encontrar sentido através do cuidar, uma

tentativa de visualizar o cuidado numa perspectiva mais otimista que não apenas uma experiência que traz sofrimento. Esta pesquisa despertou minha percepção, primeiro, pela preocupação dos autores com o “encontrar sentido” e, segundo, pela abordagem filosófica empregada, já que o existencialismo constitui um referencial originalmente fundado na fenomenologia. Já a pesquisa de Caldas (2000) se afina com a perspectiva desse estudo pelo fato de também adotar uma abordagem fenomenológica e por ocupar-se em compreender o “sentido do ser cuidando” relacionado ao familiar portador de demência, à luz de Heidegger. Em minha pesquisa, me ocupei da descrição das intuições que o cuidador exprime acerca de si mesmo como aquele que desempenha a função de cuidar de um familiar com Doença de Alzheimer (DA), à luz da teoria merleau-pontyana da intersubjetividade. Essa teoria me permitiu descrever o vivido a partir de minha experiência como cuidadora de um familiar com DA, e como enfermeira cujos objetivo, meta e prática é o cuidar.

Diante do exposto, o meu investimento na produção de um novo saber acerca de familiares que cuidam de pessoas com DA envolveu a retomada de diversas “verdades” ou saberes já constituídos sobre o tema, porém, a partir de um outro ponto de vista, que é a descrição do processo intencional considerado como uma vivência do corpo próprio, como explicita Merleau-Ponty.

Meu ponto não foi constatar, simplesmente, como é que a pessoa se sente como cuidadora, mas, na experiência que ela tem como cuidadora, quais são as vivências em que ela se identifica ou se experimenta, por exemplo, como alguém que tem dignidade, como alguém que tem saúde, que tem um sentido, enfim, que tem um propósito de vida. Ou ao contrário, em minha experiência com os familiares cuidadores de portadores de DA, percebi que, diante dela vivência de cuidar, algumas pessoas se anulam, deixam, por exemplo, de fazer algo para si, de tentar construir uma vida afetiva, de prestar atenção nos outros membros de sua família ou de se divertir, para dedicar-se à pessoa de quem cuida, e às, vezes, o cuidador pode se dar conta de que é mais fácil para ele ficar cuidando de uma pessoa com DA do que cuidar de si, isto é, o cuidador se ocupa de tal maneira na relação com o familiar portador que ele deixa de visualizar as possibilidades de que dispõe como corpo próprio.

vários perfis em que o cuidador se identifica essencialmente e se diferencia na intersubjetividade com a pessoa portadora de DA. Tais perfis constituem a base vivida desde onde se podem pensar formas de cuidado e de valorização do trabalho do cuidador, estratégias de mobilização das possibilidades que o cuidador tem para cuidar de si, de organizar-se como categoria, de discutir com os familiares no sentido de aglutiná-los para o auxílio ho cuidado do portador de DA, enfim, de buscar a sua felicidade.

Nessa perspectiva, penso que a relevância maior do estudo consistiu em fazer ver a possibilidade de ressignificar a pessoalidade do cuidador, através da mobilização vivencial do corpo próprio como campo fenomenal, a despeito de o cuidado de um familiar com DA constituir uma experiência complexa e que produz um relevante impacto no contexto da família. Esta compreensão é muito importante, porque toda e qualquer estratégia de apoio ao cuidador deve ter por base a experiência de cuidado tal como ela é vivida pelo cuidador e tal como o cuidador se identifica nessa experiência, e é a partir dessa base que toda e qualquer política pública de apoio deve ser pensada; se uma política ignorar esse aspecto, ela ignora seu fundamento. Desse modo, quero fazer uma descrição eidética ou essencial, no sentido fenomenológico da palavra, da identidade que o cuidador conquista no decurso de sua experiência de cuidar de um familiar portador de DA.

DO NASCIMENTO DA FENOMENOLOGIA COMO CIÊNCIA

RIGOROSA À ONTOLOGIA DA EXPERIÊNCA DE MERLEAU-PONTY: SUSTENTAÇÃO FILOSÓFICA DO ESTUDO

“Aprender a ver as coisas é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 212).