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A experiência de campo teve início com a apresentação do projeto de pesquisa em uma das reuniões do GAM. Não obstante os integrantes do grupo já terem conhecimento de minha perspectiva de estudo, nesta reunião em especial, com a presença da coordenadora do GAM, fiz uma exposição dos objetivos, da proposta metodológica, dos possíveis benefícios do estudo como construção do conhecimento na área de cuidadores de pessoas com DA, o qual poderia subsidiar o planejamento e a implementação de estratégias que vissem atender a este segmento da população. Falei também que o projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da UFSC .

Dando continuidade, convidei o grupo para participar da pesquisa. Ao final da reunião, dez cuidadores se apresentaram interessados (grupo de colaboradores vivenciais – GCV). Destes dez, conforme já referi antes, convidei cinco (subgrupo de colaboradores reflexivos) para participar previamente de dois encontros e expliquei aos demais que após as reuniões com o Sub-GCR, agendaria com eles as datas e os

locais para realização das entrevistas.

Em um primeiro momento, com o Sub-GCR discutimos mais detalhadamente o desenvolvimento da pesquisa, seu objetivo, a estratégia de coleta de dados e a importância da construção de um roteiro com temas gerais relativos ao estudo que pudesse nortear e dinamizar a realização das entrevistas na coleta dos dados. Na oportunidade, deixei que o grupo falasse livremente de suas vivências e pedi que destacasse aquelas com as quais se identificava juntamente com outros integrantes do GAM, e ainda outras vivências que gostaria de explicitar e que não se sentia à vontade para expor nos encontros do GAM. Essa reunião durou aproximadamente três horas. Durante o período, procurei relatar os temas emergentes e ao final fiz a leitura das anotações buscando a confirmação do grupo. Encerrando aquele encontro, combinamos um outro que ocorreu uma semana após, durante duas horas. Procurei enfatizar que, se no intervalo entre as reuniões alguém retomasse alguma vivência e desejasse que fosse incluída na relação dos temas de pesquisa, poderia encaminhá-la por escrito para o meu endereço eletrônico; e, na reunião seguinte, relacionaríamos aqueles temas que constituiriam o roteiro de entrevistas a serem realizadas. Assim, no segundo encontro retomamos a discussão e conseguimos relacionar os seguintes temas:

• Autonomia/flexibilidade do cuidador junto ao portador na fase inicial da DA: no GCR, apareceu que a pessoa tem seu “temperamento”, por exemplo, mais “dominador”, de repente, ao tornar-se cuidadora de um familiar com DA, ela tende a mudar seu temperamento (“ceder”), tornando-se mais “maleável”, em função das demandas da pessoa com as manifestações da doença, ou seja, a pessoa (cuidadora) mudaria seu “jeito de ser” em função da necessidade do outro (portador da DA no início da doença);

• Sexualidade/afetividade do cuidador: o grupo destacou as dificuldades do cuidador no exercício da “sexualidade”/genitalidade. A filha que cuida da mãe com DA, em decorrência de ocupar-se intensamente com o cuidado, teria prejuízos na satisfação sexual/genital. O esposo de uma portadora da DA também teria este déficit, por diversos motivos, por

• O cuidado e o relacionamento familiar: o grupo enfatizou o impacto que um familiar com a DA gera em sua família: a dificuldade de envolvimento de toda a família na prática cuidativa e também o enfrentamento que, por exemplo, uma cuidadora teria com seu esposo e filhos pelo fato de estar quase que plenamente envolvida com o cuidado de sua mãe;

• Aceitação versus revolta do cuidador diante do diagnóstico da DA em um familiar: o grupo destacou que certos cuidadores se sentem extremamente revoltados ao tomar conhecimento do diagnóstico de DA em seu familiar, outros parecem ter mais facilidade em aceitar;

• A opção de ser ou não ser cuidador: na discussão, o grupo expressou sua dificuldade em saber o que leva uma pessoa a se tornar cuidadora de um famíliar com DA, pois entende que não há absoluta imposição para que alguém se torne cuidador, nem a escolha é absolutamente voluntária; • O cuidar: uma aprendizagem ou um dom? Alguns cuidadores acreditam

que certas pessoas são dotadas de capacidades especiais para o cuidado, outros acham que o cuidado depende da aprendizagem;

• A influência da história de relacionamento do cuidador com o portador no processo de cuidar atual: o grupo achou importante discutir a idéia de que, conforme ocorreu a relação do cuidador com o familiar no passado, isso interfere na decisão de tornar-se cuidador e também no modo como ele cuidará;

• Sentimento de culpa e institucionalização do portador: o GCR entende que o cuidador pode sentir-se culpado se tiver que encaminhar a pessoa com DA, por exemplo, a morar em uma casa de repouso ou outra instituição;

que os cuidadores podem sentir-se gratificados ao perceberem os resultados do cuidado para a pessoa de quem cuidam;

• Descoberta de talentos/crescimento pessoal do cuidador: o grupo acredita que a experiência de cuidado de um familiar com DA constitui uma oportunidade para o crescimento pessoal do cuidador e, inclusive, para a descoberta de certas habilidades;

• A relação: cuidar do outro e cuidar de si mesmo: o grupo considerou importante explorar mais com outros cuidadores sobre a possibilidade de cuidar de si enquanto cuida de um familiar com DA;

• O prazer e o desprazer no cuidar: o grupo destacou que há certos cuidados com o portador de DA que gratificam o cuidado e há outros que o constrangem.

Vale ressaltar que o propósito de elaborar este roteiro não se firmou na busca de algo já pensado por parte dos cuidadores, mas em motivá-los à expressão daquilo que, embora não tivesse sido articulado por eles, se anunciava como uma possibilidade que não é somente de um determinado grupo de cuidadores, mas de todos os cuidadores, que é a possibilidade de viver a experiência de cuidado de um familiar portador da DA com: saúde, dignidade e inseridos dialogicamente na sociedade. A tentativa visualizava a criação de uma forma desencadeadora do diálogo com os cuidadores através da entrevista, que eles sugerissem temas que mais freqüentemente ouviam de seus pares no GAM e os discutiam; também aqueles temas que, por algum motivo, eles não se sentiam à vontade para expor no GAM, mas que pudessem ser relatados durante as entrevistas de meu estudo. Durante os dois encontros para definição de temas para entrevista, percebi que a comunicação estava impregnada de idéias demasiadamente enraizadas; à medida que ouvia, notava que os cuidadores emitiam frases prontas, chavões advindos de um discurso já cristalizado, especialmente da Psicologia e da Biomedicina, até porque são cuidadores que integram um grupo de ajuda mútua que agrega profissionais de diversas áreas e, de certa forma, eles são afetados pelos discursos científicos. Estes aspectos, habitualmente, mobilizaram-me a fazer a redução, não no sentido husserliano de alcançar uma síntese intelectual, mas uma

analítica da ambigüidade, estratégia que criei orientada pela ontologia da experiência em Merleau-Ponty, a qual explicitarei mais à frente ao discorrer acerca da análise.

Construído o roteiro de entrevista, passei à etapa seguinte, que foi a obtenção das descrições vivenciais ou “coleta de dados”, como se diz na pesquisa tradicional. Esta fase se refere ao trabalho com o GCV através da realização de entrevistas com cada um dos dez componentes do grupo em separado. Com exceção dos integrantes do Sub-GCR, que precisariam preencher certos requisitos, os demais convidados deveriam atender apenas a um requisito: serem cuidadores principais, aqueles que assumissem “a responsabilidade integral de supervisionar, orientar, acompanhar e/ou cuidar diretamente da pessoa idosa, ou seja, aqueles que realizam a maior parte das tarefas” (SANTOS, 2003, p. 17). Assim, nas reuniões quinzenais do GCV, realizava o agendamento das datas e dos locais dos encontros com os colaboradores vivenciais. Antes de cada entrevista, fazia uma visita domiciliar para melhor entrosamento e familiaridade com o entrevistado, obtinha a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) confirmando o aceite em participar do estudo, apresentava o roteiro com os temas norteadores da entrevista e colhia os dados sociodemográficos do cuidador e de seu familiar com DA. Em seguida, agendava o encontro para a efetivação da entrevista. Algumas entrevistas foram realizadas nos domicílios dos cuidadores, e outras, em outros locais de suas preferências. As entrevistas tiveram duração média de duas horas, houve casos em que necessitei retomar a entrevista para esclarecer alguns pontos. Em todas as entrevistas, utilizei gravador digital, após obter consentimento do entrevistado. Todo o trabalho de campo transcorreu no período de maio à outubro de 2005.

Para iniciar a entrevista, eu procedia à leitura do roteiro com os temas desencadeadores, enfatizando que se tratava de temas bastante flexíveis e, portanto, eles poderiam sentir-se à vontade para falar de suas vivências como cuidadores. Deixava claro também que eles poderiam começar falando a partir de qualquer um daqueles temas, não importando a ordem disposta no roteiro. Alguns preferiam seguir a seqüência dada, outros optaram por escolher um tema para iniciar o diálogo. No entanto, conforme explicitei anteriormente ao falar da entrevista como “um apelo ao outro eu mesmo”, tudo ocorreu como sempre acontece na experiência do diálogo com

um amigo ou quando lemos algo em que nos deixamos envolver totalmente na vivência.

Os temas, tais quais aparecem no roteiro de entrevista, deixam transparecer que, na dinâmica do cuidar, cuidador e pessoa com DA, há uma relação de determinação. Os cuidadores do subgrupo de reflexão, ao tentarem em articular seus pensamentos sobre como vêem o cuidado de seu familiar com DA, destacaram, por exemplo, entre outros, o tema: a influência das relações anteriores com o familiar portador e o cuidado atual, fazendo ver que eles olham este aspecto como determinante para um lidar efetivo ou inefetivo. Por outro lado, durante a entrevista, a descrição do tema ocorreu de forma bem mais complexa e ambígua, demonstrando que o processo ocorre como uma multiplicidade aberta e indefinida, envolvendo uma implicação recíproca entre ambos (cuidador e pessoa com DA, e vice-versa). Aplicando a analítica da ambigüidade, essa relação de implicação se inscreveu na categoria: orientação intencional no cuidado.

Tal processo na concepção metodológica de Husserl corresponderia à retirada do objeto em proveito da vivência, ou seja, suspende-se uma tese naturalista em função do vivido intencional. Contudo, na perspectiva da analítica que proponho, essa categoria não se refere a uma síntese reflexiva como uma idealidade pura, mas apenas como um dos pólos da ambigüidade. Desta forma, se efetivou todo o processo da análise, sempre atentando para que o pensamento objetivo disposto no roteiro de entrevista não me fizesse perder o contato com a experiência perceptiva da qual a objetividade resulta e é sua conseqüência natural.

Ao concluir as entrevistas com os dez voluntários iniciais, percebi que não precisava mais buscar outros para agregar à amostra, pois as descrições vivenciais mostravam-se como uma experiência ambígua e, por conseguinte, independente do número de pessoas entrevistadas, o foco central do estudo é a descrição das experiências como eventos de campo, e não a determinação objetiva no sentido de fornecer uma explicação consistente para as situações factuais que apareceram nos relatos dos cuidadores. Percebi que a ambigüidade revelada por cada entrevistado era semelhante àquela que eu experimentava em meu próprio corpo como mundo da vida que sou. E, neste sentido, me convenci de que dez entrevistados eram suficientes para

corroborar que a experiência de cuidado de um familiar com DA consiste em uma vivência que acontece em um campo fenomenal, é da ordem da percepção. Com esse entendimento, não é propósito deste estudo fornecer explicações consistentes acerca das vivências dos cuidadores, mas, ao contrário, mostrar as ambigüidades que as caracterizam. O estabelecimento de algumas categorias de análise não significa ter alcançado as vivências essenciais, mas a confirmação de um dos pólos da