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3.2 Fenomenologia e conhecimento

3.2.3 Intencionalidade como processo de campo: ego transcendental – corpo

Na fenomenologia como uma psicologia eidética, Husserl, contrapondo-se ao psicologismo da época, cujo objeto de trabalho era a consciência enquanto atributo de um ego psicofísico, começou a se questionar por que a atividade intencional tem que pertencer a uma coisa em si mesma; então, percebeu a necessidade de estabelecer a redução da psicologia para a fenomenologia; ele reconheceu que não se tratava mais de descrever o mundo vivido que a consciência (ego psicofísico) traz em si, mas de descrever as vivências intuitivas tais como elas ocorrem e se exprimem nos objetos transcendentes, ou seja, o que importava para Husserl era o todo de suas vivências e a maneira como essas vivências se exteriorizavam nas relações.

Sendo assim, Husserl passou a descrever a atividade intencional como uma ocorrência originária que ele chamou de consciência, à qual tudo o mais era relativo. Do mesmo modo como se exprime uma unidade a partir de meus atos intuitivos (fenômenos psíquicos, intuições fenomênicas, sentimentos, todo espontâneo, indeterminado, irreflexivo) e também uma unidade dos meus atos indicativos (intuições categoriais, linguagem, todo reflexivo), entre todos esses atos, primitivos e superiores, há também uma unidade, que constitui uma espécie de orientação

espontânea de minha existência como um todo, que é a consciência, esta não estaria subordinada a uma coisa em si mesma (ego psicofísico). Neste caso, no dizer de Merleau-Ponty (1999, p. 94),

[...] a consciência deixa de ser uma região particular do ser, um certo conjunto de conteúdos “psíquicos”, ela não reside mais ou não está mais ilhada no domínio das “formas” que a reflexão psicológica primeiramente reconhecera, mas as formas, como todas as coisas, existem para ela.

Assim, a noção de campo em Husserl não tem a ver com um espaço “geográfico” de uma consciência psicofísica, mas com uma consciência que exprime a organização espontânea dos vários vividos; o campo ou consciência não é algo que existe desde sempre, não tem a ver com uma estrutura rígida, mas com aquilo que se mostra de um modo diferente em cada evento. Ao perceber a dinamicidade das vivências imanentes (obscuridade e ambigüidade subjetiva) e transcendentes (clareza das vivências intencionais a partir da intersubjetividade), a instabilidade dos sentimentos, a mutabilidade da identidade junto às coisas mesmas, Husserl absteve-se da concepção de consciência como um campo de expressão espontânea dos vividos e passou a designá-la como algo que flui no tempo através da relação eu-outro-mundo, a qual envolve o “despertar” dos “pensamentos constitutivos do outro, de mim mesmo enquanto sujeito individual e do mundo enquanto o pólo de minha percepção. [...]. Tal é a perspectiva ordinária de uma filosofia transcendental” (MERLEAU-PONTY, 1999 p. 94).

O que seria, então, essa consciência que flui no tempo ou esse campo? Para responder a esta pergunta, tentarei, na seqüência, explicitar aquilo que consegui apreender da filosofia do ponto de vista dinâmico ou teoria da temporalidade em Husserl. Nesse momento, vou partir da questão fundamental husserliana, que é metodológica, no sentido de que ele busca descrever o processo de construção do conhecimento. Deste modo, a questão de Husserl é: como um vivido pode ser conhecido? Estudando a evolução dos três projetos da fenomenologia de Husserl,

entendi que ele sempre concebeu o processo de conhecer a partir da intencionalidade, que ocorre através da relação subjetividade-intersubjetividade (HUSSERL 1983; MÜLLER, 2001).

Assim, a partir do terceiro projeto, Husserl conseguiu superar sua dificuldade em esclarecer a natureza da consciência de um campo como unidade de relação, e, neste sentido, organizou e explicitou de forma clara como se exprimem os vividos na perspectiva temporal. Acerca desta noção dinâmica da consciência, que Merleau-Ponty (1999, p. 190) designa de “vida perceptiva”, ele diz:

[...] a vida da consciência [...] é sustentada por um “arco intencional” que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É esse arco intencional que faz a unidade entre os sentidos, a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre a sensibilidade e a motricidade.

Foi com esta concepção que Husserl apresentou na obra Meditações cartesianas, em 1931, a tese de que a consciência é a unidade do fluxo temporal dos vividos, substituindo, portanto, a idéia de consciência como campo pela noção de consciência como um processo temporal que corresponde à forma originária da intencionalidade operativa, aplicada a todos os vividos intencionais, da qual Husserl se ocupou nas Lições sobre a fenomenologia da consciência interna do tempo. Nas Meditações cartesianas Husserl compreendeu que aquilo que ele só admitia para a intencionalidade operativa ele deveria admitir para toda a consciência.

Nesta perspectiva, Husserl desenvolveu um esquema gráfico através do qual ele descreve em que sentido a intencionalidade operativa é uma forma originária temporal da consciência como um todo. Vejamos a seguir o gráfico do tempo de Husserl (apud MÜLLER, 2001, p. 270):

A P E P’ A’

AE Série dos “agora’’ AA' Escoamento EA' Continuum de fases

E (os "agora" com horizontes

de passado)

E Série dos "agora" que

poderão ser preenchidos

com outros objetos

Em seus cursos de fenomenologia, Müller-Granzotto (MÜLLER; MÜLLER -

GRANZOTO, 2004b) costuma apresentar a descrição husserliana acerca da temporalidade de uma forma pragmática e compreensível, como se pode ver a seguir:

e’ (? – possível)

Diz Merleau-Ponty (1999, p. 558) que “O tempo não é uma linha, mas uma rede

de intencionalidades”. Para este autor, o sonho dos filósofos é “conceber uma ‘eternidade de vida’ para além do permanente e mutante” e “se devemos encontrar

d’ (? – possível)

E

A (vivência)

a’ (vivido retido)

a’’

e’

D

uma espécie de eternidade, será no coração de nossa experiência do tempo e não em um sujeito intemporal que estaria encarregado de pensá-lo e de pô-lo”.

Neste sentido, a perspectiva existencial de eternidade, Husserl chamou-a de “série dos agora”, que, conforme o gráfico do tempo, pode ser descrita assim: quando se tem uma vivência A, se projeta um horizonte de possibilidade (protensão) de uma vivência E, ou seja, e’ (?); quando de tem uma vivência E, A cai e fica retido na forma modificada a’ (vivido ou retenção ou co-dado), ao mesmo tempo se projeta um possível D, ou seja, d’ (?); quando se vive D, a’ se transforma em a”, E é retido como e’, e se tem uma outra “protensão”, e assim, sucessivamente, em uma contínua mutação. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 558-568). Diante de cada evento que vive, a pessoa retoma experiências retidas (vividos, co-dados) e visualiza uma possibilidade futura, essa totalidade que se exprime em cada vivência é intersubjetiva, é a relação do ego e seu alter ego (outro), é o que Husserl chamou em seu segundo projeto de consciência absoluta, e no terceiro projeto, se denominou campo temporal ou campo de presença (HUSSERL, 1983; MÜLLER, 2001).

Conforme Husserl (1983, p. 99-100), o tempo é a “forma universal de qualquer gênese egológica”, e diz mais:

Todas as formas particulares dos estados vividos concretos e das formações que, fluindo elas próprias se constituem nessa corrente, é já a forma de uma motivação que liga todos os elementos e que domina cada elemento particular. Podemos ver nelas as leis formais da gênese universal, conforme as quais, segundo uma certa estrutura formal noético-noemática, se constituem e se unem continuamente os modos do fluxo: passado, presente e futuro.

Assim, a consciência na perspectiva temporal flui continuamente em múltiplas vivências intersubjetivas; cada vivência constitui uma consciência transcendental absoluta, no sentido em que a pessoa retoma espontaneamente um vivido anterior experimentando uma totalidade (consciência irreflexiva, intencionalidade operativa, vivência retencional), ao mesmo tempo, agrega-se à possibilidade do outro (protensão, prospecção), constituindo um campo de presença, que é retroprospectivo (vivência de

síntese passiva). Deste modo, assim como o objeto é a unificação das várias essências de uma consciência, Husserl se referiu ao ego transcendental como sendo a unidade dos diversos objetos em que a consciência se reconhece; logo, o ego transcendental não é o ego psicofísico, visto que não é o continente das consciências transcendentais (objetos), mas a expressão da unidade dos objetos, que, por sua vez, são cada qual, a expressão da unidade das vivências essenciais.

Portanto, o ego transcendental, no dizer de Merleau-Ponty, é um corpo carnal, ou seja, à medida que eu sou uma possibilidade ao outro, o outro também o é para mim; juntas as possibilidades que abrimos, experimentamos a unidade daquilo que cada um de nós é. Esta unidade intersubjetiva constitui o corpo (HUSSERL, 1983; MÜLLER, 2001; MÜLLER-GRANZOTO e GRANZOTO, 2004a ).