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4.7 Fazendo ver o que se mostra desde si mesmo mediada pela analítica da ambigüidade

Retomando a idéia husserliana de redução eidética, transitando pela noção de síntese presuntiva na Fenomenologia da percepção, pela noção de vivência essencial como um disponibilizar-se dos corpos ao movimento que possibilita o descentramento e a reversibilidade nas obras merleau-pontyanas tardias, em minha análise das descrições vivenciais dos cuidadores fixei-me na idéia de ambigüidade por ser uma noção que mais se aproximou da tentativa de descrever o tecido intencional do qual se constituem as vivências a que me propus com este estudo. E, por não encontrar na literatura tradicional especializada um procedimento de análise que se adequasse efetivamente à minha proposição, mantendo-me coerente com a filosofia merleau- pontyana, arrisquei-me em fazer a analítica da ambigüidade como uma estratégia de organização das descrições vivenciais (“dados empíricos”).

Neste sentido, a análise do material coletado através das entrevistas fundamentou-se na descrição dos eventos que constituíam as vivências essenciais emergentes da intercorporeidade familiar entre o cuidador e a pessoa com DA, ou seja, na descrição daquelas vivências em que os cuidadores se identificam como corpo próprio na experiência perceptiva de cuidado, entendida sob a ótica de Merleau-Ponty como uma vivência que se exprime na “síntese presuntiva” dos horizontes, no sentido

de constituir um presente que contrai em si mesmo “o tempo escoado” (vividos) e “o tempo por vir” (perspectivas), tempos que o presente “só os possui em intenção” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 107). Logo, a análise não consistiu em uma determinação objetiva, quer dizer, eu não tive a pretensão de chegar à plenitude do objeto, mas a compreensão de como o em – si como uma vivência que flui na experiência perceptiva, em determinado momento “funda definitivamente um ponto no tempo que solicita o reconhecimento de todos os outros” (Ibid., p. 106). O objeto visto sob a perspectiva temporal constitui um fenômeno, algo que aparece parcialmente na experiência perceptiva.

A analítica da ambigüidade ocorre na seguinte perspectiva: enquanto estou lendo as descrições vivenciais, sinto algo que me é próprio em meu corpo, me deparo com um olhar que interrompe a trajetória perceptiva e sou arrebatada por uma experiência inédita que me faz trazer para o presente um mundo que me é estranho, mas que, ao mesmo tempo, me parece familiar. Neste instante, me esforço para decompor esse tecido intencional, aqui, aquilo que era irrefletido passa à reflexão e articula-se um pensamento, e este é objetado, é lançado ao exterior como objeto percebido, não do ponto de vista de algo acabado, mas como um tecido poroso que permite o vivido escoar no tempo e a percepção se movimentar de um perfil a outro.

Nesse processo perceptivo, se mostram uma “infra-estrutura” instintiva e uma “super-estrutura”, a qual se estabelece por meio da reflexão (MERLEAU- PONTY,1999, p. 84). Na análise, tive o cuidado para não tratar as descrições de “imediato como um conhecimento e esquecer seu fundo existencial”, pois, tratando-as dessa forma, isso implicaria o “prejuízo do mundo”, o mundo aqui entendido como a própria experiência perceptiva, que é uma experiência temporal e se refere à vivência de retomada de uma coexistência anônima (MERLEAU-PONTY,1999, p. 85).

A análise consistiu na abertura de um campo fenomenal, o qual a inscreve como uma experiência de campo, aquela em que a cada instante se contraem no presente horizontes de passado e de futuro, é um novo gênero de análise; não se trata mais de dois gêneros: um subjetivo e um objetivo, mas de uma descrição que tem a ver com o intercorporal em que está implicada uma atitude transcendental.

ou o esclarecimento da vida pré-científica da consciência, ela é a única que dá sentido completo às operações da ciência, trata-se de uma análise intencional. A analítica da ambigüidade se assemelha à experiência de contemplação de uma paisagem em que, para se perceber uma figura, se precisa fechar a paisagem às demais figuras e fixar o olhar no contorno da figura que se quer ver. Esse processo é o que ocorre em todos os momentos de nossas vidas, ele acontece espontaneamente, não pertence ao domínio reflexivo. Foi desta maneira que ocorreu na experiência de análise das descrições vivenciais dos cuidadores de DA. Ressaltando que não se trata de descrever o mundo vivido que a consciência traz em si, como um conjunto de conteúdos “psíquicos”, como pretende o psicologismo, mas se trata, sim, de compreender como esse vivido se constitui e se mostra desde si mesmo. Portanto, aqueles temas constitutivos do roteiro de entrevista e os relatos como tal, na análise, foram considerados como figuras, entendendo que estas traziam consigo um fundo de onde emergiam outras figuras. Assim, a analítica da ambigüidade e a conseqüente categorização a partir dos “dados empíricos” seguiram os passos seguintes:

1) Dadas as descrições vivenciais correspondentes às entrevistas realizadas com os cuidadores de pessoas com DA, houve a organização dos textos com a transcrição das gravações na íntegra;

2) Foram realizadas leituras exaustivas do material partindo das prerrogativas que se seguem:

• trata-se de um estudo fenomenológico e, como tal, busca a descrição de vivências, e não uma explicação para elas;

• entende-se que as vivências são ocorrências de campo, isto é, por se constituírem experiências perceptivas ou vivências do corpo próprio, acontecem em um campo fenomenal, que tem a ver com nossa inserção no mundo da vida, que é a percepção do ponto de vista de quem a vive; • como vivência do corpo próprio, compreende-se que se apresenta como

uma experiência ambígua, assim sendo, envolve duas dimensões: o ser bruto – um não saber de si ou consciência pré-reflexiva, onde habita um sentido esparso; e o espírito selvagem – consciência reflexiva, domínio da linguagem, onde se instala o universo de significações;

• compreendendo-se estar diante de uma experiência ambígua, o que se mostra nos relatos dos cuidadores são fenômenos, ou seja, o mundo aparece para mim parcialmente, porém, arrasta consigo um hábito, isto é, um horizonte de passado ou coexistência anônima, que retomamos em nossa vivência do corpo próprio.

3) Diante de tais ponderações, a leitura do material deve fluir livremente, deixando que os fenômenos se mostrem em si mesmos a partir de si mesmos; o que significa dizer que o pesquisador vive sua experiência perceptiva durante a leitura e nesta ele se reconhece como corpo próprio ou generalidade intercorporal. Com isto, corrobora-se que um estudo fenomenológico sempre parte de uma vivência.

Investido destas noções, o pesquisador se encontra em regime de redução fenomenológica, visto que está convencido de que há teses que dogmatizam o conhecimento, por acreditar que as coisas e os outros já são em si mesmos, isto é, os vê como objetividades a priori.

4) Realizada a leitura exaustiva do material, convencendo-se de que, não obstante as ambigüidades serem inúmeras, visto tratar-se de uma experiência perceptiva que se insere em um campo fenomenal, efetivam-se objetivações.

A ambigüidade que engendra a experiência perceptiva constitui-se de dois pólos: o sensível ou pré-reflexivo e o reflexivo; portanto, as objetivações, como operações expressivas, consistem em uma “transmutação” do pólo pré-reflexivo ao reflexivo, processo realizado pela fala utilizando-se de: palavras, formas, síntese e um gênero literário, aos quais se juntam o estilo próprio do escritor e os sentimentos que o habitam (MERLEAU-PONTY, 2002).

4.8 Buscando uma confirmação das categorias de análise: o (re) encontro com o outro eu mesmo

Esse (re)encontro ocorreu após o processo de criação das categorias a partir da analítica da ambigüidade. A idéia de confirmação das categorias de análise se refere à

noção husserliana de reconhecimento da unidade dos vividos que se exprimem nos objetos intencionais transcendentes como idealidades. Em Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, relaciona-se com a experiência do corpo próprio, e em suas obras tardias, fala-se da experiência do ser selvagem ou ser de generalidade. Em termos pragmáticos, poderia se exemplificar da seguinte forma: como pesquisadora, emprestei minha percepção à leitura das descrições experienciais dos cuidadores, as quais se mostraram para mim de forma ambígua; diante desta ambigüidade, emergiram expressões na tentativa de preencher uma falta imposta pela impossibilidade de apreender o vivido, ou seja, na tentativa de “traduzir” algo que é inapreensível em sua plenitude, e essas expressões, chamamos de categorias. Como se trata de uma experiência vivencial, assim como consegui reconhecer a minha unidade naquilo que construí, outros cuidadores também, ao olhar para aquelas categorias, reconheceram algo que lhes é próprio – a possibilidade de ser um outro eu mesmo.

Para este evento, convidei os dez cuidadores que participaram da pesquisa. Contei com o auxílio de uma das cuidadoras, que providenciou e preparou um local adequado no qual nos reunimos por aproximadamente três horas, apresentei e discutimos as categorias de análise. Dos dez convidados, oito se fizeram presentes ao encontro. Inicialmente, retomamos aqueles temas norteadores das entrevistas, dialogamos um pouco sobre a forma como foram construídos no Sub-GCR, a finalidade para a qual eles foram propostos, a maneira como haviam sido abordados durantes as entrevistas e o modo como os entrevistados discorreram sobre suas vivências, muitas vezes deixando de lado os temas ou dando a eles outra dimensão que não tinha a ver com uma relação de causa para efeito, conforme apareceram no roteiro de entrevista que alguns dos que estavam ali tinham contribuído para a elaboração. Dando continuidade ao encontro, apresentei as categorias resultantes do processo criativo de minha experiência perceptiva durante a analítica da ambigüidade. Em uma folha de cartolina, relacionei os temas do roteiro de entrevista sugeridos no Sub-GCR, e em outra cartolina registrei as categorias de análise que se mostraram na analítica da ambigüidade. Na seqüência, em regime de redução, suscitei o diálogo fazendo um paralelo do material descrito nas duas cartolinas.

DESCRIÇÃO DAS VIVÊNCIAS DO CORPO PRÓPRIO DOS

CUIDADORES DE PORTADORES DE ALZHEIMER: “O MUNDO

PERCEBIDO” ENQUANTO “CONJUNTO DOS CAMINHOS DE MEU CORPO”

“[...] a percepção mesma jamais é acabada, já que ela só nos dá um mundo a exprimir e a pensar através das perspectivas parciais que ela ultrapassa por todos os lados...” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 82).

Para iniciar este capítulo, gostaria de dizer que me sinto privilegiada por ter encontrado uma expressão tão adequada para denominar a segunda parte do título acima. Merleau-Ponty (1991), na obra “O visível e o invisível”, discute uma questão que é bastante enigmática nos procedimentos de análise na pesquisa qualitativa e que envolve dois grandes “paradigmas” predominantes no mundo científico: o problema da objetividade e o da subjetividade, os quais Merleau-Ponty trata como sendo tradições clássicas. A elas, já me referi anteriormente quando discutia a fundamentação filosófica do estudo. Ambas as tradições esbarram no problema da representação: se concebemos o conhecimento como uma representação das coisas, nos inserimos no objetivismo; se o concebemos como sendo uma representação resultante de conceitos produzidos pelo sujeito, nos enquadramos no subjetivismo. As duas posições inscrevem o saber sob a ótica da espacialidade. A filosofia merleau-pontyana vem exatamente desconstruir esses dois “mitos” e propor um não-lugar para o conhecimento. Este não-lugar está fundamentado numa perspectiva temporal, e, neste sentido, o conhecimento é ambíguo. Como ambigüidade, possui dois pólos, estes não são compreendidos como contradição, mas como “dois fios de um só tecido”, como

uma estrutura visível-invisível, figura-fundo.

Agora acho que se torna menos difícil explicitar a segunda parte do título deste capítulo: “o mundo percebido” como “conjunto dos caminhos de meu corpo”. Retomando o ponto de vista de Merleau-Ponty sobre a produção do conhecimento, ele parte das concepções de intencionalidade e objetividade, e desenvolve a filosofia da carne, ou seja, Merleau-Ponty entende que o saber não está nas coisas nem no sujeito cognoscente, mas se constrói a partir da percepção do ponto de vista de quem a vive, e esta é uma experiência do corpo próprio, a qual se instala como uma vivência do visível-invisível. Contudo, “é preciso não imaginar que ajunto ao visível perfeitamente definido como em-Si um não visível (que seria apenas ausência objetiva) isto é, presença objetiva alhures, num alhures em si) [...] – O mundo percebido [...] é o conjunto dos caminhos de meu corpo e não uma multidão de indivíduos espácio- temporais – O invisível do visível” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 224).

Meu entusiasmo pela expressão encontrada justifica-se pelo conforto que me trouxe no momento em que me ocupava em entender como ocorria o processo de diferenciação do corpo sensível, coexistência anônima, em uma carne gloriosa, objetivação por meio da linguagem, ou seja, a passagem do mundo do sentir ou mundo da vida para o mundo da cultura. Com essa estrutura visível-invisível, entendi que a objetivação faz parte do contínuo movimento de transcendência característico da corporeidade e que se exprime por meio da fala na experiência do outro, e, neste sentido, a objetividade é a glorificação do corpo sensível pela fala. Portanto, o mundo percebido a que me refiro tem a ver com a operação expressiva, por meio de gestos, da vivência do corpo próprio ou experiência perceptiva. Tal expressividade ou gesto de expressão “se encarrega de desenhar e de fazer aparecer no exterior o que ele visa, efetua uma verdadeira recuperação do mundo e o faz para conhecê-lo”; isto ocorre à medida que dispomos nossos “olhos de maneira a tornar possível a visão do único objeto”, momento em que consagramos nosso corpo “à inspeção de um mundo capaz de transportar as distâncias, de ultrapassar o futuro perceptivo, de desenhar na plenitude inconcebível do ser concavidades e relevos, distâncias e desvios, um sentido” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 105–106).

categorias ao vivenciar a análise das descrições experienciais dos cuidadores de portadores de DA, sem guia e sem modelo, mas partindo de minha vivência como corpo próprio, uma percepção do ponto de vista de quem a vive diante daquilo que se mostrou para mim nas incansáveis leituras do material coletado por meio de entrevistas com os cuidadores. Deste modo, poderia dizer que a categorização decorrente da análise resultou de um processo de percepção das percepções, ou seja, a partir das descrições que os cuidadores fizeram de suas vivências como corpo próprio na relação com seus familiares portadores de DA, eu, como pesquisadora, interagindo com tais vivências, o fiz mediante minha experiência como corpo próprio, uma vez que me reconhecia nas vivências deles. Assim, conforme o procedimento de análise descrito no capítulo anterior, as vivências eidéticas ou essenciais que se mostraram em minha percepção ganharam as expressões seguintes, considerando que a objetividade constitui um dos pólos da ambigüidade que caracteriza o cuidado de um familiar com DA:

• Orientação intencional no cuidado;

• Ambigüidade das demandas no processo de “tornar-se cuidador”; • Estilo e aprendizagem no cuidado;

• Ambigüidade saúde-doença no cuidado; • Efeito do cuidar nas relações familiares; • Percepção do outro e de si no cuidado; • Sexualidade no cuidado.

A seguir, passarei à apresentação das descrições vivenciais na forma como foram organizadas de acordo com a analítica da ambigüidade, a qual explicitei no capítulo anterior referente ao método: a partir da experiência intencional junto aos relatos dos dez cuidadores entrevistados, um a um, busquei descrever as diversas situações ambíguas que se mostraram em meu campo perceptivo durante o processo de análise. Os cuidadores foram identificados com codinomes referentes a pedras preciosas: Safira, Pérola, Rubi, Jaspe, Topázio, Esmeralda, Diamante, Cristal, Ágata, Sereno; e seus dados sócio-antropológicos estão descritos no final do capítulo.