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O primado da vivência se refere à experiência primeira, a qual Husserl chamava de mundo da vida e Merleau-Ponty vai chamar de “primordialidade das experiências [...], a ocorrência primitiva dos fenômenos”, aquilo que “haveria de se restituir” com uma nova ontologia, ou seja, retornar às coisas mesmas (MERLEAU-PONTY apud MÜLLER, 2000, p. 214-215). Conforme relatei no item acerca de minha vivência como cuidadora e o interesse pela temática, a idéia inicial deste estudo emergiu de um mundo perceptivo, de uma história que não é somente de uma pessoa como subjetividade distinta, mas de minha experiência primordial como uma generalidade, no sentido em que sou capaz de produzir essências em que outros podem nelas se reconhecer, assim como eu posso, como cuidadora, me reconhecer nas essências que outros cuidadores produzirem. Segundo Merleau-Ponty, apud Müller-Granzotto (2004, p. 23), “O espírito que percebe é um espírito encarnado, e é este enraizamento do espírito em seu corpo e em seu mundo que primeiramente buscamos restabelecer” ou seja, o primado da vivência.

4.2 (Re) inventando uma estratégia para a descrição do vivido: a analítica da ambigüidade

A meu ver, a opção por uma concepção filosófica e metodológica para a realização de um estudo se relaciona, fundamentalmente, com a visão que o pesquisador tem acerca do que seja o conhecimento, de como este é construído e da natureza do tema que se propõe a estudar. Conforme discorri mais detalhadamente no capítulo anterior relativo ao referencial filosófico, na perspectiva husserliana o conhecimento é intencional e, portanto, intercorporal; consiste de duas vivências que se completam: uma vivência de sensação ou ação, também designada como consciência irrefletida ou intuição fenomênica, e uma vivência de pensamento ou

intuição categorial. Tais vivências se espelhariam em um objeto transcendente.

Desta forma, para Husserl a pesquisa fenomenológica não se ocupa de objetos, mas das vivências que se efetivam em uma forma objetiva. As vivências não são individuais, o pronome possessivo na expressão “minhas vivências” se refere à minha participação no mundo da vida, e este é intercorporal. O método husserliano de pesquisa consiste em suspender as teses naturalistas que caracterizam as concepções objetivista e subjetivista acerca da produção do conhecimento, as quais envolvem crenças de que as coisas são em si mesmas, independentemente da atividade intencional. O fenomenólogo, através do processo de redução, suspende tais crenças em proveito da descrição dos vividos intencionais, ou seja, ele se ocupa das intuições fenomênicas a partir das quais a consciência constitui os objetos do conhecimento. A redução fenomenológica reúne duas etapas: a redução eidética e a redução transcendental.

A redução eidética ou redução essencial consiste em elevar-se a um nível transcendental, o que significa abandonar a idéia de que o mundo natural é constituído de um “aglomerado de coisas que valem por si desde que nascem, assim como nós já nascemos corpos individuais, ocorrências materiais que trazem em si mesmas aquilo que as define” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2004, p. 11).

A postura transcendental envolve um retorno às “coisas mesmas”, aos fenômenos tais como são vividos e que por meio de atos indicativos produzem objetos transcendentes; estes objetos são sempre ideais, eles somente existem para uma consciência e, portanto, não são coisas em si como crêem os naturalistas, eles são constituídos a partir da intersubjetividade. Por exemplo: ao descrever sobre os familiares cuidadores de pessoas com DA, eu poderia permanecer no mundo da cultura, confirmar as teses já estabelecidas por outros pesquisadores, ou fazer interpretações de depoimentos de cuidadores que apresentam frases ou definições prontas, ou seja, eu me manteria apenas em um nível reflexivo, partindo da representação e não da intuição. A fenomenologia possibilita que eu faça algo criativo: o conhecimento que estou produzindo sobre os cuidadores emergiu de uma experiência intuitiva, de algo bem primitivo, de meus sentimentos. Estes sentimentos mobilizaram vários atos, inclusive todo o processo de construção da tese, visando a

constituir formas objetivas que reunissem as vivências essenciais em que eu mesma e os cuidadores pudéssemos nos reconhecer como uma generalidade intercorporal. Deste modo, na análise das descrições busquei suspender tudo aquilo que representava coisas já definidas e me detive apenas naquilo que se mostrava como essencial.

A redução transcendental segue-se após a redução da atitude natural às essências; consiste em esclarecer a essência da consciência, ou seja, diante dos vários objetos produzidos a partir da redução eidética, o pesquisador deverá buscar aquilo que os unifica e os faz corpo carnal, conforme já vimos anteriormente quando falamos de um ego universal em Husserl.

Merleau-Ponty, não obstante inscreva grande parte de suas obras na filosofia de Husserl, e pela qual tem grande apreço, de onde extrai um impensado, especialmente em seus últimos escritos, já não faz mais fenomenologia no sentido husserliano de que, a partir da redução fenomenológica, se alcançaria a essência da consciência, pois constata que não é possível, a partir da redução eidética, se chegar a uma síntese intelectual. Merleau-Ponty, na obra Fenomenologia da percepção, vai falar de uma síntese presuntiva ou síntese de horizontes, a qual constitui uma experiência de campo, e nesta perspectiva a consciência irrefletida de que falava Husserl é inapreensível, as essências consistiriam apenas no movimento das vivências através de uma estrutura de horizontes ou estrutura figura-fundo.

Na evolução de seu pensamento, Merleau-Ponty vai construindo outras terminologias referindo-se à atividade intencional. Na Fenomenologia da percepção, ele desenvolve a noção de coexistência a partir da idéia husserliana de temporalidade em que, a todo o momento, através da experiência perceptiva, contraímos no presente um horizonte de passado e outro de futuro, constituindo uma vivência de campo ou vivência do corpo próprio. Esta seria a idéia de campo fenomenal ou mundo da vida, no qual estamos inseridos como ambigüidades.

Em seus textos tardios, Merleau-Ponty, especialmente na obra O visível e o invisível, em lugar de corpo próprio e coexistência, vai falar de um corpo de generalidade que permite o descentramento, o entrelaçamento e o quiasma, ou reversibilidade entre eu e o outro. Assim, Merleau-Ponty, no início, fala de uma fenomenologia da percepção e ainda faz referência à redução eidética ou essencial,

posteriormente ele amplia seu pensamento anunciando uma ontologia do ser selvagem ou ontologia da experiência, ou ainda uma filosofia da carne, conforme descrito no item relativo ao discurso fenomenológico em Merleau-Ponty, que integra a abordagem filosófica deste estudo. Neste sentido, se para Husserl a fenomenologia não se ocupa de objetos, tarefa que caberia à ontologia, Merleau-Ponty, embora anuncie a ontologia do ser bruto ou ser selvagem, não quer dizer que fazendo isso ele esteja sendo objetivista, trata-se de uma “ontologia indireta”, por meio da qual o autor se contrapõe à “ontologia cientificista” ou ontologia das ciências objetivistas (MOUTINHO, 2006, p. 39). Com essa nova ontologia, o autor tornou-se muito mais incisivo em suspender o naturalismo, ultrapassando a idéia de consciência ou síntese intelectual hussérleana e enfatizando a noção de ambigüidade.

O que me fascinou, ao estudar Merleau-Ponty, éo fato de ele nos fazer perceber a nossa inserção em um mundo que não pode ser apreendido ou controlado por meio de instrumentos, trata-se de um mundo anônimo, impessoal e indefinido. Este aspecto significou para mim inestimável responsabilidade em utilizar uma estratégia metodológica de pesquisa que me permitisse descrever as vivências, objetivo a que me propus através deste estudo, mantendo a fidelidade à ontologia merleau-pontyana. E foi por este motivo que, após ampla busca de um método que fosse coerente com a filosofia de Merleau-Ponty e que orientasse a operacionalização da pesquisa, especialmente, o processo de análise que, com todo respeito aos teóricos da metodologia da pesquisa qualitativa, dentre os quais destaco Minayo (1993), Morse e Field (1995), Haguette (2001), Jones e Hunter (1995), Turato (2003) Lakatos e Marconi (1991), percebi que seria mais prudente de minha parte criar uma estratégia de pesquisa que se aproximasse mais estreitamente do estilo da escrita merleau- pontyana e do fundamento de sua filosofia, qual seja, a concepção do movimento de uma “carne porosa” prescrita como a diferenciação de uma carne sensível (ser de generalidade, impessoalidade, mundo da vida, não saber) em uma carne gloriosa (pensamento, linguagem, mundo da cultura). Nesta perspectiva, optei pela construção de uma estratégia que norteou toda a dinâmica da investigação, desde a constituição dos integrantes do estudo, perpassando pelos procedimentos de coleta de informações, até o processo de análise das descrições vivenciais (designação que utilizei para me

referir aos depoimentos dos integrantes da pesquisa). Tal estratégia, denominei-a de analítica da ambigüidade, em cumplicidade com a nova ontologia instituída por Merleau-Ponty. A denominação analítica da ambigüidade se aplica mais diretamente à análise das descrições vivenciais ou, utilizando a expressão da pesquisa tradicional, a análise dos dados empíricos. Enfim, eu diria que a nova estratégia se constitui uma metodologia para a análise e descrição de vivências efetivando-as em um dos pólos da ambigüidade que engendra o mundo da percepção e o mundo humano. Desta forma, partindo da fenomenologia husserliana, até fenomenologia da percepção e finalmente à ontologia da experiência em Merleau-Ponty, me ocorreu um modo de organizar as descrições vivenciais deste estudo. A analítica da ambigüidade consistiu, portanto, em uma análise cuidadosa do corpus constitutivo das entrevistas realizadas com os integrantes do estudo, deixando aparecer aquelas vivências em que os cuidadores se identificavam como corpo próprio em sua relação com um familiar portador da DA. A estratégia será explicitada mais detalhadamente em etapa posterior, no momento da descrição do processo de análise.