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Como toda experiência humana se inscreve como uma vivência ambígua (MERLEAU-PONTY, 1999), assim ocorre com a experiência macro – a vida. “Saúde’’ e “doença’’ constituem categorias que se convencionaram para exprimir o movimento de nosso corpo objetivo em busca de ajustamento para a sobrevivência em

sua inserção no mundo espaço-temporal”. Dessa forma, saúde e doença são modalidades existenciais, elas nos aparecem fenomenicamente, como experiências que se mostram em um campo.

Embora o foco central do estudo não seja a DA nem seu portador, mas as vivências do familiar que cuida, ainda assim fui mobilizada a fazer uma breve exposição da forma como a medicina convencional aborda o tema. E, nesse sentido, me faço cúmplice daquelas pessoas que porventura desejarem conhecer esse trabalho e lhes ocorra a curiosidade de obter informações gerais sobre a DA.

Em 1901, em Frankfurt, na Alemanha, no ainda chamado Asilo Municipal para Insanos e Epilépticos, o médico neurologista Alois Alzheimer descreveu minuciosamente no prontuário o diálogo que estabeleceu com uma senhora chamada August D., de 59 anos de idade, que apresentava alterações de memória. Cinco anos após, aquela senhora veio a falecer, e Alzheimer já não se encontrava em Frankfurt, porém, foi feita a necropsia do cérebro de August D. e enviada para que ele pudesse avaliar, uma vez que tinha sido tão criterioso nos registros sobre sua cliente. Assim, em 1906, em um congresso, Alzheimer apresentou não apenas a descrição das manifestações clínicas e das alterações de memória, mas o que ele encontrou de diferente no cérebro daquela senhora: os agregados neurofibrilares e as placas neuríticas. Ainda hoje, essas duas formas são consideradas as principais alterações anátomo-patológicas responsáveis pela degeneração do tecido encefálico na DA, e o grande investimento em pesquisas na perspectiva da prevenção e cura da doença tem sido no sentido de evitar ou impedir a formação de tais alterações.

Considerando a expectativa de vida como um dos principais fatores de risco para a DA, visto que as lesões anátomo-patológicas citadas resultam, principalmente, do funcionamento cerebral ao longo do tempo, no início do século XX, quando Alois Alzheimer descreveu sobre a demência da senhora August D., sua descoberta não constituiu um problema, pois a expectativa de vida de um europeu era de 40 anos, logo, a DA era pouco freqüente. Nos últimos cem anos, essa expectativa duplicou, e os cientistas argumentam que os nossos órgãos não estão adaptados a viver, em média, o dobro da idade que se vivia há cem anos. Desse modo, aqueles de nós que vivermos por mais tempo, e que tivermos os fatores predisponentes à deposição das placas

neuríticas e dos agregados neurofibrilares no encéfalo, provavelmente teremos a DA, porém, aqueles que tiverem uma baixa taxa de fixação dessas lesões ou falecerem antes não terão a doença.

Os estudos no domínio da neurologia (American Psychiatric Association, 1994; COREY-BLOOM, THAL e GALASKO, 1995; CHAVES, 2000; CARAMELLI; BARBOSA, 2002; BAGNATI, 2003) têm destacado que a DA se caracteriza, fundamentalmente, pela presença de alterações em três habilidades cognitivas: memória (com piora progressiva), linguagem (afasia) e habilidades adquiridas para funções executivas do cotidiano (apraxia). A doença evolui de uma fase leve a uma avançada. Começa enfraquecendo a memória episódica, aquela relacionada aos eventos de que efetivamente participamos em nossa história de vida, progride afetando a memória semântica, relativa à aquisição de conhecimentos, por exemplo, por meio da leitura de um livro ou de um artigo; vai afetando também a linguagem com afasia nominativa, que é uma dificuldade e/ou incapacidade para dar nomes aos objetos, evoluindo com a diminuição e perda das habilidades adquiridas (incapacidade funcional), designada como apraxia.

Essa forma de comprometimento das chamadas funções mentais se relaciona com a dinâmica de deposição dos agregados neurofibrilares e das placas neuríticas, lesões neuronais típicas da DA, que, inicialmente, atingem a região medial dos lobos temporais envolvendo o hipocampo, onde se insere a memória episódica, avança de modo gradativo em direção às regiões laterais, responsáveis pela memória semântica, em seguida ao córtex frontal, envolvendo a linguagem e outras funções motoras. Enfim, à medida que as lesões vão alcançando outras áreas do encéfalo, várias funções vão sendo comprometidas. Destaca-se que, na fase mais avançada da DA, não só a memória explícita ou consciente (memória episódica e semântica) é afetada, mas também a memória implícita ou procedural, que seria uma capacidade inconsciente de adquirir habilidades para as diversas funções psicomotoras, como por exemplo, digitação, pedalar uma bicicleta, usar um instrumento musical, pintar uma tela, entre outras. Através desse aspecto da memória, os neurologistas argumentam sobre o fato de que certos portadores de DA, já em uma fase adiantada, não obstante apresentem uma grave perda da memória episódica e semântica, ainda conseguem executar certas

rotinas cognitivas, como por exemplo, a pintura.

Nos últimos anos, houve um grande investimento em pesquisas na tentativa de explicar os fatores que levam à constituição das lesões cerebrais características da DA. Para falar sobre este aspecto, escolhi as descrições de Jean-Jacques Hauw e sua equipe em 2001,neurocientistas do Laboratório de Neuropatologia do Hospital Salpêtrière em Paris. Tais descrições revelam que as placas neuríticas se relacionam com vários fatores, porém, o mais importante deles é uma mutação genética que vai implicar a quebra inapropriada da proteína precursora do amilóide (PPA). Esta proteína faz parte da membrana dos neurônios. À medida que o neurônio vai funcionando, a PPA se segmenta sob a ação de duas enzimas: a alfa e a gama-secretase, resultando no excesso de um fragmento chamado P3, que naturalmente é eliminado do tecido cerebral. O problema é quando esse processo ocorre por uma outra via, ou seja, ao invés da PPA ser clivada pela alfa-secretase, ela sofre a ação da beta-secretase, deixando um fragmento maior chamado beta-amilóide-42 (fragmento de 42 cromossomos – ab-42), que não consegue ser eliminado do tecido cerebral e desenvolve um processo inflamatório, uma lesão intersticial. Os agregados neurofibrilares, ao contrário das placas neuríticas, são lesões que se formam dentro do neurônio e se relacionam à fosforilação anormal da proteína tau, responsável pela sustentação do citoesqueleto do neurônio. Dentre outros componentes encontrados nas lesões beta-amilóides ou placas neuríticas, destaca-se também a apolippoteína-E (APOE), uma proteína transportadora de colesterol no cérebro. Em função de mutação genética, ocorre um polimorfismo da APOE, e acredita-se que ela deixa de exercer o papel de proteção e passa a intervir no metabolismo do peptídeo beta-amilóide.

O diagnóstico de DA fundamenta-se na avaliação do quadro clínico compatível e na exclusão de outros fatores que levam à demência. Geralmente, inicia-se a investigação aplicando testes neuropsicológicos, entre eles, o mini-exame do estado mental constitui o mais comum. O minimental consta de trinta questões, cujas respostas são avaliadas considerando a heterogeneidade educacional da população: uma pessoa não alfabetizada no Brasil atingindo dezenove pontos será considerada normal, já uma pessoa com oito anos de escolaridade terá que alcançar em torno de vinte e seis pontos para ser considerada normal (NITRINI et al., 2005). Para descartar

outros fatores que levam à demência, são realizados diversos exames complementares. Os exames laboratoriais envolvem: hemograma, provas de função tireoidiana, hepática e renal, sorologia para sífilis e AIDS, e nível sérico de vitamina B12 (CHAVES, 2000; KNOPMAN et al., 2001). A tomografia computadorizada (TC) e, particularmente, a ressonância magnética (RM) mostram atrofia hipocampal e do córtex cerebral embora haja casos em que os sinais de atrofia cerebral estão ausentes e a pessoa encontra-se em franca demência (CARAMELLI e BARBOSA, 2002; NITRINI et al., 2005). Para a avaliação do funcionamento cerebral, apesar do alto custo, estão sendo utilizados o PET (Positron Emission Tomografy) e o SPECT (Single-Photon Emission Computed Tomografy). Esses métodos mostram uma redução do fluxo sangüíneo nas regiões da amígdala e do hipocampo nas pessoas com DA. Outra técnica com valor diagnóstico, mas que ainda não está sendo usada de modo rotineiro, é a ressonância magnética com espectroscopia, a qual revela uma diminuição do N-acetilaspartato (NAA) e aumento do mio-inositol relacionados à formação hipocampal, indicando DA (NITRINI et al., 2005). O mercado internacional já dispõe do PIB, que é um anticorpo que se liga às lesões anátomo-patológicas que ocorrem nos portadores de DA. Com esse exame, pode-se diagnosticar o transtorno cognitivo leve (TCL); se a pessoa tem uma grande quantidade de PIB, ela terá um risco maior para a DA.

Quanto ao tratamento da DA, existe a perspectiva convencional ou terapêutica medicamentosa, e as práticas alternativas através da utilização de produtos naturais, técnicas de estimulação da função cognitiva (por exemplo, leitura, palavras cruzadas, jogos de salão, socialização), exercícios físicos para ativação do sistema circulatório, entre outros. A terapêutica alopática específica para a DA mais utilizada tem basicamente dois objetivos: propiciar a manutenção de certo nível da acetilcolina, substância neurotransmissora relacionada ao processo cognitivo que, na DA pela degeneração de neurônios responsáveis pela síntese colinérgica, se encontra em déficit; e impedir a entrada excessiva de íons cálcio nos neurônios em função da estimulação dos receptores de glutamato, o qual tem sua concentração aumentada no meio extracelular nos portadores de DA. Dessa forma, têm sido usados os anticolinesterásicos e os antagonistas glutamatérgicos. Os primeiros têm uma função inibitória reversível da atividade enzimática da acetilcolinesterase no espaço sináptico,

podendo estabilizar a doença por um período de três a cinco anos (SCOT e GOZ, 2000; MINGER, 2000). Os segundos são geralmente usados associando-se aos anti- colinesterásicos e diminuem a progressão da DA, inclusive em uma fase avançada da doença. São considerados neuroprotetores pelo fato de bloquear a entrada excessiva de cálcio no neurônio, evitando que este se degenere (ENGELBARDT et al., 2003).

Atualmente, há vários medicamentos em fase de teste, os mais promissores são: os inibidores da beta-secretase (enzima que faz clivagem inicial da PPA gerando o peptídeo beta-amilóide relacionado às placas neuríticas) e os inibidores da gama- secretase (enzima que faz a segunda clivagem da PPA resultando no peptídeo beta- amilóide relativo às placas neuríticas); estimuladores da alfa-secretase (enzima que, ao clivar a PPA, resulta em um peptídeo solúvel no meio intersticial do cérebro). Outra linha de pesquisa está investindo na produção de vacinas contra a constituição das placas neuríticas. Atualmente, há dois tipos de imunização sendo testados. No ano de 2005, na França, foi testado um dos tipos em humanos, e que implicou 6% de óbito, porém, os estudos continuam buscando uma forma que não cause reação cruzada no cérebro.

A experiência de estudar a DA a partir da descrição biomédica, não obstante os avanços extraordinários na pesquisa de métodos diagnósticos e de tratamento, ainda causa impacto ao estudante, porém, à luz da filosofia merleau-pontyana podemos olhar para a pessoa com DA de um modo mais otimista. Embora Merleau-Ponty (1999, p. 226-227) estivesse se referindo à afonia, acredito poder olhar também assim para o portador de DA: “o doente nunca está absolutamente cortado do mundo intersubjetivo, nunca inteiramente doente. Mas o que nele torna possível o retorno ao mundo verdadeiro são suas funções impessoais: os órgãos dos sentidos, a linguagem”.

Embora não constitua objeto desse estudo, acredito que seja possível pensar a DA, também, sob o olhar da ontologia da experiência de Merleau-Ponty, perspectiva que talvez pudesse contribuir de um modo mais otimista para o planejamento e a implementação do processo de cuidar da pessoa com DA. Por enquanto, me esforcei para suportar a limitação de não ter conseguido descrevê-la à luz dessa perspectiva, ficando a idéia para um possível projeto futuro.

2.3 A experiência de familiares cuidadores de idosos com limitações da