• Nenhum resultado encontrado

3.2 Fenomenologia e conhecimento

3.2.1 Descoberta do vivido intencional: Brentano

A história da fenomenologia caracteriza-se pela busca de solução para um problema que passou a incomodar os pensadores de meados do século XIX, que era a questão da não distinção entre objeto físico e objeto psíquico, ou seja, os psicologistas empiristas consideravam que os objetos eram produzidos pelo psiquismo através da associação de idéias simples e de reflexão, como diz John Locke (1973, p. 32):

[...] as qualidades que impressionam nossos sentidos estão nas próprias coisas, são unidas e misturadas que não há separação, nenhuma distância entre elas [...], as idéias, produzidas na mente, entram pelos sentidos, simples e sem mistura. Embora a visão e o tato recebam do mesmo objeto, com freqüência e ao mesmo tempo, idéias diferentes, fazendo com que um homem perceba o movimento e a cor, a mão sinta maciez e calor num mesmo pedaço de cera.

Wilhelm Wundt, outro associacionista, utilizou recursos da Física e da neurologia para compreender como ocorre o processo de conhecimento (MÜLLER- GRANZOTTO e GRANZOTTO, 2003). Embora Locke fosse mais especulativo e Wundt mais pragmático, ambos eram subjetivistas, acreditavam que o conhecimento era produzido pela psique de forma solipsista, os objetos físicos e os objetos psíquicos resultavam de atividades que ocorriam em nível neurológico e que podiam ser descritas físico-quimicamente, eles confundiam os atos sensitivos com os correlatos

objetivos: “Todo o conteúdo dos ‘psiquismos’, resultando, segundo as leis da psicofisiologia e da psicologia, de um determinismo de universo, achava-se integrado ao em si” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 88).

Nesse ínterim, surgiu o filósofo Francisco Brentano, que tenta conceder uma solução para o problema apresentado através de uma nova teoria, que chamou de intencionalidade. Brentano não chegou a romper totalmente com a tradição psicologista, ele não duvidava da relação existente entre o objeto e o psiquismo, porém acreditava na possibilidade de distinção entre objetos físicos e objetos psíquicos, propondo uma teoria para a compreensão desta diferença, a partir da investigação daquilo que constitui os objetos, que são os atos. Estudando os atos, Brentano percebeu que eles são modos psíquicos de intervenção junto aos fenômenos; então, retomou a concepção kantiana de fenômeno, segundo a qual fenômeno é aquilo que aparece na experiência corpórea a partir da sensibilidade, e percebeu que há dois tipos de fenômenos, fenômenos psíquicos e fenômenos físicos. Diz Brentano (1944, p. 9):

O mundo inteiro de nossos fenômenos se divide em duas grandes classes: a classe dos fenômenos físicos e a dos psíquicos. Temos falado desta distinção ao observar o conceito da psicologia, e temos visto sobre ela na investigação acerca do método. Mas o dito não é bastante. Devemos definir agora com mais precisão e exatidão aquilo que então ficou só fugazmente indicado.

Logo, o fenômeno físico é aquele que necessita de um ato para se tornar um todo, já o fenômeno psíquico aparece espontaneamente como um todo, independente de um ato anterior, a exemplo dos sentimentos. Deste modo, Brentano resolveu a questão que o incomodava, ele concluiu que o objeto físico é constituído a partir da hegemonia dos atos, e o objeto psíquico depende de atos orientados pela intuição (BRENTANO, 1944; MÜLLER, 2001; MÜLLER-GRANZOTTO e GRANZOTTO, 2004a). Este conhecimento foi fundamental para o surgimento da filosofia fenomenológica husserliana e de todas as suas derivações, desde a ontologia fundamental de Heidegger, a ontologia pré-reflexiva de Sartre, até a fenomenologia da

expressão de Merleau-Ponty, ou seja, a teoria da intencionalidade constitui a base característica de toda a história da fenomenologia.

Neste sentido, entender a noção de intencionalidade de Brentano é essencial para a compreensão da noção de consciência em Husserl. Brentano recorre a Tomás de Aquino, pensador da alta escolástica, para descrever em que sentido os fenômenos psíquicos constituem totalidades sem a intervenção anterior de atos. Para Tomás de Aquino, a intencionalidade se refere à capacidade humana de

[...] estabelecer figurações inextensas relativas ao mundo sensível, as quais não seriam o resultado da união das partes imanentes aos nossos atos, mas uma organização espontânea dessas partes como um todo imagético.” (MÜLLER-GRANZOTTO e GRANZOTTO, 2003, p. 3).

Neste sentido, a teoria da intencionalidade brentaniana apresenta duas características fundamentais: a primeira se refere à intencionalidade como um fenômeno psíquico, um todo espontâneo que se arma de forma primitiva, não demandando, portanto, a deliberação de funções corticais superiores, por exemplo, a ativação das áreas de linguagem, ou seja, depende apenas das estruturas relativas à fisiologia primária (sistema nervoso periférico, todo o sistema ganglionar, envolve tudo aquilo que ocorre no tronco e no diencéfalo), como é o caso dos sentimentos; a segunda tem a ver com o fato de esse todo espontâneo, também chamado de gestalt, proporcionar orientação objetiva aos atos superiores. Com este pensamento, Brentano introduziu, pela primeira vez na história da Filosofia, a idéia de que os atos superiores são controlados por atos inferiores, causando, assim, grande impacto no ambiente científico da época, especialmente entre os psicologistas (MÜLLER-GRANZOTTO e GRANZOTTO, 2004a).

Em suma, o fundamental para Brentano era esclarecer a natureza do conhecimento, mais especificamente, o conhecimento perceptivo e, neste sentido, ele o defina como sendo o resultado do processo intencional; acreditava que este processo era imanente ao ego psicofísico, ou seja, ocorria no interior do corpo como

subjetividade anátomofisiológica. Assim, Brentano não era um solipsista porque ele cria na existência das coisas, porém conservava uma posição naturalista na medida em que acreditava que o conhecimento era propriedade de um ego psicofísico; diz Merleau-Ponty (1999, p. 88) que “O naturalismo da ciência e o espiritualismo do sujeito constituinte universal, ao qual chegava à reflexão sobre a ciência, tinham em comum o fato de nivelarem a experiência: diante do eu constituinte, os Eus empíricos são objetos”.

3.2.2 Intencionalidade como processo de identificação reflexiva: fenomenologia