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Parte I – Fundamentação Teórica

I.2. Famílias e Políticas Sociais

I.2.3. A família na legislação brasileira

No Brasil, uma série de marcos legais aponta para a concepção oficial de família em cada momento histórico. Considerando as legislações em vigor a partir do século XX, tem-se, inicialmente, o Código Civil de 1916, que pressupunha um modelo único e padrão de família: fundada no matrimônio, hierarquizada e patriarcal. As uniões não-oficializadas, apesar de existirem na realidade cotidiana dos indivíduos, não encontravam reconhecimento e proteção legal. Os filhos estavam divididos em categorias, e sofriam discriminação na forma de tratamento de acordo com a origem – filhos legítimos, ilegítimos e adotivos. O pai era o grande chefe da família e detentor do pátrio poder, enquanto a mulher era considerada incapaz pela lei civil, e devia submissão e obediência ao marido. Da mesma maneira, os filhos estavam também submetidos à autoridade do patriarca (L. B. M.. Alves, 2006; Paulo, 2009).

A harmonia, a paz doméstica, o equilíbrio, a segurança e a coesão formal da família deveriam ser preservados. Assim, a felicidade pessoal era preterida, muitas vezes, em função

da manutenção do vínculo familiar a qualquer custo – “o que Deus uniu o homem não pode separar”. O divórcio, portanto, era proibido e se punia severamente o cônjuge tido como culpado pela separação judicial.

De acordo a visão predominante na legislação da época, a função primordial da família era garantir a transmissão patrimonial. Assim, consta no Código Civil de 1916 uma extensa normatização sobre o regime de bens, sucessão, deserdação, etc. O campo extrapatrimonial encontrava pouco espaço no direito de família, se tornando importante apenas quando gerava reflexo na esfera patrimonial.

L. B. M. Alves (2006) critica o Código Civil de 1916, afirmando que, através dele, pretendeu-se controlar a dinâmica social, impondo à sociedade um conceito único de família. Assim, a ênfase no casamento como meio único de constituição da família reflete a influência da Igreja Católica e de valores cristãos no Brasil. Além disso, sendo um instrumento legislativo que consagra os valores burgueses do século XIX, o Código deu um caráter essencialmente patrimonialista e patriarcal à família, que é tratada como um ente de produção de riquezas a serem perpetuadas para as gerações seguintes. A defesa do patrimônio está, desse modo, acima da defesa das pessoas. O grande desequilíbrio entre os cônjuges e a superioridade masculina presentes na legislação são reflexos da sociedade ainda patriarcal e machista da época.

A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Novo Código Civil de 2002, há grande mudança na concepção de família no Brasil. Esta, se torna plural, com várias configurações possíveis, e preza pela igualdade na relação entre os membros. A família monoparental (art. 226, parágrafo 4o), bem como a advinda da união estável (art. 226, parágrafo 3o), goza agora dos mesmos direitos que a família matrimonializada, tendo seu reconhecimento legal garantido. Quebra-se, então, o monopólio do casamento como único meio legitimador da família. Além disso, abre-se amplamente a possibilidade de

descasamentos e de recasamentos, de acordo com o interesse individual de cada sujeito (L. B. M. Alves, 2006; Paulo, 2009).

A hierarquia, o patriarcalismo e a desigualdade cedem lugar à democracia e à isonomia entre os cônjuges e entre os filhos. Homem e mulher devem dividir os deveres e as responsabilidades com o lar, os filhos, os bens, e todas as decisões devem ser tomadas em conjunto. Deveres como a fidelidade, a coabitaçao, o sustento, a guarda, e a educação dos filhos são, portanto, revistos.

Fica evidente que, na atual visão de família, a transmissão do patrimônio deixa de ser o foco primordial. A ênfase se volta para o afeto, a solidariedade, o respeito e a comunhão de vida, em detrimento de aspectos exclusivamente financeiro-econômicos. Assim, família passa a ser vista como um instrumento através do qual se busca a felicidade e a realização da dignidade. A Constituição Federal de 1988 marca, portanto, a despatrimonialização do Direito de Família (L. B. M. Alves, 2006; Paulo, 2009).

Observa-se que, no Brasil, a responsabilidade familiar está explícita já na norma constitucional, quando, no capítulo VII, é atribuído aos filhos a obrigação de cuidar dos pais durante a velhice, em situação de carência ou doença, e da mesma maneira, é atribuída aos pais a responsabilidade pela criação dos filhos (Art.29).

Para melhor compreender a concepção de família contida na Constituição Federal de 1988, Tartuce (2007) discute nove princípios constitucionais que fundamentam o atual Direito de Família. O primeiro deles, Princípio de Proteção da Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, inc. III, da Constituição Federal de 1988), é o princípio máximo do nosso Estado Democrático de Direito, sendo ponto de partida para o novo Direito de Família. Demonstra que, na nova legislação, ao mesmo tempo em que o patrimônio perde importância, a pessoa humana é supervalorizada em suas necessidades e possibilidades de realização individual.

O Princípio da Solidariedade Familiar (Art. 3º, Inc. I, da Constituição Federal de 1988), por sua vez, busca a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que é o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Sendo assim, a solidariedade familiar não é apenas patrimonial, mas também afetiva e psicológica. É importante refletir que, com esse princípio, ao gerar deveres recíprocos entre os membros do grupo familiar, o Estado afasta-se da responsabilidade de prover direitos básicos aos cidadãos, delegando a responsabilidade, em primeiro plano, para a entidade familiar.

O terceiro ponto é o Princípio da Igualdade entre os Filhos (Art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, e Art. 1.596 do Código Civil), segundo o qual os filhos, oriundos ou não do casamento, ou havidos por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, ficando proibida qualquer forma de discriminação. Nota-se que tal princípio tem repercussões tanto no campo patrimonial, no que se refere à transmissão dos bens familiares, quanto no campo pessoal, com o reconhecimento afetivo e social da paternidade.

O Princípio da Igualdade entre os Cônjuges e Companheiros (Art. 226, § 5º, da Constituição Federal, e Art. 1.511 do Código Civil) preza pela igualdade entre homens e mulheres, e estabelece o casamento ou a união estável como comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres. Já o Princípio da Igualdade na Chefia Familiar (Arts. 226, § 5º, e 227, § 7º, da Constituição Federal de 1988, e Arts. 1.566, Incs. III e IV, 1.631 e 1.634 do Código Civil) decorre deste princípio anterior. Assim, a chefia familiar deve ser exercida tanto pelo homem quanto pela mulher, em regime democrático de colaboração, tendo também os filhos o direito de opinar e participar das tomadas de decisões. Nesse sentido, a expressão "pátrio poder" é substituída por poder familiar – é a despatriarcalização do Direito de Família.

O Princípio da Não-Intervenção ou da Liberdade (Art. 1.513 do Código Civil) garante que o Estado ou mesmo um ente privado não pode intervir coativamente nas relações de

família. Porém, este princípio deve sempre ser lido e ponderado frente a outros princípios, como, por exemplo, em casos de violência familiar, quando a intervenção se faz necessária para garantir a integridade dos sujeitos.

Por fim, tem-se o Princípio do Melhor Interesse da Criança (Art. 227, Caput, da Constituição Federal de 1988, e Arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil), contido também no ECA, segundo o qual a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral.

Comentando também outras legislações que abordam o tema da família, tem-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nos artigos 19, 22 e 23, dá grande prioridade ao direito à convivência familiar e comunitária. No artigo 19, enuncia o direito de ser criado e educado na própria família ou em família substituta; no artigo 22, enuncia que aos pais incube o dever de sustento, guarda, educação dos filhos; no artigo 23, proíbe que a suspensão do poder familiar aconteça em função de carência de meios materiais da família, determinando que esta seja obrigatoriamente incluída em programas oficiais de auxílio. Por fim, define que a efetivação dos direitos da criança e do adolescente é de responsabilidade da família, comunidade, sociedade e poder público. Nota-se, entretanto, que é dada posição prioritária ao papel da família. (Campos & Mioto, 2010).

A Política Nacional do Idoso (PNI) (Lei nº 8.842, de janeiro de 1994) e o Estatuto do Idoso (Lei nº10.741, de 1º de outubro de 2003) dão prioridade à família enquanto instituição mais capaz de produzir o bem-estar na terceira idade. A internação em asilos ou hospitais só deve ocorrer como última alternativa, pois o isolamento social do idoso é visto como prejudicial. Reafirma-se, portanto, a necessidade do idoso conviver com a sociedade, com outras gerações, participar de grupos e associações, etc. (Campos & Mioto, 2010).

A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340), sancionada em agosto de 2006, cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Nas

disposições preliminares, reitera que todas as mulheres gozam dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e que, assim, devem ser asseguradas condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária; responsabiliza o poder público por desenvolver políticas que visem à garantia dos direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares, resguardando-as de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; por fim, determina que a família e a sociedade, ao lado do poder público, devem criar condições para a efetivação dos direitos das mulheres.

No que se refere ao conceito de família contido na Lei Maria da Penha, esta deve ser “compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” (art. 5º, inc. II). L. B. M. Alves (2006) considera que, ao apresentar este conceito de família, a Lei Maria da Penha torna-se a primeira norma infraconstitucional a reconhecer categoricamente o conceito moderno de família, prevalecendo a ideia de que a família não é constituída por imposição da lei, e sim pela vontade de seus próprios membros. Assim, a entidade familiar ultrapassa os limites da previsão jurídica constitucional (família advinda do casamento, da união estável e da monoparentalidade), abarcando agora todo e qualquer grupo de pessoas que enxergam uns aos outros como seu familiar, prevalecendo o afeto. Nesta linha de raciocínio, o autor considera que o conceito legal acaba por reconhecer também a união homoafetiva, especialmente ao dispor, no parágrafo único do art. 5º, que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. A Lei reconhece então, em primeiro lugar, a união afetiva entre mulheres e, pelo princípio da igualdade, também entre homens.