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Parte I – Fundamentação Teórica

I.2. Famílias e Políticas Sociais

I.2.4. Família e Políticas Sociais no Brasil

As políticas sociais em favor da família nascem tardiamente nas diversas regiões do mundo. Isto porque, na mentalidade dominante no Welfare State (Estado de Bem-Estar Social), define-se o indivíduo como portador de direitos e centro das políticas sociais, em detrimento de sujeitos coletivos, como a família e a comunidade. No Brasil, apesar do pouco avanço do Estado de Bem-Estar Social, privilegiou-se o direito da "criança", do "trabalhador", o amparo ao "idoso", o cuidado ao "cidadão", o que demonstra que as necessidades individuais tornam-se o centro da atenção da administração pública e das organizações não- governamentais. Nesse período, a atenção à família é, portanto, periférica.

Somente no final da década de 80, ganham espaço as políticas em favor da família, com o intuito de fortalecê-la, para que possa cumprir com suas funções da maneira mais adequada possível. Passa-se de uma lógica individualista para uma lógica comunitária, buscando-se o crescimento humano para todos os membros da família e para o grupo familiar no seu conjunto (Petrini, 2003).

A Assistência Social no Brasil, consolidada através da Lei Orgânica da Assistência Social de 1993 (LOAS) e da Política Nacional de Assistência Social de 2004 (PNAS), é direito do cidadão e dever do Estado. Consiste numa política de seguridade social não- contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento das necessidades básicas da população. Representa, assim, um sistema unificado de enfrentamento à pobreza e de acesso às políticas setoriais, que traz como foco a garantia do direito de viver em família e em comunidade, bem como a preservação ou o resgate dos vínculos familiares e comunitários. A proteção integral à família por parte do Estado visa atender aos indivíduos sociais, levando em consideração o espaço sócio-familiar e rompendo com a cultura de fragmentação

no atendimento das demandas sociais. A família é vista, portanto, como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização, provedora de cuidados, mas que também precisa ser protegida.

Sobre isso, Melo (2012) argumenta que a matricialidade na família acaba por revalidar o conservadorismo no trato das sequelas da “questão social” e no entendimento da família contemporânea, constituindo-se como um mecanismo de vigilância e de punição dos pobres, e de responsabilização da família pelo papel de proteção social de seus membros, em detrimento da promoção de políticas sociais de apoio por parte do Estado:

Assim, a família em referência é a família pobre e/ou extremamente pobre, que é chamada a se reestruturar como espaço de proteção e cuidado, de acordo com o ideal pré-estabelecido e determinado pela política social. Para tanto, delegam à família fragilidades e contradições. Entretanto, contrários a essa afirmativa da PNAS, entendemos que tais contradições não são da família e, sim, vivenciadas por ela. Pois as contradições, hoje vivenciadas pela família, são expressões, no espaço cotidiano, das contradições inerentes a uma sociedade de classes, que vive, sobrevive e lucra com as desigualdades sociais (p.107).

As ações socioassistencias assumem, portanto, dois papeis: o de administração e controle da pobreza, e o de criminalização e punição dos pobres inadaptáveis, que não estariam cumprindo suas funções sociais. O Estado delega a culpa da situação de pobreza e miséria aos indivíduos e suas famílias, e a criminalização se evidencia quando a família não consegue superar a sua condição nem com a ajuda do governo, nem com a caridade, nem com a solidariedade da rede de amigos e familiares.

Campos e Mioto (2010) discutem a construção dos diferentes lugares dados à família no âmbito dos sistemas de proteção social. Para isso, utilizam três caminhos analíticos: (1) a

família do provedor masculino; (2) o "familismo"; e (3) a família nos sistemas de proteção social de orientação social-democrática.

Na perspectiva clássica, predominante na maior parte dos Estados de Bem-Estar Social, instituiu-se o benefício do seguro social público com fundamento na família do trabalhador, ou seja, concedido diretamente a ele enquanto provedor do grupo familiar. Este sistema de proteção social baseia-se, portanto, na solidariedade familiar, supondo a existência de elevadas transferências materiais e imateriais internamente na família. Aos filhos e à esposa, é garantido acesso subordinado aos direitos sociais, enquanto mantém relação familiar com uma pessoa que possui status de trabalhador. A família é vista como uma unidade econômica com dependentes e chefes de família responsáveis por redistribuir os recursos. Há, portanto, uma naturalização das obrigações familiares, ao lado de uma tendência ao não reconhecimento, por parte do Estado e da sociedade, dos limites econômicos e sociais que atravessam a família na realização dessa contribuição.

No Familismo, por sua vez, a política pública exige que as unidades familiares assumam a responsabilidade principal pelo bem-estar social. Assim, o Estado não provê suficiente ajuda à família, deixando-a responsável por garantir o bem-estar de seus membros. Como no modelo anterior, o benefício é indiretamente concedido à família, a partir de concessões feitas ao trabalhador. Tal modelo desenvolve-se de maneira diferente em cada país, mas surge predominantemente na Europa Continental, em países como Itália, França e Alemanha.

Sobre a família na via social democrática do Estado de Bem-Estar Social, as autoras afirmam que este modelo difere-se dos sistemas anteriores porque nele está presente o objetivo do Estado de procurar socializar antecipadamente os custos enfrentados pela família, sem esperar que a sua capacidade se esgote. Assim, investe-se em benefícios concedidos

diretamente ao indivíduo, e não à família, e no provimento de serviços para o cuidado de crianças, idosos e deficientes, de caráter universal para toda a população.

Observa-se que a oferta destes serviços sociais de apoio aos encargos familiares favorece uma política de liberação do trabalho feminino para o mercado, o que demonstra que o modelo está pautado na paridade de direitos e de oportunidades no âmbito da relação de casal. Este aspecto reflete as origens históricas deste sistema de proteção social, que surge na década de 60, sob influência do movimento feminista, especialmente nos países escandinavos. No Brasil, tem-se uma orientação eminentemente “familista”, característica esta que se fortaleceu desde a década de 90. Há, portanto, uma expectativa de que a família exerça papel decisivo em relação ao acesso aos direitos sociais, substituindo o papel do próprio Estado. Entretanto, na prática, o que se observa é que as famílias das camadas populares e dos segmentos médios têm demonstrado impossibilidade de atender a essa expectativa, pois estão vulneráveis ao contexto social.

As estratégias encontradas pelas famílias pobres para garantir condições dignas de existência incluem o aumento do tempo de trabalho dos adultos, a incorporação das crianças e adolescentes ao trabalho e sua retirada da escola, a prática de atividades ilegais para produzir renda, a redução no consumo de alimento e produtos, a venda do patrimônio familiar, dentre outras. Sobre isso, Campos e Mioto (2010) afirmam que:

A família se encontra muito mais na posição de um sujeito ameaçado do que de uma instituição provedora esperada. E considerando a sua diversidade, tanto em termos de classes sociais como de diferenças entre os membros que a compõem e de suas relações, o que temos é uma instância sobrecarregada, fragilizada e que se enfraquece ainda mais quando lhe atribuímos tarefas maiores que a sua capacidade de realizá-las (p.183).

O "familismo" no âmbito da política social baseia-se no pressuposto de que existem duas vias de satisfação das necessidades dos cidadãos: o mercado, via trabalho, ou a família. Assim, somente quando estes falham, o Estado intervém, e de forma temporária. Esta concepção gera uma divisão entre famílias “capazes” e “incapazes” (Campos & Mioto, 2010):

Como capazes, são definidas aquelas que, via mercado, trabalho e organização interna – as famosas "estratégias de sobrevivência" – conseguem desempenhar com ‘êxito’ as funções que lhes são atribuídas pela sociedade. Como incapazes, são consideradas aquelas que, não conseguindo atender às expectativas sociais relacionadas ao desempenho das funções atribuídas, requerem a interferência externa, em princípio do Estado, para a proteção de seus membros. Ou seja, são merecedoras da ajuda pública as famílias que falharam na responsabilidade do cuidado e proteção de seus membros (p.184).

Além de deslocar para as famílias a responsabilidade pelo bem-estar social, o Estado privatiza práticas de assistência social, repassando a responsabilidade para o chamado Terceiro Setor.

Campos e Mioto (2010) defendem que é necessário incorporar nos sistemas de proteção social a concepção de que ninguém é totalmente auto-suficiente. Assim, o bem-estar depende tanto da segurança em relação ao futuro e aos eventos críticos da vida, quanto da possibilidade de contar com uma rede de sustentação para garantir a reprodução cotidiana, social e biológica.

A partir de toda a reflexão teórica realizada, define-se que o objetivo do presente trabalho de pesquisa é discutir sobre as perspectivas de profissionais dos serviços de acolhimento institucional acerca do direito à convivência familiar e comunitária. Dentre os objetivos específicos, tem-se: (a) analisar o trabalho social realizado junto às famílias; (b)

compreender a relação estabelecida entre serviço de acolhimento, famílias e comunidade; (c) descrever a rotina de funcionamento dos serviços; e (d) refletir sobre os limites e possibilidades de promoção do direito à convivência familiar e comunitária no âmbito dos serviços de acolhimento.