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Parte I – Fundamentação Teórica

I.2. Famílias e Políticas Sociais

I.2.1. Origem da família

Na obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, publicada pela primeira vez em 1884, Friedrich Engels discute a história da família, partindo da formação dos primeiros grupos de hominídeos, ainda na Pré-História, e chegando à Modernidade. O autor baseia-se na ordem de desenvolvimento pré-histórico de Morgan – Estado Selvagem, Barbárie e Civilização –, e, para cada período, busca discutir as características da organização familiar correspondente.

No Estado Selvagem, os hominídeos são nômades e sobrevivem através da apropriação direta dos produtos da natureza, ou seja, da caça de animais e da coleta de alimentos, utilizando utensílios que facilitam estas atividades. Na fase da Barbárie, por sua vez, o homem torna-se sedentário em razão do desenvolvimento da agricultura e da domesticação de animais, e já é possível a produção de artifícios mais complexos. Por fim, na Civilização, que se inicia com a fundição do ferro e a invenção da escrita alfabética, o homem amplia e complexifica a elaboração dos produtos naturais, além de desenvolver a indústria e a arte.

Engels discute a existência de três formas principais de matrimônio, que correspondem aproximadamente a cada estágio fundamental da evolução humana: ao Estado Selvagem,

corresponde o matrimônio por grupos; à Barbárie, o matrimônio sindiásmico; e à Civilização corresponde a monogamia.

O matrimônio por grupos pode ser observado nos dois tipos iniciais de formação familiar, que são a família consanguínea e a família punaluana. Na família consanguínea, os grupos conjugais organizam-se por gerações, ou seja, todos os avôs e avós são maridos e mulheres entre si, bem como todos os filhos e filhas, netos e netas, e assim por diante. Neste sistema inicial, a variabilidade genética fica bastante restrita, pois a reprodução se dá dentro dos limites do grupo. A família punaluana, por sua vez, caracteriza-se pela progressiva proibição das relações sexuais entre membros da mesma família. Primeiro, exclui-se a relação entre pais e filhos, depois entre irmãos, e entre primos – ou seja, é o surgimento do tabu do incesto. Essa mudança limita a reprodução consanguínea, o que provavelmente resultou em um progresso evolutivo mais rápido para a espécie. Além disso, há uma maior interação entre grupos tribais, bem como maior cisão de velhas comunidades domésticas e surgimento de novas.

É importante notar que, no matrimônio por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe pela evidência do parto. Isto significa que a descendência só pode ser estabelecida pelo lado materno, o que tem implicações importantes sobre as relações de herança: a criança pertence à mãe e herda da mãe, o que Bachofen denomina Direito Materno. Por outro lado, a herança do pai é transmitida a seus irmãos e sobrinhos.

No próximo estágio, a família sindiásmica caracteriza-se pelo início das uniões por pares, que são impulsionadas pela crescente proibição de relações sexuais entre consanguíneos e, por fim, até de pessoas vinculadas por aliança, tornando impossível a prática de qualquer matrimônio por grupos. Engels discute que a mulher é responsável pela passagem ao matrimônio sindiásmico, pois, com o desenvolvimento econômico e a decadência da

economia comunal, passa a ser vítima de opressão pelo homem, ansiando pelo direito à castidade. A poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser direito dos homens, mas exige-se maior fidelidade das mulheres. O vínculo conjugal, porém, é bastante frágil, podendo ser dissolvido com facilidade, e os filhos continuam pertencendo exclusivamente à mãe. A família sindiásmica é considerada um estágio evolutivo necessário para o desenvolvimento da família monogâmica.

Nas comunidades pré-históricas matriarcais, a mulher tem status privilegiado por estar associada a elementos místicos, à divindade, e à reprodução (Herranz & Muñoz, 2005). Porém, neste período, já existe a divisão sexual do trabalho, que aparece como primeira forma de divisão do trabalho na sociedade. Isto significa que, ao longo do tempo, com o desenvolvimento econômico, o homem torna-se o proprietário dos rebanhos, dos instrumentos de trabalho e dos escravos, enquanto a mulher detém os utensílios domésticos e responsabiliza-se pelo cuidado da prole. Além disso, com o matrimônio sindiásmico, surge também a certeza da paternidade, até então desconhecida. Esses dois elementos combinados – o surgimento da propriedade privada dos meios de produção e a certeza da paternidade – resultam em maior importância da posição do homem, e o direito materno é substituído pelo direito hereditário paterno: os filhos pertencem agora à família paterna, herdando do pai. Engels considera que o desmoronamento do direito materno foi “a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo” (p. 60). Do casamento sindiásmico nasce, então, a monogamia, servindo aos interesses dos homens, que agora ocupam maior posição de poder na sociedade – é a origem do patriarcado.

É importante notar que o matriarcado não representa um sistema social dominado pela mulher e, portanto, desigual. Na verdade, ele identifica-se com as hipotéticas sociedades igualitárias, de economia comunal, que existiam antes do surgimento da propriedade privada,

quando todos os indivíduos tinham o mesmo acesso aos recursos. O patriarcado, sim, propõe uma ordem social desigual, pautada na supremacia masculina (Herranz & Muñoz, 2005).

A monogamia diferencia-se do casamento sindiásmico por uma maior solidez nos laços conjugais, que não podem ser desfeitos com facilidade. Agora, é permitido somente aos homens romper com o matrimônio, e a ele é permitida também a infidelidade, praticada frequentemente na relação dos senhores com as escravas ou com prostitutas. Da mulher, exige-se a castidade e uma fidelidade conjugal rigorosa. Engels reflete que, desde sua origem, a monogamia tem um caráter bastante específico: “é a monogamia somente para a mulher” (p. 65). As primeiras formas de monogamia surgiram na Antiguidade Clássica, nas sociedades grega e romana, de economia escravocrata. Depois, esse modelo de família persistiu durante a Idade Média, no feudalismo, e nas sociedades capitalistas, sendo marcado por peculiaridades e particularidades em cada momento histórico.

A monogamia nada tem a ver com o amor romântico individual, já que os casamentos eram arranjados pelas famílias e baseados em interesses econômicos. Portanto, o único objetivo da monogamia era a preponderância do homem na família e a procriação de filhos legítimos que herdassem sua propriedade. O casamento era para o homem um fardo, uma obrigação. Engels discute que a monogamia nasce, então, como “uma forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos” (p.67). Segundo ele, “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes é a opressão do sexo feminino pelo masculino” (p.68). A monogamia é considerada um progresso histórico, mas inicia o período no qual “cada progresso é, simultaneamente, um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros” (p.68).

Ariès, na obra História Social da Infância e da Família, baseia-se em documentos históricos e na iconografia para compreender o surgimento e o desenvolvimento do sentimento de infância e de família no fim da Idade Média. Para o autor, o sentimento de infância inexistia durante a Idade Média, em função da alta mortalidade de crianças e da compreensão de que a infância era uma fase da vida sem importância. Da mesma forma, também não havia lugar para a família, para a privacidade ou para a intimidade, sendo a vida pública e social proeminente para os indivíduos.

De acordo com o autor, o surgimento do sentimento de infância, entre os séculos XV e XVII, está relacionado às novas preocupações com a higiene, que levam à redução da mortalidade infantil, à visão religiosa da criança enquanto um “anjo”, um ser místico, e à crescente preocupação com a educação. No mesmo sentido, a família começa a existir como sentimento ou como valor, quando é reforçada a intimidade da vida privada em detrimento das relações de vizinhança, de amizades, ou de tradições. Sendo assim, o sentimento de infância modifica a dinâmica familiar e reorganiza a família em torno dos cuidados com a criança.

A Modernidade é marcada, por um lado, pelo avanço da ciência, da filosofia e da política, e por outro, pelo desenvolvimento da sensibilidade e do afeto, que pode ser verificado nas artes e nas relações familiares. É característica também da Modernidade o avanço do individualismo burguês, que representa uma mudança na relação do homem com sua comunidade. A vida individual não mais mantém relação de dependência com a vida coletiva, sendo as necessidades individuais consideradas mais autênticas que as necessidades da coletividade.

O desenvolvimento da sensibilidade e do individualismo tem como consequência o surgimento do amor sexuado individual, que é parte fundamental da família burguesa. Porém, reside aqui uma contradição: o amor sexuado individual, que passa a ser essencial para a

existência humana, tem suas possibilidades de realização limitadas no âmbito da família monogâmica burguesa, que é pautada em interesses econômicos e na supremacia masculina (Lessa, 2012).

A Revolução Industrial é responsável pelas maiores transformações vividas na Modernidade. As grandes navegações e a conquista de novos territórios resultam na abertura de um mercado mundial, com grande disponibilidade de matérias-primas e mercado consumidor. A burguesia alcança grandes lucros através do comércio e do saque, e tem início a Acumulação Primitiva do capital. Há o incremento da tecnologia, que resulta num aumento expressivo da quantidade e da qualidade das mercadorias. A agricultura abre espaço para a produção de matérias-primas, o que leva os camponeses a migrarem para as cidades, formando uma reserva de força de trabalho numerosa e barata. O ingresso da mulher no mercado de trabalho se faz necessário para garantir o sustento familiar. A dificuldade em impor a fidelidade feminina em uma sociedade urbana e industrial leva a uma maior rigidez moral e à intensificação dos mecanismos de controle social. Ganha força o processo de urbanização e, ao mesmo tempo, cresce a pobreza, a miséria, a desigualdade social. Todo esse contexto tem fortes impactos sobre a dinâmica familiar e as relações entre os membros.

Chegando à Contemporaneidade, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) é um marco importante de crise do casamento monogâmico burguês. A alta mortalidade masculina leva grande número de mulheres a assumir o papel de chefe de família. No mesmo sentido, o movimento sufragista questiona as contradições das relações sociais entre homens e mulheres. Surge, nessa época, uma nova geração de mulheres intelectuais, escritoras, poetisas.

Principalmente após a década de 1960, há uma quebra na forma clássica de família burguesa. Há maior crítica aos costumes e aos padrões morais, maior libertação da libido feminina, e ideias relacionadas ao “amor livre”. Registra-se, então, a tentativa de criar uma

nova forma de organização da vida doméstica, pois, no interior da família monogâmica é impossível a realização plena dos indivíduos (Lessa, 2012).

A partir dessas considerações, compreende-se que a família é aqui analisada como uma instituição universal, existindo em todas as sociedades, e historicamente construída, pois sofre modificações e transformações ao longo dos tempos. É, portanto, atravessada por determinantes sociais, culturais e econômicos diversos, assumindo relação de disputa entre os gêneros e entre as gerações.