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A fenomenologia transcendental e o retorno à subjetividade

Como já se observou, a fenomenologia surgiu dentro de uma indagação concreta a respeito da lógica pura e no enquadramento de questões referentes à teoria do conhecimento, tão marcante para a filosofia do fim do século XIX.

O ponto de partida foi a discussão com o psicologismo, isto é, aquela posição segundo a qual a lógica deve fundar-se sobre a psicologia. O ponto de chegada, porém, foi a descoberta de um método de investigação e a constituição de um modo de filosofar que em si abria um horizonte de questões anterior à lógica e à psicologia, bem como a todas as demais ciências.

Decisivas para tal desenvolvimento foram as Investigações Lógicas de Husserl que, dada sua abrangência, tiveram formas diferentes de recepção, por parte dos diversos pensadores da época.

Dentre estes, o primeiro a reconhecer o significado central das Investigações

Lógicas foi Dilthey, que “caracterizou essas investigações como o primeiro grande

progresso na filosofia (den ersten grossen wissenschaftlichen Fortschritt in der

Philosophie), desde a Crítica da razão pura de Kant” 40. Contando já setenta anos de vida, quando descobriu as Investigações Lógicas, “Dilthey começou logo no círculo de seus alunos mais próximos exercitações seminariais ao longo do semestre sobre este livro” 41.

Dilthey e Husserl provinham de lados opostos do saber. O primeiro era historiador e foi conduzido a questões sempre mais fundamentais concernentes às

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Heidegger, 1925, p. 30. 41

ciências do espírito, e, a partir destas, a interrogações filosóficas primordiais, tais como as referentes à vida e à história. Já Husserl era originariamente matemático e foi conduzido cada vez mais às questões fundamentais em torno de uma lógica pura enquanto mathesis universalis, e, a partir destas, a interrogações filosóficas primordiais, tais como as que se referem ao pensamento e à linguagem.

É interessante observar que ambos tiveram que dar passos decisivos na direção das coisas mesmas e, não obstante toda a pressão da filosofia da época, dominada pelo fascínio da ciência ou pelo jugo da tradição, eles acabaram se encontrando. Nesse sentido, observa Heidegger:

Um íntimo parentesco de tendência fundamental (eine innere

Verwandtschaft der Grundtendenz) facilitou-lhe a intelecção do

significado desta obra. Em uma carta a Husserl, Dilthey compara o trabalho de ambos com a perfuração de uma montanha a partir de lados opostos, através de cuja perfuração em uma topada eles se encontraram (bei welchem Anbohren und Durchstoss sie sich

getroffen)42.

Aos olhos de Dilthey, toda a análise fenomenológica das vivências, sobretudo daquelas pertencentes ao conhecimento enquanto tal, tendia à realização de uma ciência primordial e preliminar a todas as demais ciências, uma Vorwissenschaft, cujo campo de investigação era nada mais nada menos do que o terreno originário do qual se desenvolve toda a ciência, o chão daquela realidade mais imediata no qual toda a ciência e toda a racionalidade afundam suas raízes. Em outras palavras,

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uma ciência fundamental da vida mesma (eine Fundamentalwissenschaft vom Leben

selbst).

Contudo, nos anos sucessivos à publicação das Investigações Lógicas, Husserl levou adiante o trabalho de delimitar o campo temático da fenomenologia. Partindo do conceito de intencionalidade, procedeu a uma análise dos comportamentos, não somente teóricos, como também práticos e estéticos. Também a idéia da fenomenologia, enquanto ciência e método, foi sendo mais elaborada. Num curso de cinco preleções, proferido em 1907, afirma:

Fenomenologia: esta designa uma ciência, um conjunto de disciplinas científicas; mas designa ao mesmo tempo e antes de tudo um método e uma atitude de pensamento: a atitude de pensamento especificamente filosófica e o método especificamente filosófico43.

Tal concepção aparece amadurecida no escrito intitulado Filosofia como

ciência rigorosa (Philosophie als strenge Wissenschaft), publicado na revista Logos

de 1910/11.

Este ensaio tem um caráter programático; ele não é um programa de trabalho, mas nasceu a partir do trabalho e sobre o pano de fundo de um trabalho de dez anos (auf dem Hintergrund der Arbeit von zehn

Jahren). Esta obra suscitou, quase sem exceção, o horror entre os

filósofos (unter den Philosophen fast durchgängig Entsetzen

hervorgerufen)44. 43 Husserl, 1950, p. 23. 44 Heidegger, 1925, p. 127.

De fato, nessa obra Husserl ataca frontalmente duas tendências da filosofia, enquanto subordinada às ciências positivas, a saber: o naturalismo, que reduz o saber da totalidade à natureza tal como é entendida pelas ciências naturais, e o historicismo, que reduz tudo à história, tal como é entendida pelas ciências do espírito.

Para Husserl, a fenomenologia surgia como a única possibilidade para a filosofia futura firmar-se como ciência toda própria, autônoma e primordial para as outras ciências, dado seu caráter de rigor, e não apenas de exatidão.

Essa idéia é retomada em 1913, quando da publicação de Idéias para uma

fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica (Idee zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie). A fenomenologia aí

reivindica para si o título de próte philosophía.

Para a filosofia, é necessária uma mudança de impostação (Einstellungsänderung) radical, isto é, aquela que se dirige aos fenômenos na atitude de quem pergunta pelo ser, isto é, pela essência daquilo que se apresenta. Por isso, a fenomenologia indica essa impostação metódica, não no sentido de uma impostação teoricamente construtiva, mas no sentido de um pôr-se a caminho daquilo que se mostra como essencial em tudo aquilo que se mostra.

Tal caminho é o caminho de uma reductio, de uma recondução de si mesmo e do que se mostra, da intentio e do intentum, à sua dadidade (Gegebenheit) orginária. Esta caracteriza o método da redução fenomenológica (phänomenologische

Reduktion).

Mas porque em tal método filosófico de questionamento aquilo que se tem em mente é uma intuição (Anschauung) na qual aquilo que se mostra deixa vir à luz o

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seu ser, isto é, o seu eidos, tal redução fenomenológica se concretiza propriamente enquanto redução eidética (eidetische Reduktion). Com a aplicação da redução eidética, o campo da fenomenologia é traçado no sentido de só admitir formas essenciais. A fenomenologia se torna, assim, uma ciência de essências (Wesenswissenschaft), ou seja, uma ciência eidética (eidetische Wissenschaft).

Mas o método de Husserl ainda prossegue. Cumpre também renunciar a qualquer tese que ponha alguma coisa como transcendente, isto é, como independente da consciência que reflete. Aí acontece a epoché, a saber, o método de colocar entre parênteses (Methode der Einklammerung).

O mundo, compreendido por Husserl enquanto totalidade de objetos intencionais, é sempre uma tese, isto é, a posição de uma consciência. Mas, para se chegar a captar essa consciência na sua pureza transcendental como o fenômeno originário, é necessário dar procedimento à epoché: que tudo aquilo que é colocado ingenuamente como transcendente, real, objetivo, desapareça do campo de visão, e que toda objetualidade (Gegenständlichkeit) seja “colocada entre parênteses”. Isso quer dizer que se renuncia à posição (Thesis) de todas essas coisas como coisas subsistentes em si mesmas, em vez de constituídas por e para uma consciência.

Não se trata, portanto, de negar a realidade e nem mesmo de negar a existência de coisas reais. O que é negado é a sua independência em relação à consciência. Husserl mesmo esclarece:

Se eu faço assim – é minha plena liberdade faze-lo – , então eu não nego este mundo, como se eu fosse um sofista; eu não duvido de sua existência, como se eu fosse um cético; mas eu exercito a

epoché fenomenológica, que me fecha completamente todo juízo

sobre existência espácio-temporal45.

Mas pergunta-se o que é que sobra, quando se coloca tudo entre parênteses? Resposta: a consciência (das Bewusstsein).

Segundo Husserl, a consciência é o “resíduo fenomenológico (das

phänomenologische Residuum) que resta, caso tudo o que é objetual for colocado

entre parênteses e apagado do nosso campo visual” 46. Trata-se, porém, da consciência pura (das reine Bewusstsein), isto é, não da consciência empírica enquanto acessível através de uma objetivação e como alguma coisa de objetual, mas sim da consciência enquanto estrutura transcendental, enquanto horizonte que possibilita todo e qualquer campo visual. Numa palavra, consciência transcendental (das transzendentale Bewusstsein).

A fenomenologia pura é a ciência fundamental da filosofia, por ela cunhada. Pura, isto quer dizer: fenomenologia transcendental. Como transcendental, porém, é colocada a subjetividade (Subjektivität) do sujeito que conhece, age e põe valores. Ambos os títulos, subjetividade e transcendental, indicam que a fenomenologia gira, de modo consciente e decidido, na tradição da filosofia moderna, entretanto, de tal forma que a subjetividade transcendental consegue, através da fenomenologia, uma determinabilidade mais originária e universal47. 45 Husserl, 1993b, p. 56. 46 Husserl, 1993b, p. 57-60. 47 Heidegger, 1963, p. 84.

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À consciência transcendental, por sua vez, corresponde o ego transcendental (das transzendentale Ego): o eu mais íntimo no eu (das innerste Ich im Ich). Como já dizia Natorp, o eu não pode nunca ser um problema, pois é o eu que possibilita todo e qualquer problema, sendo o fundamento de toda e qualquer objetualidade, aquela fonte a partir da qual se constitui o mundo enquanto totalidade objetual 48.

Assim, a partir da consciência transcendental, enquanto subjetividade pura, a fenomenologia recebe um cunho decididamente idealista, no sentido da filosofia moderna, determinada por Descartes e Kant e fundada sobre a primazia da consciência, da subjetividade.

É justamente esse problema do ego transcendental a atuar como pedra de escândalo para os próprios fenomenólogos que, em nome da própria máxima da fenomenologia – às coisas mesmas (zu den Sachen selbst) – se sentiram impossibilitados de seguirem o desenvolvimento sucessivo que Husserl deu à fenomenologia, inclusive seu jovem discípulo, desejado por Husserl como seu continuador, Martin Heidegger.

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