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Mais do que qualquer outra tendência ou pensador de sua época, Edmund Husserl (1859-1938) contribuiu de maneira decisiva para as investigações de Heidegger. Nesse sentido, foi precisamente junto às Investigações Lógicas de Husserl que, desde 1911, Heidegger foi buscar respostas à questão ontológica inicial colocada por Aristóteles e recebida através da obra de Brentano.

Husserl nasceu em Prossnitz, na Morávia. Como universitário, freqüentou cursos de astronomia em Leipzig, especializando-se depois em matemática na Universidade de Berlim com Weierstrass. Doutorou-se em 1883, com uma tese intitulada Contribuição à teoria do cálculo das variações. A matemática de então era guiada primordialmente pela exigência de rigor na demonstração e na fundamentação de suas operações teóricas. Na verdade, tal rigor deveria ser considerado o índice de cientificidade de uma ciência.

A filosofia da época, desencantada com a especulação idealista, destronada pelas ciências empíricas, vaga na compreensão da sua própria cientificidade e da sua relação com as demais ciências, não podia aparecer aos olhos do matemático uma ciência digna deste nome. Nesse sentido, o interesse de Husserl pela filosofia, enquanto estudante de matemática, foi escasso.

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O que ele ouvia de filosofia não ultrapassava aquilo que cada estudante aprendia nas lições. Só depois de seu doutorado ele freqüentou as lições de um homem, de quem, naquele tempo, muito se falava, e a impressão pessoal diante da paixão do perguntar e do refletir (die Leidenschaft des Fragens und Betrachtens) – esta fora a impressão que Brentano fizera a Husserl – o segurou, e ele permaneceu junto dele dois anos, de 1884 a 1886. Brentano decidiu então a direção científica (die wissenschaftliche Richtung) que o trabalho de Husserl tomou. A sua oscilação entre matemática e filosofia foi resolvida. Através da impressão que Brentano, como professor e investigador, deixara sobre ele, abriu-se-lhe, dentro da filosofia improdutiva de seu tempo (der unproduktiven zeitgenössischen Philosophie), a possibilidade de uma filosofia

científica (einer wissenschaftlichen Philosophie) 28.

E Husserl começou na filosofia, partindo daquilo que lhe era mais acessível, a saber, da matemática. Na verdade, a própria busca de esclarecer os fundamentos da matemática o conduziria a uma reflexão filosófica mais abrangente e mais originária. Por isso ressalta Heidegger:

A propósito isto foi característico: o trabalho filosófico de Husserl começou então não com qualquer problema imaginado ou trazido de fora, mas, de acordo com o seu caminho de desenvolvimento científico, ele começou a filosofar sobre o chão que tinha (begann er

auf dem Boden zu philosophieren), isto é, a sua meditação filosófica

(philosophische Besinnung), no sentido da metódica de Brentano, se dirigiu à matemática29. 28 Heidegger, 1925, p. 28-29. 29 Heidegger, 1925, p. 29.

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Assim, sua obra publicada em 1891 e que trazia como título Filosofia da

aritmética (Philosophie der Arithmetik), desenvolvia uma investigação sobre os

conceitos fundamentais da matemática e sobre o método do pensamento matemático, buscando uma aproximação às coisas mesmas dessa ciência, seja através de uma perspectiva lógica, seja através de uma perspectiva psicológica, na linha da psicologia descritiva de Brentano, a quem ele dedicou sua publicação.

Mas Brentano não é o único parceiro de diálogo com quem Husserl avança nas questões propriamente filosóficas, antes de tudo relacionadas à idéia de uma lógica pura. De grande importância foi também seu confronto com Bolzano e Frege.

Bernhard Bolzano (1781 – 1848), professor na Universidade de Praga, teve o mérito de dar à lógica o tratamento rigoroso análogo ao rigor matemático.

Em cada linha de sua obra digna de admiração, Bolzano se demonstra como o agudo matemático que na lógica faz reinar o mesmo espírito de rigor científico que ele mesmo, como o primeiro, introduziu na abordagem teórica dos conceitos fundamentais e das proposições fundamentais da análise matemática, que ele, através disto, colocou sobre novas bases30.

Husserl recorda, contudo, que Bolzano era contemporâneo de Hegel e que constituía uma possibilidade de filosofia científica, diversa daquela do idealismo alemão.

Em Bolzano, contemporâneo de Hegel, não encontramos nenhum vestígio da profunda ambigüidade da filosofia do sistema, que tinha em mira ser mais uma sabedoria universal (Weltweisheit) e uma

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visão de mundo (Weltanschauung) cheia de pensamentos do que um saber universal de caráter teórico e analítico, e que tanto reprimiu, com uma funesta confusão destas intenções fundamentais diversas, o progresso da filosofia científica31.

Ao importante contributo de Bolzano deve-se acrescentar a contribuição crítica de Gottlob Frege (1848 – 1925) em sua recensão à Filosofia da Aritmética de Husserl. Esta o levou a procurar uma outra aproximação na abordagem do número, diversa daquela oferecida pela psicologia, mesmo se se tratasse de uma psicologia descritiva.

De fato, Frege afirma que uma descrição dos processos mentais que precedem a enunciação de um juízo numérico não pode nunca, mesmo se exata, substituir uma verdadeira determinação do conceito de número. Nunca seria possível invocá-la para a demonstração de algum teorema, nem se apreenderia dessa descrição propriedade alguma dos números.

Assim, a leitura de Bolzano e a recepção das críticas de Frege, sobretudo a crítica referente ao perigo do psicologismo, fará com que Husserl dê uma reviravolta no seu pensamento.

Além desses pensadores de seu tempo, Husserl estudou com muito interesse os filósofos modernos, como Descartes, Kant, Leibniz e Herbart, onde a lógica ganha o caráter de objetividade. A concepção segundo a qual o conceito é algo objetivo, subsistente em si mesmo, isto é, independente em relação à disposição ou à atuação psicológica de quem o pensa, ajudará Husserl a entrever a possibilidade de uma superação do psicologismo.

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Pois é justamente no confronto com o psicologismo que Husserl concebe a fenomenologia. Sua investigação, pressionada pelas coisas mesmas, iria conduzi-lo a entrar em um âmbito de questões ainda mais originário.

Isso significava uma apreensão mais radical (radikalere Fassung) daquilo que fora dado com a psicologia descritiva de Brentano e, ao mesmo tempo, uma fundamental crítica (grundsätzliche Kritik) contra a confusão contemporânea da postura interrogativa da psicologia genética com a lógica. Os primeiros resultados deste trabalho formam o conteúdo da obra que foi publicada em dois volumes nos anos 1900 e 1901, com o título Investigações Lógicas (Logische

Untersuchungen). Com esta obra veio à primeira irrupção (zum ersten Durchbruch) a investigação fenomenológica. Este se tornou o

livro fundamental da fenomenologia (das Grundbuch der

Phänomenologie)32.

O primeiro volume das Investigações Lógicas se intitula Prolegômenos para a

lógica pura (Prolegomena zur reinen Logik). O tema central dessas reflexões é a

idéia de uma lógica pura a ser conquistada positivamente, mas cuja via de acesso deve ser aberta antes de tudo a partir de uma crítica do psicologismo.

Conforme Husserl, para o psicologismo, “os fundamentos teóricos essenciais da lógica residem na psicologia, a cuja região pertencem, segundo seu conteúdo teórico, as proposições que dão à lógica o seu cunho característico” 33. Representantes do psicologismo são, por exemplo, John Stuart Mill, Wundt, Erdmann e Theodor Lipps.

Husserl não condivide a posição dos psicologistas, mas também não assume

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Heidegger, 1925, p. 29-30. 33

a orientação dos antipsicologistas de então que, segundo ele, não foram felizes na definição e na construção da lógica, precisamente da lógica pura.

Quer me parecer que a parte mais importante da verdade esteja do lado anti-psicologista, só que os pensamentos decisivos não foram trabalhados de modo pertinente e foram turvados por causa dos múltiplos elementos inconcludentes 34.

Buscando uma confrontação com o psicologismo, Husserl toma em consideração principalmente as suas conseqüências para a lógica, tendo como ponto de partida a idéia de que a psicologia é uma ciência de dados de fato (eine

Tatsachenwissenschaft) e, com isso, uma ciência que parte da experiência. Logo, o

psicologismo é necessariamente uma forma de relativismo.

Toda doutrina que apreende segundo o modo dos empiristas, como leis empírico-psicológicas, as leis lógicas puras ou que as reconduz, segundo o modo dos aprioristas, a certas formas originárias ou modos funcionais do intelecto, à consciência em geral enquanto razão genérica [...] é, eo ipso, relativista35.

É no contexto da objeção ao relativismo do psicologismo que Husserl recorre a dois importantes conceitos, a saber, o de intenção e de cumprimento.

O núcleo essencial desta objeção consiste em que o relativismo está também em evidente contraste com a evidência do existir imediatamente intuível, isto é, com a evidência da percepção interior (innere Wahrnehmung). A evidência dos juízos que repousam sobre

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Husserl, 1993a, vol. I, p. 59. 35

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a intuição (Anschauung) com direito é contestada, na medida em que ultrapassam intencionalmente o conteúdo do dado factual da consciência. Mas estes são efetivamente evidentes, ali onde sua intenção (Intention) vai ao conteúdo do dado factual da consciência mesmo e encontra nele, como ele é, o seu cumprimento (Erfüllung)

36 .

Em outras palavras, Husserl diz que a evidência dos juízos se dá quando a intenção dos mesmos dirige-se diretamente àquilo que se dá imediatamente e efetivamente à consciência, àquilo que a consciência percebe segundo a sua função intrínseca. Ou ainda, quando tal intencionalidade do ato de julgar encontra a sua realização no ato mesmo de apreender aquilo que se dá, isto é, aquilo que se manifesta, que vem à luz de modo claro e imediato, ou seja, o fenômeno em um sentido ainda primário.

A propósito, é aqui que Husserl introduz uma observação importante: “A ilusão desaparece assim que, em vez de se argumentar genericamente, se dirige às coisas mesmas (an die Sachen selbst)” 37.

Surge, assim, aquela expressão que se torna a máxima da própria investigação fenomenológica: às coisas mesmas (zu den Sachen selbst). Tal máxima solicita, de quem investiga, o abandono de construções teóricas cujas bases são pressupostos injustificáveis, cujas teses de fundo são julgamentos não- verificados e não-confrontados com a verdade das coisas mesmas tal como se dão de modo originário a uma apreensão correspondentemente originária.

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Husserl, 1993a, vol. I, p. 121-122. 37

Nesse sentido, a investigação filosófica, enquanto fenomenologia, deve sondar as pressuposições sobre as quais toda posição se põe. E essa sondagem não visa simplesmente a destruição dos fundamentos de uma teoria, mas sim a verificação da solidez de tais fundamentos sobre os quais as ciências positivas se constroem.

Tal investigação é, portanto, enquanto sondagem dos fundamentos, a busca positiva das coisas mesmas, isto é, do âmbito fundamental onde o pensamento possa fazer a experiência da autodoação das coisas no modo da aparição originária das mesmas.

O segundo volume das Investigações Lógicas, que contém um número de seis Investigações e apareceu no ano de 1901, com o título Elementos de um

esclarecimento fenomenológico do conhecimento (Elemente einer

phänomenologischen Aufklärung der Erkenntnis), trazia como primeira parte as Investigações para uma fenomenologia e teoria do conhecimento (Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis).

Cumpre, porém, observar que o que se chama teoria do conhecimento, no caso das Investigações Lógicas, não tem absolutamente nada a ver com o ato de explicar, seja no sentido das ciências empírico-indutivas, seja naquele das ciências formais-dedutivas.

Ela não quer explicar (Erklären), em sentido psicológico ou psicofísico, o conhecimento, isto é, o evento factual situado na natureza objetiva; mas sim esclarecer (Aufklären) a idéia do

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conhecimento segundo os seus elementos constitutivos, respectivamente, segundo as suas leis38.

Esclarecer significa compreender o sentido ideal dos nexos específicos nos quais se articula a objetividade do conhecimento. Significa ainda fazer claro e distinto (klar und deutlich) aquilo de que se trata na compreensão no sentido de deixar aparecer aquilo que constitui o tema da interrogação filosófica. Fenômeno diz, tanto aquilo que vem à luz, como a própria clareza e nitidez, o evento do aparecer e manifestar-se daquilo que se apresenta ao olhar de quem investiga e interroga.

Nesse sentido, a fenomenologia, desde o aparecimento das Investigações

Lógicas, surge como método, isto é, um caminho de investigação no qual e através

do qual a interrogação filosófica visa a deixar aparecer em toda clareza as coisas mesmas, isto é, aquilo de que se trata em toda e qualquer discussão filosófica.

No ano de 1913, Husserl publica uma nova edição das Investigações Lógicas, revisada e melhorada, do primeiro volume e da primeira parte do segundo volume, contendo todas as Investigações, com exceção da Sexta Investigação, republicada somente no ano de 1921. Considerada a mais importante, com relação à fenomenologia, a Sexta Investigação trata dos conceitos de significação (Signifikation) e de intuição (Intuition), além de aprofundar, entre outros assuntos, a análise das diversas espécies de intuição (Anschauung).

Segundo Husserl, é verdade que todo conhecimento começa com os sentidos, mas isso não significa que todo o conhecimento se opere segundo os sentidos. Todo ato ou é uma representação ou se funda numa representação. Os

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atos sensíveis (sinnliche Akten) são representações, enquanto os atos categoriais (kategoriale Akten) são os que se fundam sobre representações.

Em geral, o preenchimento (Erfüllung) intuitivo dos atos categoriais se fundamenta em atos sensíveis. Mas, a mera sensibilidade nunca pode dar preenchimento às intenções categoriais, ou mais exatamente, às intenções que encerram em si formas categoriais. Isso nos leva a uma ampliação absolutamente indispensável dos conceitos originariamente sensíveis de intuição (Anschauung) e de percepção (Wahrnehmung) que nos permitirá falar em intuição categorial (kategoriale Anschauung) e, especialmente, em intuição geral (allgemeine Anschauung)39.

Enquanto esforço de trazer à luz aquilo de que cada vez se trata, em toda a discussão, em torno das coisas mesmas que se doam na sua originariedade antes de toda e qualquer abordagem científico-positiva, a fenomenologia pura constitui uma “região de indagações neutras” (ein Gebiet neutraler Forschungen), anterior a toda ciência, anterior mesmo à lógica e à psicologia.

Assim, no interior da dinâmica das Investigações Lógicas, ela surge ora como método de abordagem de questões fundamentais, ora como ciência fundamental em relação às outras ciências.

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