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A mencionada preleção Problemas fundamentais da fenomenologia pode ser tomada como um exemplo explícito da reviravolta que Heidegger empreendeu no modo como a investigação filosófica era desenvolvida naquela época, bem como do seu confronto com a filosofia na qual ele foi formado, em particular o neokantismo. Ambos os procedimentos, contudo, se fizeram necessários, não somente para evitar cair nos mesmas posições, mas também para evitar possíveis más-compreensões do novo que surgia na sua proposta.

Assim, não sem dificuldade, começa-se apontando o lugar teórico onde podem aninhar-se as maiores armadilhas para a recolocação do problema da origem da vida em si: o problema da dadidade (Gegebenheit). No que diz respeito à dadidade, isto é, ao problema do conteúdo material do conhecimento, há duas alternativas: a dadidade que deriva do desempenho da ciência (neokantismo de Natorp); e a dadidade que existe anterior a este desempenho (filosofia dos valores de Rickert e Lask).

Ambas as alternativas, contudo, comportam riscos.

No caso do neokantismo de Natorp, se corre o risco de ver o material apreendido em exame apenas através das lentes de uma ciência absolutizada, isto é, o objeto apreendido no isolamento e na fixidez de esquemas rígidos de ordem. Já no segundo caso, o risco é de se apresentar um objeto que esteja fora da vida

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concreta, fixo e imóvel na sua absolutidade, e que necessita, por conseguinte, de um método de pesquisa a ele adequado, vale dizer, também este de fora do contínuo fluir da vida.

Diante dessas colocações, procura-se evitar os dois excessos. Não se busca um ponto de encontro, isto é, uma síntese das duas posições, mas a recolocação do problema, a partir da vida em si (Leben an sich). Apenas partindo da vida fáctica, isto é, sem qualquer reflexão gnosiológica anterior sobre o método, se pode sair do impasse de pensar, tanto o método enquanto algo separado da vida, como a vida enquanto algo irredutível à sua mobilidade essencial e constitutiva.

Nesse sentido, surge uma possibilidade de restituir à própria vida sua mobilidade constitutiva.

A vida desencaminhada (irregeleitetes Leben) em cada uma de suas formas de manifestação, também na filosofia e na ciência, pode novamente se tornar renovada apenas através da vida autêntica e a sua radical e fiel realização (durch echtes Leben und seinen

radikalen treuen Vollzug), não através de programas e sistemas

(durch Programme und Systeme)177.

A apreensão da vida em si na sua realidade resulta ser necessária para a compreensão da “origem da vida mesma”. Essa origem, antes de tudo e na maioria das vezes, permanece oculta no constante fluir da vida de uma situação para outra. Isso vale mesmo quando Heidegger afirma que “o âmbito da origem (das

Ursprungsgebiet), o âmbito objetual da fenomenologia não é dado na vida em si” 178,

177

Heidegger, 1919-1920, p. 22-23. 178

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ao mesmo tempo indica a vida histórico-concreta como o lugar fenomenológico por excelência, a partir do qual se move para a compreensão da vida em si e para si.

A compreensão filosófico-fenomenológica (das phänomenologisch-

philosophische Verstehen) é uma compreensão da origem (ein Ursprungsverstehen) que assume o próprio ponto de partida das

formas concretas da vida (von den konkreten Gestalten des Lebens)

179 .

O fato de afirmar-se que, no viver cotidiano, a origem da vida está oculta, não implica uma sua caracterização como algo de mítico ou de místico, mas um axioma a partir do qual “nos tentamos aproximar com uma observação sempre mais rigorosa [...] – e certamente aproximar-se com um método científico-originário (urwissenschaftlichen Methode) e apenas com isso” 180.

Ora, isso é possível somente se o método de pesquisa não apenas assume, como ponto de partida, a vida na sua imediatez, mas também permanece no interior dessa, acompanhando-a na sua precariedade.

Porém, quando refere-se à vida em si, que coisa é propriamente pensada com a expressão “vida em si” (das Leben an sich)?

Ela é isto que está tão próximo de nós que geralmente não nos interessamos explicitamente por ela; algo do qual não temos distância alguma para vê-la no seu >como tal< (in seinem

>überhaupt<); e a distância dela falta porque nós somos ela mesma

(wir es selbst sind), e nós que vemos apenas a partir da vida mesma (nur vom Leben aus selbst), que nós somos (das wir sind),

179

Heidegger, 1919-1920, p. 240. 180

que nos faz ser (das uns ist), nas suas próprias direções 181.

O fato de que a vida se dê sempre em tendências, diferentes entre si, nos confrontos das quais não se pode tomar alguma distância para poder observá-la no seu proceder, permite negar-se que a vida fáctica e o seu estar em um mundo segundo uma determinada direção seja apenas um atributo, uma característica suplementar de um “eu puro”, estável, a quem devam ser referidas todas as vivências que, de tal modo, não são mais situações concretas da vida, mas dados objetivados e despojados da sua energia vital.

O que se quer mostrar aqui é que sempre a vida está vinculada a um mundo. Vida não se dá a um “de fora do mundo”, dentro do qual decorrem as tendências vitais. O fato de que a vida na sua totalidade vive sempre imersa em uma situação mundana, em cuja variação se transforma também o seu horizonte de abertura, faz com que a vida só possa ser apreendida, não a partir da sua totalidade abstrata e ideal, mas antes “a partir da sua coloração neutra, vaga, não aparecente: a cotidianidade (die Alltäglichkeit)” 182.

E é propriamente da cotidianidade, na qual se encontra a vida fáctica, que a análise fenomenológica do âmbito da origem deve partir. Desse mesmo modo, em

Ser e tempo, a analítica existencial parte, não de uma abstrata idéia de existência,

ou de um eu transcendental purificado de todas as incrustações mundanas, mas, ao contrário, da existência imersa na sua cotidianidade.

É interessante observar como o tema da cotidianidade, amplamente

181

Heidegger, 1919-1920, p. 29. 182

147

desenvolvido em Ser e tempo, já está presente na sua preleção do semestre de inverno de 1919-1920 como ponto de partida para a análise fenomenológica do âmbito da origem (Ursprungsgebiet).

A interpretação do Dasein não deve partir disto que diferencia um modo de existir particular, mas deve desvelar o Dasein no modo indeterminado em que, antes de tudo e na maioria das vezes, ele se dá. Essa indiferença da cotidianidade do Dasein não é um nada negativo, mas um caráter fenomenal positivo deste ente. É a partir desse modo de ser, e com vistas a ele, que todo e qualquer existir é assim como é [...]. A cotidianidade mediana (die durchschnittliche

Alltäglichkeit) do Dasein não pode [...] ser apreendida simplesmente

como um seu aspecto183.

No transcorrer de uma banalidade a outra, isto é, no viver na cotidianidade, antes de tudo e na maioria das vezes, se vive em variações do fenômeno do encobrimento (Überdeckung) da origem da vida em si, nas variações do entrelaçamento da própria vida com a dos outros; apenas em alguns momentos a vida existe por si mesma.

O experienciar fáctico da própria vida se dá sempre a partir da experiência de qualquer outra coisa que não seja a própria existência, ou a partir das coisas encontradas no mundo circundante, ou imergindo no mundo comum, onde as diferenças desaparecem num nivelamento esvaziante.

Eu vivo em uma direção de marcha vivente [...]. Nesta direção de marcha da vida fáctica (Zugrichtung faktischen Lebens), eu encontro por vezes também a mim mesmo, mas, na maioria das vezes,

183

apenas de relance [...]. Eu me experimento, me encontro em todos os modos possíveis, mas assim como eu experimento também outro [...]. Em uma esfera do mundo comum (mitweltlichen Kreis), nós todos nos alegramos ou refletimos sobre algo, tentamos prever algo e ficamos curiosos disto que as pessoas e nós mesmos conseguimos resolver. Eu mesmo me confundo no mundo comum (Mitwelt), não tenho necessidade de ser aí senão na experiência fugaz, tonalizada em um certo modo184.

Essa análise da vida fáctica no seu ser cotidiano é a primeira descrição da reconstrução mais ampla que aparece em Ser e tempo do Dasein disperso na cotidianidade, onde o si ele mesmo cotidiano, isto é, o si-mesmo, se encontra nivelado a uma experiência mediana e pública, que o dispensa da pesquisa acerca da sua autenticidade.

Antes de tudo, o Dasein fáctico está no mundo comum, descoberto pela cotidianidade [...] É a partir desta e como esta que, antes de tudo, eu sou >dado< a mim mesmo (ich mir selbst zunächst

>gegeben<). Antes de tudo, o Dasein é impessoal (ist das Dasein

Man), assim permanecendo na maioria das vezes185.

Assim, o ponto de partida de toda investigação fenomenológica, bem como da filosofia em geral, deve ser a vida fáctica enquanto imersa na sua cotidianidade. Essa necessidade não é um fato próprio da filosofia de uma determinada época, mas antes é uma exigência própria da filosofia em si. Por este motivo, a compreensão da vida em si é sempre acompanhada da “destruição” (Destruktion)

184

Heidegger, 1919-1920, p. 96-97. 185

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das objetivações sedimentadas na tradição, dos ocultamentos do autêntico desenvolvimento do si mesmo.

Não é lícito recorrer a uma idéia causal do ser e da realidade (beliebige Idee von Sein und Wirklichkeit), por mais óbvia que esta seja, e depois aplicá-la ao Dasein com procedimento construtivo e dogmático (konstruktiv-dogmatisch). Não é lícito forçar o Dasein a sustentar uma categoria resultante daquela idéia, sem um apropriado exame ontológico. A modalidade de acesso e de interpretação deve, ao contrário, ser escolhida no modo que este ente possa mostrar-se a partir de si mesmo e em si mesmo (an ihm

selbst von ihm selbst). E, na verdade, o ente deverá mostrar-se

assim como é antes de tudo e na maioria das vezes na sua cotidianidade mediana (in seiner durchschnittlichen Alltäglichkeit)

186 .

Portanto, o primeiro passo que se realiza, na preleção do semestre de inverno de 1919-1920, intitulada Problemas fundamentais da fenomenologia, em vista da compreensão indicativa (anzeigende) da vida fáctica enquanto tal, é justamente o da problematização da banalidade.

Em outras palavras, a vida fáctica deve tornar-se problemática (problematisch), no sentido de um “problema radical, autêntico da ciência da origem da vida (eines echten radikalen Problems der Ursprungswissenschaft vom Leben)” 187

.

A problematização da cotidianidade se dá justamente quando se põem em evidência os caracteres fundamentais da vida fáctica concreta. Esses caracteres não

186

Heidegger, 1927a, p. 23. 187

devem ser tomados como generalização de dados imediatos ou como conceitos sobrepostos retirados de algo exterior, mas antes como “formas expressivas significativas da vida (bedeutsame Ausdrucksgestalten des Lebens)”.

Nesse sentido, o aprofundamento dos caracteres não-formalizados da vida fáctica se dá no intuito metódico de, com isto,

tornar disponíveis os motivos que indicam o caminho (wegzeigende

Motive) para uma apreensão a mais concreta possível da vida

mesma (ein möglichst konkretes Erfassen des Lebens selbst) [...] enquanto compreensão da origem da vida (als Ursprungsverstehen

des Lebens)188.

Cumpre observar a insistência na afirmação de que tais caracteres fundamentais da vida fáctica não devem ser tomados apenas teoricamente, a modo de conceitos abstratos ou categorias formais, mas sempre diretamente referidas à vida mesma.

As categorias (die Kategorien) não são uma invenção ou um conjunto de esquemas lógicos em si (eine Gesellschaft von

logischen Schemata für sich), mas elas estão, ao invés, de modo

originário (in ursprünglicher Weise), vivendo na vida mesma (im

Leben selbst am Leben); na vida, para formar a vida. Ela tem o seu

próprio modo de acesso (ihre eigene Zugangsweise) que, porém, não é para ser estranho à vida mesma, para desabar sobre ela do exterior, mas é, ao invés, a maneira prioritária (die ausgezeichnete) na qual a vida se perfaz a si mesma189.

188

Heidegger, 1919-1920, p. 139. 189

151

Assim sendo, passa-se à consideração do modo como são apresentados os caracteres fundamentais da vida fáctica.