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O afastamento de Heidegger, tanto do catolicismo neo-escolástico, como do neokantismo, se dá no período compreendido entre a publicação de sua tese de habilitação para a docência e o fim da primeira guerra mundial.

Assim, a partir de 1917, já é impossível para Heidegger aceitar a idéia de um sistema de valores fixo, a-histórico, que se contrapõe à vida concreta, histórica,

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Heidegger, 1916, p. 410. 104

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desprovida de validade intrínseca. Redescobrindo o espírito vivente, imerso na história, Heidegger avança para a instância de uma filosofia sem pressupostos, que não tem como próprio objeto a validade dos valores (Wertgeltung), mas a formação dos valores (Wertgestaltung) na história.

Mas a tentativa de dar voz à vida concreta na sua historicidade contra valores rígidos e paralisantes implica, segundo Heidegger, o afastamento, não só da filosofia dos valores, mas também de tudo que se apresenta como um obstáculo à livre expressão da imediatez da experiência vivida e ao livre movimento da vida. Nesse sentido, a fenomenologia oferece uma autonomia de pressupostos rígidos e fixos, abre horizontes novos para uma filosofia demasiadamente angustiada por princípios e sistemas, ao mesmo tempo que confere vivacidade e concreteza sem descuidar do rigor expositivo.

Em 26 de julho de 1913, Heidegger realiza seu exame de doutorado diante dos professores de filosofia, obtendo um summa com laude unânime. Desde então, estimulado por seu orientador Heinrich Finke, historiador católico renomado e influente entre os professores, ele ambiciona a cátedra de Filosofia Católica na Universidade de Freiburg, deixada por Arthur Schneider, que fora convocado para a Universidade do Reich em Strassburgo, e provisoriamente assumida por Engelbert Krebs.

Já se observou como é nessa direção que Heidegger, em 1915, orienta seu

Habilitationsschrift, permanecendo fiel ao espírito da filosofia católica.

Assim, após haver recebido a licença para lecionar, ele permanece como assistente de Krebs nas preleções de filosofia para estudantes de teologia. Nessa condição, profere preleções sobre Os traços fundamentais da filosofia antiga e

escolástica (Die Grundlinien der antiken and scholastischen Philosophie) no

semestre de inverno de 1915-1916, O idealismo alemão (Der deustsche Idealismus), no semestre de verão de 1916, e por fim Questões fundamentais da Lógica (Grundfragen der Logik), no semestre de inverno de 1916-1917.

Mas as esperanças de Heidegger para a cátedra terminam quando, em meados de 1916, a faculdade de filosofia nomeia Josef Geyser, que chegara em Freiburg no semestre de verão de 1917. Assim, Heidegger tem que se contentar com a indicação que, em outubro de 1917, Paul Natorp fizera dele como candidato para a vaga de História da Filosofia Medieval, na Universidade de Marburg, ainda que seu nome figurasse apenas como o terceiro da lista.

Além desses dados histórico-biográficos, cumpre assinalar o distanciamento de Heidegger da neo-escolástica católica no plano filosófico.

Na tentativa de dar voz a uma vida aquém de todo sistema de valores, Heidegger começa a investigar os traços de uma experiência religiosa fundamental, que poderia ser posta em prática apenas saindo de uma religiosidade dogmaticamente enrijecida, representada naquela época pelo sistema do catolicismo, de uma hierarquia eclesiástica que não permitia uma existência cristã individual que não aquela determinada.

Alguns elementos indicam o ano de 1917 como o ano do afastamento do catolicismo neo-escolástico e o assumir de uma nova orientação. Informações indiretas dessa mudança aparecem em algumas cartas de Edmund Husserl, que havia chegado a Freiburg, em 1916, como sucessor de Heinrich Rickert.

Em 8 de outubro de 1917, Husserl responde a uma carta de Natorp que lhe solicitava um parecer acerca da idoneidade de Heidegger para ocupar a cátedra de

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Marburg, dizendo que ele tinha fortes laços com o ambiente católico. Esta informação é corrigida numa carta posterior, a de 11 de fevereiro de 1920, onde Husserl escreve:

Permita-me informar que, embora naquele tempo eu não o soubesse, Heidegger já se havia libertado do catolicismo dogmático. De repente, mesmo sem tomar em consideração as conseqüências, se retirou – de modo claro e enérgico, mas com bom senso – da segura e fácil carreira de filósofo da visão católica do mundo. Nos últimos dois anos, tem sido o meu colaborador de maior valor filosófico 105.

Husserl mesmo estimula Heidegger a continuar os seus estudos sobre mística medieval (Bernardo de Claraval, Boaventura, Mestre Eckhart, Tauler) e sobre o pensamento cristão em geral, em vista de uma fenomenologia da religião, para a qual Heidegger já possuía sólida base e profundo conhecimento.

Hodie legimus in libro experientiae é a frase introdutória do terceiro sermão no Canticum canticorum de Bernardo de Claraval, e que Heidegger, em 1918, durante o

serviço militar, traduz livremente como: Hoje nós que queremos nos mover compreendendo no campo da experiência pessoal. Heidegger considera fundamental, nesse período, recuperar a esfera pessoal da experiência religiosa, o contato direto com Deus, não mais mediado pelas prescrições eclesiásticas.

Propriamente em vista da retomada de uma experiência imediata do sentimento religioso, no âmbito de uma descrição fenomenológica e privada de pressupostos, adquire uma notável importância o interesse de Heidegger por

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Friedrich Schleiermacher (1768-1834), em particular pelo segundo de seus Reden

über die Religion: Über das Wesen der Religion.

Assim, em agosto de 1917, Heidegger profere uma conferência, para um círculo restrito de pessoas. Essa conferência é centrada no segundo discurso, que contém o essencial da exposição de Heidegger com relação ao problema religioso.

A compreensão da essência da religião, para Schleiermacher, não pode advir do objeto, uma vez que a religião condivide com a metafísica e a moral o mesmo objeto; vale dizer o universo e o relacionamento do homem com ele. A religião não se identifica nem com a metafísica, que tenta descobrir causas primeiras e exprimir verdades eternas, nem com a moral, que deduz do relacionamento do homem com o universo um sistema de deveres, um código de leis. Mas essa vizinhança da religião com a metafísica e a moral criou muitos mal-entendidos.

Esta identidade de objeto permaneceu por muito tempo causa de muitos erros; a causa disso, de fato, é haver penetrado na religião uma grande quantidade de metafísica e de moral, e, por outro lado, muitas coisas que pertencem à religião ficaram ocultas, sob uma forma imprópria, na metafísica e na religião106.

A essência da religião pode ser apreendida a partir do modo como se faz a experiência do Universo. Esta consiste na intuição e no sentimento do Universo, na percepção imediata da existência e da atividade do Universo. Escreve: “A intuição do

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Universo é a pedra angular de todo o meu discurso, é a forma mais universal e mais alta da religião” 107.

Ao perseguir o intento de agarrar a essência da religião, Schleiermacher localiza os verdadeiros inimigos da religião, não na metafísica e na moral tomadas em si e por si, mas antes naqueles que transformaram a religião em uma metafísica sistemática, que perde tempo em discutir sobre a existência de Deus antes e fora do mundo, e na distribuição de preceitos morais; em outras palavras, em uma mitologia vazia.

Se a religião encontra sua própria essência na experiência imediata da ação do Universo, a sua degeneração é causada por aqueles que, distanciando-se de tal imediatez, fazem do Universo, da causa primeira, o objeto de um interesse puramente cognitivo e racional.

É verdade que o fim da religião é descobrir em todos nós a presença do Universo, amar o Espírito do mundo e contemplar sua ação. Essa contemplação e essa descoberta, porém, não podem dar-se através da consciência, pois, segundo Heidegger, “a medida do saber não é a medida da devoção” 108.

Ter Deus na esfera do saber, colocado como fundamento do conhecer e do conhecido, não é o mesmo que tê-lo e sabê-lo no modo da devoção. Portanto, a contemplação do Universo é possível apenas através do sentimento religioso íntimo e pessoal, que se manifesta na liberdade da fé, na distância do culto servil que motiva – e obriga – a ter fé nisto em que comumente se tem fé, a pensar e a fazer

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Schleiermacher, 1967, p. 39. 108

isto que outros já pensam e fazem. Schleiermacher fala da utilidade de um mediador apenas enquanto não se alcançou a liberdade do sentir e do intuir.

Qualquer um pode ver com os próprios olhos e deve também trazer uma contribuição própria para a riqueza da religião [...] Vós tendes razão ao desprezar os míseros repetidores papagaiantes que recebem inteiramente de outros a sua religião, ou que se prendem a um livro morto, e juram sobre ele e demonstram com base nele. Todo livro sacro é simplesmente um mausoléu da religião. Tem religião, não aquele que crê num livro sacro, mas aquele que não tem desejo, mas, pelo contrário, poderia fazer um ele mesmo109.

O sentimento religioso, portanto, deve ser vivido por alguém, ao seu modo, na imediatez da existência, na relação direta com Deus, ou, para usar uma expressão de Kierkegaard, no viver a própria religiosidade na contemporaneidade com Cristo. O sentimento da própria semelhança com Deus adquire o seu significado apenas enquanto acompanhado da consciência, da parte do homem, de seus limites, da acidentalidade de todo seu modo de ser.

A razão dessa análise é mostrar como se vislumbra uma tentativa de recuperar a religiosidade genuína e originária, de um sentimento puro, expressão de um cristianismo autêntico, tentativa esta que aparece também em Kierkegaard nos termos de uma crítica à cristianidade estabelecida.

Esta compreensão da essência da religião, enquanto intuição imediata do Universo, e a idéia de uma relação direta com Deus se encontram como horizonte,

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não somente do afastamento da rígida hierarquia católica como de uma prudente e discreta aproximação a posições protestantes não-ortodoxas.

Em uma carta particularmente importante, datada de 9 de janeiro de 1919, Heidegger expõe a Engelbert Krebs as razões pelas quais não podia mais assumir o encargo de professor na Faculdade de Teologia de Freiburg, apontando como motivo a impossibilidade de submeter sua vocação filosófica a um determinado vínculo religioso.

Os dois últimos anos, nos quais busquei uma clareza de princípios em minha postura filosófica... levaram-me a resultados para os quais, dentro de uma ligação extrafilosófica, eu não teria podido exercer a liberdade de convicção e da doutrina. Conhecimentos de teoria do conhecimento, passando para a teoria do conhecimento histórico, tornaram o sistema do catolicismo problemático e inaceitável para mim, mas não o cristianismo, nem a metafísica, porém esta em um novo sentido110.

E, a partir de tais considerações, Heidegger conclui:

É difícil viver como filósofo – a veracidade interna em relação a si mesmo, e àqueles dos quais devemos ser professor, exige sacrifício e renúncias e lutas que sempre serão estranhas ao operário da ciência. Creio ter a vocação interna para a filosofia, e pela sua realização na pesquisa e ensino sobre a eterna destinação do homem interior – e só para isso devo empregar minhas forças e justificar até diante de Deus minha existência e minha atuação111.

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In: Safranski, 2000, p. 143. 111

Com esta carta, oficialmente termina o empenho pelo princípio histórico da concepção de mundo católica e pela carreira a serviço de pesquisar e ensinar filosofia neo-escolástica católica.

No nível filosófico, o Heidegger neo-escolástico e neokantiano torna-se agora um antifilósofo para quem a metafísica tradicional não é mais aceitável. Ele começa a falar de um novo começo para a ontologia e para a teologia. Heidegger diz que se mantém fiel ao cristianismo e à metafísica. Só que não mais àquela philosophia

perennis sistemática que guarda vínculos indissolúveis com a teologia natural.

Mesmo porque

as investigações realizadas no terreno da filosofia medieval (die

Durchforschung des Mittelalters) se mantêm, segundo as correntes

interpretativas dominantes, fiéis aos esquemas de uma teologia neo- escolástica (in dem Schematismus einer neuscholastischen

Theologie) e dentro das margens de um aristotelismo reelaborado

pela neo-escolástica (in den Rahmen eines neuscholastisch

ausgeformten Aristotelismus) 112.

Assim, quando renuncia à metafísica tradicional, Heidegger volta-se então para a mundanidade. Por isso, ele começa a levar a sério o mundar (das welten) do mundo a que denomina, na sua preleção do semestre de inverno de 1921/1922, vida fáctica (das faktische Leben). Acerca disso, vale a observação de Stein:

Agora, já não mais no terreno gnosiológico, esperava Heidegger encontrar o sentido do tempo humano, da vida fáctica. Tanto no regresso à vida, de Dilthey, como na redução transcendental, meta da fenomenologia husserliana, Heidegger via implicações

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gnosiológicas que barravam o caminho para a vida concreta. É por isso que Heidegger procura, para base da exploração fenomenológica, a infundável e radical facticidade da vida, da existência113.

Justamente essa vida fáctica já não é sustentada por nenhuma instância metafísica, e não há nela nada que justifique uma doutrina religiosa nem a construção metafísica de qualquer valor de verdade.

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1 HEIDEGGER E O RETORNO À ORIGEM NA FACTICIDADE