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Heidegger compreende que é no mundo do si mesmo, onde a significatividade é aquela originária, em que o ser se encontra na sua atualidade e concreteza.

“A vida fáctica, em uma relevante agudeza, pode ser vivida, experimentada e, mediante isto, compreendida historicamente, a partir do mundo do si mesmo (auf die

Selbstwelt)” 206. A primazia do mundo do si mesmo se mostra no fato de que esta agudeza não o é apenas por observação, mas também, na maior parte das vezes e antes de tudo, não evidenciada, por se dar na própria realização da vida e no seu decurso fáctico.

Muitas são as conexões nas quais se pode mostrar esse primado do mundo do si mesmo frente aos outros dois mundos da vida (mundo circundante e mundo comum). Uma destas, a saber, a conexão com a tonalidade afetiva (Stimmung), assume um significado particular para Ser e tempo, embora já seja citada na preleção do semestre de inverno de 1919-1920. “Mundo circundante e mundo comum sempre de acordo com a tonalidade afetiva – ser-colocado (Aufgelegtsein)” 207 . 206 Heidegger, 1919-1920, p. 59. 207 Heidegger, 1919-1920, p. 172.

Em Ser e tempo, observa-se que o ser está sempre em uma tonalidade afetiva. Ela é um modo de ser originário (ursprüngliche Seinsart) no qual o ser é já aberto a si mesmo antes de todo conhecer e querer. Portanto, a tonalidade afetiva não é algo que se acrescenta a partir de fora do nosso ser-no-mundo, nem algo que provenha de um “dentro”; mas ela “já abriu o ser-no-mundo na sua totalidade (das

In-der-Welt-sein als Ganzes) e só assim torna possível um direcionar-se para... (ein Sichrichten auf...)” 208.

Conforme já foi afirmado, não somente os mundos da vida são interpretados, sempre, a partir do si mesmo, mas são primariamente vividos a partir de e em uma situação do si mesmo. Por essa razão, também as ciências devem ser compreendidas na sua realização histórica, a partir da experiência fáctica da vida, do experimentar-se do si mesmo (Sich-Selbst-Erfahren), do experimentar-se a si mesmo (Selbsterfahrung).

Todos os eventos (Begebnisse) da vida encontram sua forma e conteúdo no mundo do si mesmo, de cujas situações a cada vez partem as motivações às tendências próprias da vida, e na direção das quais fluem as realizações das mesmas tendências.

A partir da própria história do mundo do si mesmo ele mesmo (Geschichte der Selbstwelt selbst) despertam as motivações a novas tendências, e as realizações destas decorrem, enquanto tal, sempre para trás, na direção do mundo do si mesmo 209.

208

Heidegger, 1927a, p. 137. 209

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Disso se depreende que uma das tarefas inevitáveis e primárias para a fenomenologia é aquela de compreender o sentido do si mesmo enquanto tal, isto é, no seu ser. O destaque de tal ser do si mesmo, indicado formalmente com o termo “existência” 210, só pode dar-se em uma experiência fundamental do si mesmo, que não apenas compreende o próprio objeto na sua concreteza e historicidade constitutiva, mas que é ela mesma uma experiência histórica.

A realidade originária (die Urwirklichkeit) é o si mesmo na realização da experiência da vida (Vollzug der Lebenserfahrung), o si mesmo no experimentar-se ele mesmo. A experiência não é um tomar consciência (Kenntnisnehmen), mas antes o ser participante vivente (das lebendige Beteiligtsein), o ser solicitado-solícito, assim que o si mesmo é sempre codeterminado a partir desta solicitação. Toda realidade recebe seu sentido originário, através da apreensão do si mesmo (die Bekümmerung des Selbst) 211.

Portanto, o sentido do si mesmo não pode ser extraído do conhecimento objetivo, regional, mas deve ter origem a partir de uma experiência originária, isto é, a experiência fáctica da vida. Esta é a ciência fundamental da origem que se mantém longe de toda transformação do si mesmo em puro fato de conhecimento e que tem como tarefa essencial a destruição e a crítica de toda objetivação regional que, deformando e corrompendo a experiência filosófica fundamental, impede de se compreender o Urfaktum da facticidade.

É nesse ponto que, no decorrer da preleção do semestre de inverno de 1919-

210

Heidegger, 1919-1921, p. 29. 211

1920, desenvolve-se uma crítica da psicologia fenomenológica. A psicologia, compreendida como ciência absoluta do si mesmo, mostra as deformações a que é submetido o mundo do si mesmo, quando apreendido como simples coisa (Ding) submetida a análises científico-regionais.

Ora, a motivação dominante que guia a psicologia é encontrar um âmbito objetivo que seja alcançado apenas por meio da análise científica, e reelaborá-lo no interior de uma “legalidade” (Gesetzlichkeit), de tal modo que venham a se romper os vínculos e as referências à vida fáctica no mundo, isto é, de modo que os fenômenos selbstweltlich não venham dados preliminarmente na sua originariedade (in ihrer Ursprunglichkeit) 212.

O surgir, a partir da vida fáctica, do “terreno da experiência” e do “âmbito objetivo” próprio da ciência enquanto “lógica concreta” implica inevitavelmente o romper-se dos vínculos vivos com a vida fáctica ela mesma, que, neste caso, é desvitalizada e reduzida a puro objeto estabelecido. A partir de tais considerações, identificam-se duas formas de teorização da vida fáctica, as quais, ainda que aparentemente diversas, recaem ambas no mesmo intento desvitalizante.

A primeira forma de teorização é dada pela psicologia científico-explicativo- experimental, que assume os critérios de análise das ciências da natureza, reduzindo a vida a puro objeto de pesquisa, posicionado no interior de schemata de ordem fixos e estabelecidos a priori. A segunda forma de teorização é a dada pela psicologia descritiva, mediante a subjetivização, isto é, a tentativa de agarrar a vida atrelando-a ao sujeito.

212

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Nesta última, o eu é entendido sempre como algo que está antes da vida e a possui como “a mesa possui as suas cores”. A partir das vivências e por meio do método da observação interna, esta psicologia de caráter descritivo remonta à presença de um eu destacado do mundo; com o resultado, portanto, de que “isto que é observado vem objetivado (objektiviert) como nas ciências da natureza” 213.

Mas também os conceitos de caráter descritivo, como aqueles explicativos, têm a tendência de romper qualquer relação com o mundo da vida, isto é, de “coisificar” o Etwas pré-cognitivo e mundano.

Para a determinação da origem da vida fáctica, isto é, para a compreensão que se dá no modo próprio do mundo do si mesmo,

não é suficiente examinar todas as vivências como referidas ao eu (ichbezogen), e considerar o eu como encontrável em si imediatamente. Todo eu puro (reine Ich), todo eu pontual (Ichpunkt) gira apenas em vão, não faz nada para a compreensão das vivências, é inapropriado ao papel de si mesmo [...]. O eu puro não faz nada para o conhecimento da conexão vivente das vivências (die

Erkenntnis des lebendigen Zusammenhangs der Erlebnisse)214.

A partir de tais premissas, Heidegger chega a ressaltar como a própria fenomenologia de Husserl caiu no erro de objetivar o mundo do si mesmo, definindo- o como eu puro e indicando-o como objeto da fenomenologia. Antes, para ser mais preciso, a descoberta da consciência dos vividos como eu puro, cuja existência não

213

Heidegger, 1919-1920, p. 243. 214

tem necessidade de outra coisa fora dela mesma, vem em Husserl precisamente a partir do intento de constituir uma ciência absoluta da consciência.

O modo melhor para aclarar este aspecto é perguntar-se: como aqui é determinado o sentido do tema fenomenológico, isto é, da consciência pura? Com respeito ao transcendente, ao físico-natural, o psíquico é o dado imanente. Com respeito a este psíquico imanente se coloca a questão: o que nós pesquisamos nele como seu ser? Esta questão, o que indagamos da consciência como seu ser, Husserl a formula também assim: que unidades objetivas (objektive Einheiten) podemos colher, determinar, fixar nela? Ser não significa para ele outra coisa do que ser verdadeiro, objetividade (Objektivität), verdadeira para um conhecimento teórico, científico (wahr für ein theoretisches, wissenschaftliches Erkennen) 215.

E continua:

Aqui o problema vem posto, não com respeito ao ser específico da consciência, dos vividos, mas com respeito a um privilegiado ser objeto para uma ciência objetiva da consciência (einem

ausgezeichneten Gegenstandsein für eine objektive Wissenschaft vom Bewusstsein) [...]. Isto que, na caracterização da consciência

com respeito ao seu ser, é primário, é o sentido de uma possível objetividade científica, e não, ao invés, o seu ser especificamente próprio (sein spezifisch eigenes Sein) que existe antes de toda possível elaboração científica (das vor aller möglichen wissenschaftlichen Bearbeitung) e tem um sentido próprio (einen

eigenen Sinn) 216. 215 Heidegger, 1925, p. 165. 216 Heidegger, 1925, p. 165.

165

Como já se observou na primeira parte desta tese, o fato de Husserl colocar como questão primária não aquela do caráter de ser da consciência – em termos heideggerianos: a questão da origem da vida em si – mas a reflexão sobre o modo no qual a consciência pode vir tematizada por uma ciência objetiva, leva Heidegger a uma série de conclusões que manifestam a distância que intercorre entre a fenomenologia husserliana e a heideggeriana.

A atitude de não se colocar o problema ontológico central, isto é, o problema do ser da vida, mas apresentar como essencial e primário o problema da consciência revela duas coisas: primeiro, a vinculação à filosofia objetivo- transcendental, que reduz o conhecimento a conhecimento teórico e apresenta a vida como objeto de pesquisa; e segundo, o fato de que a sua definição da consciência pura não reflete uma interrogação originária, radicada na orientação às coisas mesmas, mas antes um apoiar-se a uma bem-determinada filosofia que tem seu precursor em Descartes.

O objetivo que move Husserl é descobrir uma nova região científica: a região do eu puro. Assim, o eu puro husserliano vem a constituir-se em clara oposição a todo mundo material, do mesmo modo que a res cogitans cartesiana se contrapõe à

res extensa. O eu puro é obtido da colocação entre parênteses da vida fáctica, por

meio da redução transcendental.

O sentido da redução é precisamente de não fazer uso algum da realidade do intencional (der Realität des Intentionalen); ele não é colocado nem é experimentado como algo de real (es wird nicht als

Reales gesetzt und erfahren)217.

217

Desse modo, Husserl decompõe o homem entendido como “pessoa” em consciência e realidade. Essa decomposição, no dizer de Hedegger, é fruto de um entrelaçamento de uma postura personalística (personalistische Einstellung) com uma postura naturalística (naturalistische). A postura naturalística consiste em considerar o homem, enquanto objeto natural, como ser vivente, na sua corporeidade (res extensa); e a psicologia, por outro lado, não faz outra coisa que apoiar-se sobre essa falsa postura “natural”.

O ser da pessoa surge, portanto, por uma “recostura” sucessiva das diversas camadas do ser – o ser material e o ser da consciência – oferecendo do homem uma imagem pluriestratificada. Mas essa subdivisão não faz mais do que reintroduzir

aquele modo de consideração pelo qual era já guiada também a elaboração da consciência pura: a definição tradicional do homem (die traditionelle Definition des Menschen) como animal rationale, onde ratio é entendida no sentido de pessoa racional (Vernunftperson) 218.

A fenomenologia de Husserl resulta ser, portanto, não fenomenológica, uma vez que se acomoda sobre uma tradição já consolidada, sem tentar uma reviravolta, uma destruição. É por essa razão que Heidegger dirige o radicalismo da fenomenologia contra a fenomenologia mesma, contra a tentação de acomodar-se sobre resultados obtidos e contra a tendência para objetivação científica, que trai o propósito fenomenológico de deixar aparecer o fenômeno assim como ele se dá.

A redução fenomenológica em Husserl assume um papel eminentemente

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gnosiológico. De fato, a sua aplicação deixa o conhecimento da consciência pura isolada de quaisquer referências ao mundo. Em outras palavras, ela é um prescindir da existência em nome de uma pura visão das essências.

Redução fenomenológica: depois da sua realização, que se considera necessária [...] surgiria o problema autêntico: o que então? (was nun?) Estou desembaraçado das correntes – mas então que coisa deve verdadeiramente suceder? A redução não é totalmente produtiva em si mesma. Resposta: ver! (schauen!) mas que coisa e como!!! – no sentido epistemológico, transcendental – como aparece a consciência? Ela não aparece como tal, visto que não é objeto (es kein Objekt ist)219.

Ao contrário, não existe uma consciência destacada do mundo, em ego que se põe antes de todas as vivências. Eu experiencio a mim mesmo apenas através disso que eu faço no mundo, em tudo isto que faz parte da significatividade da vida. Aquilo que se tenciona é

a obtenção da vida autêntica, livre da objetivação, a partir da significatividade (reinen verdinglichungsfreien Lebens aus Bedeutsamkeiten). Tudo isto que está fora da significatividade, tudo

isto que não é compreensível vem eliminado ou vencido220.

Há que se reconhecer a redução fenomenológica somente enquanto se apresenta como recondução da filosofia à vida fáctica, como destruição das tentativas de fugir da realidade histórico-mundana. A fenomenologia se constitui

219

Heidegger, 1919-1920, p. 151. 220

como a compreensão da vida fáctica no seu dar-se, de vez em vez, nas situações que se encontram no mundo. Ela á a compreensão da origem da vida, que se oferece apenas nas situações fáctico-concretas e a partir delas: o ser da vida fáctica coincide com a sua existência.