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A presente tese tem se encaminhado no sentido de mostrar como, nas preleções A idéia da filosofia e o problema da visão de mundo (Die Idee der

Philosophie und das Weltanschauungsproblem) e Fenomenologia e a filosofia

transcendental dos valores (Phänomenologie und die transzendentale

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Wertphilosophie), ambas proferidas em 1919, aparece a primeira manifestação do

pensamento próprio de Heidegger, isto é, uma colocação originária da pergunta pelo Ser.

Essa pergunta fundamental implica, como se observou, uma dupla questão. A primeira diz respeito ao problema do método da filosofia, juntamente com aquele do modo de expressão próprio de uma ciência originária. A segunda diz respeito ao problema do campo temático específico da fenomenologia, isto é, do “algo” a que esta deve dedicar-se, se quer fugir da tentação de uma recaída em um transcendentalismo teórico que, em objetivando o material originário, já não tem, para com o mesmo, relação alguma senão a de esgotamento e de desvitalização.

A recolocação desses dois problemas já possibilita uma grande inovação. A situação filosófica da época se caracterizava basicamente por dois procedimentos: ora se privilegiava uma análise transcendental do método, ora se imergia de modo irracional no material sem uma consciência da necessidade de sua rigorosa conceptualização. Mas Heidegger inova justamente porque consegue conjugar em sua investigação esses dois problemas e levar adiante as duas questões, sem cair em nenhuma das posições em voga.

Surge, pois, como determinante nesse empreendimento sobretudo seu diálogo com os neokantianos Paul Natorp e Heinrich Rickert, lembrando que foi a este último que Heidegger dedicou sua tese de habilitação para a docência, e Edmund Husserl, de quem Heidegger se tornou assistente, quando de sua chegada à Universidade de Freiburg como sucessor de Rickert.

Dentre os neokantianos, Natorp assume uma posição particular. Isso se confirma no sentido de que, se, por um lado, ele apresenta diretamente o problema

do eu concreto, isto é, da subjetividade das vivências, por outro lado, o problema do modo possível de se apreender as vivências assume um primado sobre todos os outros problemas, entre os quais aquele do modo originário de ser do eu atual e concreto. Nisso está o primado que o método e a postura teórica adquirem na psicologia filosófica desenvolvida por Natorp.

Ao mesmo tempo, fica clara, na colocação de Heidegger, nessa época, a influência da crítica husserliana à concepção de mundo (Weltanschauung) e ao historicismo. Escreve Husserl, em sua Filosofia como ciência rigorosa:

O impulso à pesquisa não deve provir da filosofia mas das coisas e dos problemas. Mas a filosofia por sua essência é ciência dos verdadeiros princípios, das primeiras origens [...]. A ciência disto que é radical deve ser radical também no seu método, e com todo cuidado157.

Mas se, em Husserl, a fenomenologia deve alcançar a apreensão da essência das coisas, que seja válida supratemporalmente, isto é, alcançar um começo onde as coisas se mostrem com clareza absoluta (redução fenomenológica), o que interessa a Heidegger são, ao invés disso, as indicações das coisas no próprio mostrar-se aqui e agora, em uma conexão de referências que estabelece o seu significado.

É por essa razão que, ao recolocar a pergunta pelo que é filosofia (Was ist

Philosophie), Heidegger insiste na necessidade de “uma orientação principial da

filosofia (einer prinzipielle Orientierung der Philosophie)”, uma vez que

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deve ser claro desde o primeiro passo que coisa propriamente se quer (was eigentlich gewollt wird), de modo a repetir, contemporaneamente, a necessidade de um verdadeiro filosofar concreto (die Notwendigkeit eines wirklich konkreten

Philosophierens) 158.

Nesse contexto de aclaramento de orientação de princípio e de necessidade de se propor um verdadeiro filosofar concreto, isto é, um filosofar que tome em consideração a mencionada conexão de referências em vista de uma ciência originária, é que surge a expressão “hermenêutica da facticidade (Hermeneutik der

Faktizität)”.

A expressão “hermenêutica da facticidade” descreve, portanto, de maneira clara, as conexões nas quais se enraízam as análises da fenomenologia hermenêutica compreendida como ciência originária. A facticidade constitui o ser da vida histórico-mundana, isto é, o seu encontrar-se em uma situação temporal e espacialmente determinada, a qual compreensão só é possível, a partir das motivações e das tendências que agem no horizonte de cada evento histórico- mundano singular.

A explicação do caráter motivante de todo eu histórico-mundano permite a Heidegger, pela primeira vez, indicar a cinética e a mobilidade (Beweglichkeit) fundamental da vida histórica.

Essa mobilidade se encontra justamente na sua inquietação (Unruhe) de fundo, inquietação esta que não pode ser silenciada por uma conceptualidade muito

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rígida e abstrata, caso se queira compreender o objeto temático próprio, a saber, a vida nos seus próprios caracteres essenciais e constitutivos.

Antes, os conceitos filosóficos devem ser propriamente expressão do sentido da própria realização da vida na sua mobilidade essencial. E é propriamente da inquietação, da agitação da vida histórico-fáctica que deve proceder a fenomenologia para sair da prisão da “absoluta objectualidade”, característica de uma postura meramente teórico-abstrata.

Em outras palavras, é necessário perseverar na preocupação (Kümmerlichkeit) da problemática própria da filosofia para poder empreender o “salto em um outro mundo, ou mais precisamente: como tal, antes de tudo, no mundo (der

Sprung in eine andere Welt, oder genauer: überhaupt erst in die Welt)” 159.

O trazer à expressão a dinamicidade de fundo de algo originário implica que a vida possua a tendência para a diferenciação e para a distinção. A vida mesma não apenas é intuível, experienciável, mas, contemporaneamente, se compreende. A vida se compreende, isto é, ela se intui e se exprime concretamente. É interessante observar como, nesse sentido, o compreender (Verstehen) é definido essencialmente como intuição (Anschauung) 160.

Com tal caracterização da autosuficiência da vida histórico-mundana, Heidegger consegue superar a separação entre intuição e expressão (Anschauung

und Ausdruck), isto é, a idéia de que, com a mediação da linguagem, se perde a

imediatidade da compreensão intuitiva e de que o conceito, conseqüentemente,

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Heidegger, 1919a, p. 63. 160

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deve “apresentar-se objetivamente como aparato coisal que necessariamente deve violar aquele elemento intacto ao qual ele se aplica” 161.

A fenomenologia hermenêutica assim compreendida como ciência compreendente (verstehende Wissenschaft) não deve construir uma conceptualidade abstrata e separada do contexto vital, isto é, uma conceptualidade que conduza à destruição do próprio campo objetual.

Antes, ela deve esforçar-se para compreender a vida como esta se compreende a si mesma. Ela deve acompanhar com cuidado o fluir constante do eu histórico de um contexto de significatividade a outro, sem jamais chegar a uma interpretação conclusiva a modo de uma concepção de mundo (Weltanschauung). Em outras palavras, a fenomenologia, enquanto ciência compreendente, deve fazer da provisoriedade e insegurança elementos essenciais da compreensão da dinamicidade da vida concreta.

Essa característica a afasta por completo das demais ciências, uma vez que “entre ciência e filosofia há uma diferença de princípio (ein prinzipieller Unterschied)” e “a possibilidade de acesso aos conceitos filosóficos (philosophischen Begriffen) é totalmente diversa daquela dos conceitos científicos (wissenschaftlichen Begriffen)” 162

.

Por essa razão, em se referindo à peculiaridadade dos conceitos filosóficos (Eigentümlichkeit der philosophischen Begriffe), escreve Heidegger:

161

Heidegger, 1919-1921, p. 19. 162

Nas ciências particulares, os conceitos são determinados através da inserção em um contexto real, e são, portanto, definidos de modo tão mais preciso quanto mais conhecido é aquele contexto. Os conceitos filosóficos, por sua vez, são vacilantes, vagos, múltiplos, fluentes [...]. A insegurança (Unsicherheit) dos conceitos filosóficos [...] pertence ao sentido dos conceitos filosóficos mesmos (zum Sinn

der philosophischen Begriffe selbst)163.

No seu dar-se como compreensão dos eventos, como vivência (Erlebnis) do algo originário (Uretwas), a própria hermenêutica, portanto, resulta ser parte integrante da vida mesma, e esta, por sua vez, se manifesta na vivência a cada vez. Neste “algo experimentável (Erlebbares), vivido, formalmente” manifesta-se a vida (o algo originário) nos seus “momentos de >para< (>Auf zu<), de >na direção de< (>Richtung auf<) e de >em um mundo determinado< (>In eine bestimmte Welt

hinein<)” 164.

O “algo formalmente objetivo”, se visto a partir da vida compreendida em si e para si, se constitui já como um conceito (Be-griff), mas como um conceito sui

generis, que permite à intuição hermenêutica (die hermeneutische Intuition)

apresentar-se como a

formação fenomenológica originária dos reconhecimentos (Rückgriffe) e dos preconhecimentos (Vorgriffe), fora de todo colocar-se transcendente teórico-objetivante. A universalidade dos significados lingüísticos significa primariamente algo de originário

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Heidegger, 1920-1921, p. 3. 164

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(primär etwas Originäres): a conformidade ao mundo da experiência vivida experimentada no modo vivente165.

Assim, ao expor essa nova, e ao mesmo tempo antiga, impostação interpretativa, Heidegger rompe o primado de duas contraposições teóricas que caracterizam toda investigação sobre o eu e sobre a vida. Ele rompe tanto o primado que se refere ao método positivo, e sua conseqüente cisão entre sujeito-objeto; como o primado que se refere ao objeto temático, e sua conseqüente separação entre a essência (essentia, Wesen), inexprimível e inobjetivável, e a existência (existentia, Dass) diluída no seu fluxo contínuo.

Além disso, identifica-se na facticidade o elemento constitutivo de toda realização da experiência do eu histórico, experiência esta que tem sua origem na “plena concreção do eu”. No laço indissolúvel existente entre o método e o objeto da pesquisa, a atenção não deve ser colocada teoricamente sobre “que coisa” (Was) se pergunta, mas sobre “como” (Wie), sobre a realização historicamente determinada da pergunta.

Somente dessa maneira se poderá evitar

de repetir sempre: individuum est ineffabile, e começar a perguntar que sentido deverá ter o fazer, qual modo de compreensão deverá vir expresso, e se, por acaso, esse dictum não se baseia sobre um determinado modo de conceber o indivíduo que se funda, por fim, apenas sobre uma consideração exterior de tipo estético da personalidade inteira 166. 165 Heidegger, 1919a, p. 117. 166 Heidegger, 1919-1921, p. 39-40.

Por fim, esclarece-se que a vida em si é vista como uma multiplicidade de tendências. Falar de uma

multiplicidade inabarcável (unübersehbare Mannigfaltigkeit) é totalmente formal, já vista a partir da tendência a uma compreensão construtiva da >formação dos conceitos< e reelaboração teórica (theoretischen Bearbeitung) da realidade inteira, por meio da ciência. No mais, através dessa caracterização formal, vem preclusa toda possibilidade de impostação em vista de uma autêntica compreensão do vivenciar do mundo circundante 167.

Cumpre observar que, já no semestre sucessivo, Heidegger abandona o termo vivência (Erlebnis) e o substitui parcialmente pela palavra experiência (Erfahrung), na qual fica mais clara a referência, não só à interioridade, mas também ao eu histórico na sua totalidade, compreendendo, de tal modo, também a sua corporeidade e a sua sociabilidade.

A característica fundamental da experiência da vida (Lebenserfahrung) é fornecida pela referência necessária à corporeidade (notwendigen Bezug zur Leiblichkeit) [...]. O eu histórico-prático é necessariamente de natureza social (das

praktisch-historische Ich ist notwendig sozialer Natur), ele está

em uma conexão vital (Lebenszusammenhang) com os outros eus 168. 167 Heidegger, 1919-1920, p. 38. 168 Heidegger, 1919a, p. 210.

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2 A FENOMENOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA ORIGINÁRIA