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A máxima fenomenológica “às coisas mesmas” oferece uma orientação fundamental para a identificação das “categorias” da vida fáctica concreta. O que, contudo, deve-se rejeitar completamente, fazendo valer tal máxima, é a impostação transcendental do problema. Essa impostação, por seu próprio caráter transcendental, primeiro imagina (erdenken) um conceito, para, depois, examinar se é possível adequar a ele um determinado traço do âmbito objetivo.

O ponto de partida, como já se observou, é oferecido, pois, pela vida em si. Isso implica que não se deve fazer valer nada de externo, mas procurar encontrar os caracteres fundamentais da vida (die Grundcharaktere des Lebens) na sua própria “autodadidade”. Isso feito, e permanecendo sempre no âmbito da vida mesma, deve- se compreender se tais caracteres requerem uma determinação conceitual em conformidade ao seu significado.

Apenas nesta determinação do significado apreendida e proveniente das coisas (nur in dieser von den Sachen herkommenden und

hergenommenen Bedeutungsbestimmtheit), [o caractere] deve ser,

no futuro, utilizado na conexão da problemática científica (im

Zusammenhang der wissenschaftlichen Problematik)190.

Desse modo, os caracteres que Heidegger apresenta assumem uma

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evidência singular diante das categorias utilizadas na ciência. Eles se configuram como formas expressivas da vida na sua totalidade.

Uma vez que a vida não pode ser vista de fora do fluxo contínuo, no qual, antes de tudo e na maioria das vezes, se dá, ela não pode ser coisificada e desvitalizada, permanecendo, portanto, “simples-presença”. Disso resulta que os seus caracteres não são “definições sintéticas” de partes limitadas, construídas pela pesquisa científica, mas antes são expressões, a partir de uma determinada perspectiva, da vida em si na sua totalidade. “Cada caráter é interpretativo com respeito à vida na sua plenitude (auf das volle Leben)” 191.

Não obstante sejam apresentados muitos caracteres, apenas três assumem uma importância particular enquanto “formas expressivas fundamentais da vida fáctica”: auto-suficiência (Selbstgenügsamkeit), significatividade (Bedeutsamkeit) e contexto de anúncio (Bekundungszusammenhang). Cumpre, portanto, descrever mais detalhadamente cada um deles.

O caráter de auto-suficiência da vida (Selbstgenügsamkeit des Lebens) salienta a modalidade de realização da vida, isto é, o

como principial (das prinzipielle Wie) da motivação das novas tendências (der Motivierung neuer Tendenzen) e o como principial de suas formas de percurso e de realização (ihrer Verlaufs- und

Erfüllungsformen)192.

A vida fáctica está sempre relacionada, a partir do seu estar em um mundo,

191

Heidegger, 1921-1922, p. 89. 192

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ao “transcendente”, que compreende também o que é “imanente”. Todavia, nesse dirigir-se para um transcendente, a vida não tem necessidade de ir para além de si mesma, uma vez que essa forma de realização não é outra que o “modo da direção próprio da vida (die Weise der eigenen Richtung des Lebens)”.

Dito com outras palavras, o existir é em si um movimento de transcendência (existir como ex-sistir, estar fora). E desse fenômeno da transcendência, pode-se dizer que Heidegger ressalta aqui o seu “sentido de realização” (o transcendente entendido no seu sentido intransitivo) e o seu “sentido de referência”, evitando, desse modo, dirigir a atenção ao para-que do ato mesmo (“sentido de conteúdo”).

Esta “transcendência originária” não é outra, portanto, que o “ser-no-mundo”, ou seja, a facticidade enquanto tal 193.

A vida põe tarefas e propósitos para si mesma; ela determina as motivações e as tendências do próprio percurso fáctico. Isso justifica a afirmação de que “a vida fala a si mesma na sua própria linguagem (das Leben spricht zu sich selbst in seiner

eigenen Sprache)” 194.

A auto-suficiência não significa, porém, que a vida, no seu ser, a cada vez, se dê a compreender como completa e terminada em si mesma. Mas, antes, que na sua incompletude e nas suas contínuas tentativas de superar a própria fragmentariedade, isto é, no seu resolver-se em sempre novas determinações de propósitos, ela é sempre suficiente a si mesma, uma vez que vive em si e nas suas possibilidades encontradas a cada vez no mundo.

No seu “ser sempre imersa em uma situação”, a vida fáctica se dá na sua

193

Cf. Heidegger, 1919-1920, p. 31. 194

totalidade, no seu ser-em-tudo.

A vida é inconclusa (unvollkommen), nunca plenamente satisfeita, permanece fragmentária e sai à procura de cumprimento. Também este querer-encontrar-a-última-realização (Suchen und Letzte-

Erfüllung-finden-wollen), o projetar intuições do mundo e da vida

(Entwerfen von Welt- und Lebensanschauungen) [...], são criações da vida (Schöpfungen des Lebens) 195.

Portanto, não apenas cada interrogação epistemológica sobre a vida, mas também toda investigação do âmbito da origem da vida em si, isto é, a ciência da vida em si e por si, se compreende – e é motivada – a partir do caráter fundamental de auto-suficiência, qual forma estrutural própria da vida mundano-concreta. Assim, “também cada âmbito de origem (jedes Ursprungsgebiet) deverá estar contido na vida mesma (im Leben selbst) e na sua estrutura fundamental (von seiner

Grundstruktur)” 196.

O caráter principial de auto-suficiência, como também o fenômeno da cotidianidade, mostra como o “eu fáctico” não pode ser confundido com o “eu puro”, separado do fluir vital, que se coloca fora das referências mundanas e espácio- temporais determinadas. A vida fáctica vive e se dá à compreensão apenas nas conexões tendenciais que a atravessam, que decorrem no e a partir do mundo. Por essa razão, ela é vida apenas enquanto vive em um mundo, isto é, o encontra sempre de algum modo.

Essa centralidade do mundo, e a relação que se estabelece entre este e a

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Heidegger, 1919-1920, p. 34. 196

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vida fáctica, são mostradas por Heidegger, já nas suas primeiras preleções, por meio de um outro caráter fundamental, a saber, o da significatividade (Bedeutsamkeit), que indica o sentido do encontro da vida em si com o mundo e com o que é mundano.

Assim, a significatividade determina o caráter próprio de tudo o que se experimenta na experiência fáctica da vida, indica o “como-que-coisa se encontra o mundo e o como do encontrar (das Als-was und Wie des Begegnens)” 197.

Na preleção Conceitos fundamentais da fenomenologia, apresenta-se o caráter da significatividade como o “de-algum-modo” (Irgendwie), no qual o mundo e o algo mundano vêm ao encontro e podem ser experimentados de fato. A significatividade não determina um significado que se acrescenta à coisa (aos objetos que sabemos disponíveis por uma pura consideração teórica). Ela não é, portanto, um caráter que se pode ter como não ter, mas antes ela é a “determinação indistinta” que dá o significado à coisa (o sentido de existência), também às coisas mais banais.

Eu vivo sempre cativo da significatividade

(bedeutsamkeitsgefangen), e cada significatividade tem o seu círculo de novas significatividades: os horizontes de atividade, de participação, de valorização, de destino. Eu vivo no fáctico enquanto conexão inteiramente particular de significatividades (Zusammenhang von Bedeutsamkeiten) que se compenetram constantemente, isto é, cada significatividade é significatividade por e em uma conexão de tendências e expectativas, que se cria sempre de novo na vida fáctica [...]. Neste caráter indistinto da

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significatividade, isto que é experimentado se encontra nos contextos fácticos da vida198.

Se o significado fundamental do objeto vem experimentado a partir da e na significatividade, isto que se encontra e se experimenta não é a significatividade, mas o singular “ente intramundano que encontra a expressão objetual correspondente, que a vida mesma dá forma. Não é a significatividade como tal a ser experimentada expressamente” 199. A significatividade pode ser expressa apenas em vista de um propósito ulterior, que é aquele da interpretação da vida “em referência a si mesma”, isto é, da vida em si e por si.

Da preleção do semestre de inverno 1921-1922 em diante, Heidegger toma a caracterização da significatividade em relação cada vez mais estreita com o mundo. A significatividade vem definida como a “determinação categorial de mundo (kategoriale Determination von Welt)”, a estrutura do mundo, ou seja, isto no qual a vida enquanto tal já sempre é. Tudo isso que é significativo está no “como” de um determinado significar. A modalidade de uma significação se dá no mundo, na intimidade com o qual existe o ser do homem.

A possibilidade do encontro e da experimentabilidade do ente intramundano é dada precisamente pela significatividade que se põe aquém de qualquer teorização lógico-formal e de qualquer assinalação de valor, ambas possíveis somente a partir da significatividade do mundo. A significatividade como correlato da objetivação e a significatividade como valor são modificações do “como” originário da experiência

198

Heidegger, 1919-1920, p. 104-105. 199

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mundana 200.

Esta última reflexão permite introduzir o terceiro caráter fundamental da vida fáctica, a saber, o contexto de anúncio ou contexto expressivo (Bekundungszusammenhang), que distingue a lingüisticidade da vida em si no seu dar-se histórico-concreto. Tudo aquilo do qual se toma cuidado a partir dos modos determinados do encontrar o mundo (Umwelt, Mitwelt, Selbstwelt 201) se oferece em um contexto expressivo que, antes de qualquer coisificação científica, ilumina o caráter histórico e concreto da vida.

Em outras palavras, tudo aquilo que se encontra mostra um caráter expressivo, isto é, aparece e se exprime sempre em algum modo. Este caráter da vida em si, ou seja, a exprimibilidade de tudo que se encontra, exerce um papel fundamental, seja na compreensão da estrutura da vida fáctica, seja na delineação da ciência da origem enquanto método adequado para exprimir “cientificamente” o dar-se originário do eu histórico-fáctico.

De fato, tal exprimibilidade permite, em primeiro lugar, mostrar como a ciência em geral não é outra coisa que a transformação particular do contexto expressivo, o qual se dá sempre em um nível pré-teórico.

Esta nova estrutura relevante da vida vivente em si (merkwürdige

Struktur des lebendigen Lebens an sich), que nela tudo se exprime

de algum modo (irgendwie ausdrückt), vale também para a particular transformação das suas tendências (die besonderen Ausformungen

seiner Tendenzen), por exemplo, para a ciência202.

200 Cf. Heidegger, 1919-1920, p. 109s. 201 Heidegger, 1920-1921, p. 11. 202 Heidegger, 1919-1920, p. 46.

Em segundo lugar, essa determinação categorial indica claramente como é a própria vida para, de fato, ter em si a tendência a ser expressa de algum modo, sobretudo cientificamente.

A vida fáctica é apreendida na tendência de ser-conhecida cientificamente. Isto significa, visto a partir das ciências: [...] elas crescem a partir de um mundo fáctico da vida (einer faktischen

Lebenswelt) e da multiplicidade vivente disto que-vem-ao-encontro,

no mundo fáctico ele mesmo, da vida fáctica (der lebendigen

Mannigfaltigkeit des in ihr dem faktischen Leben Begegnenden)203.

Uma vez que as tendências determinadas da vida se movem e se anunciam sempre nos mundos da vida, estes últimos, de vez em vez, asseguram o âmbito objetivo e o terreno, tanto às ciências como às artes, como “genuínos mundos da vida (genuine Lebenswelten)” 204.

Todavia, nenhuma das ciências que assume o contexto expressivo do mundo circundante e do mundo comum (ciências da natureza, ciências históricas) pode ser considerada originária, uma vez que “o mundo comum e o mundo circundante (Mitwelt und Umwelt) vivem em uma considerável conexão de compenetração (Durchdringungszusammenhang) com o meu mundo do si mesmo (Selbstwelt)” 205.

Portanto, isso significa que é somente a partir das análises de como o ser histórico vive no mundo do si mesmo é possível apresentar e compreender, em toda a sua profundidade, o problema do encontro dos entes, sejam eles coisas 203 Heidegger, 1919-1920, p. 66. 204 Heidegger, 1920-1921, p. 11. 205 Heidegger, 1919-1920, p. 56.

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simplesmente presentes ou outros seres, e o problema da sua exprimibilidade. Tal observação coloca, pois, a necessidade de se deter um pouco na consideração da primazia conferida ao mundo do si mesmo diante dos outros modos principais de como se articula o mundo.