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A partir do que foi apresentado, pode-se observar como a compreensão fenomenológico-hermenêutica não é senão um modo de realização da vida fáctica mesma. Ela é parte da vida e com essa partilha a extrema precariedade, angústia e inquietude, como também o seu caráter de possibilidade.

No semestre de inverno de 1919-1920, Heidegger oferece uma indicação complementar, denominando, pela primeira vez, este entrelaçamento ontológico entre fenomenologia e vida, a saber, paradoxo. “A fenomenologia luta incessantemente com um paradoxo: o paradoxo originário da vida em si e para si (die Urparadoxie des Lebens an und für sich)” 236.

A compreensão do ser da vida fáctica, através da qual é caracterizada a vida mesma, é uma compreensão paradoxal. O caráter principal desse paradoxo é a sua “irresolvibilidade”, com o qual deve prestar contas também a fenomenologia da vida 234 Heidegger, 1920, p. 84. 235 Heidegger, 1920, p. 75. 236 Heidegger, 1919-1920, p. 2.

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fáctica. Em outras palavras, a impossibilidade de uma tradução do paradoxo em uma construção conceitual estável, a partir da qual seja possível despregar uma concepção de mundo (Weltanschauung), um guia para o agir prático.

Assim, na fenomenologia da vida fáctica, já não se pode colocar em evidência o sentido objetivo do genitivo – que daria lugar a uma separação entre objeto e método – , mas antes o genitivo subjetivo.

A fenomenologia enquanto compreensão do ser da vida fáctica é parte integrante da vida fáctica, da sua realização e do seu decorrer de uma situação a outra. Cumpre notar que, em Ser e tempo, se faz referência à compreensão como “existencial”, isto é, como caráter ontológico fundamental do ser do Dasein entendido como poder-ser.

Se o proceder fenomenológico é uma compreensão da vida, a partir da vida e na vida, isto é, um acompanhar a espontaneidade do si mesmo no seu dar-se histórico-mundano, ele, então, não pode mais chegar a uma definição definitiva do material da análise ou a uma classificação mediante conceitos de ordem científica.

Além disso, o “objeto” específico da investigação filosófica não será mais oferecido do “que coisa” (Was), isto é, da vida fáctica enquanto simplesmente presente, mas antes a vida fáctica poderá ser descrita apenas nos seus modos de ser, isto é, no seu “como” (Wie).

Por essa razão, os conceitos filosóficos devem ser apenas indicativos, não prejulgando nada das coisas. Eles “deixam repercutir apenas uma direção, que serve para retornar aos motivos mais originários da vida (zu ursprünglichsten

Motiven des Lebens)” 237. E a origem da vida quem indica é sempre o Wie, isto é, o modo de realização como único “objeto” possível da investigação filosófica. Assim, a realização e a inquietação essencial e constitutiva mostram a vida fáctica enquanto tal. Em outras palavras, elas indicam o ser da vida.

Uma vez que não se pode corresponder à paradoxabilidade senão reconhecendo o lugar originário no ser mesmo da vida e mostrando como o próprio proceder fenomenológico não pode escapar desse paradoxo, o critério da investigação filosófica não é a verdade – entendida como adaequatio intellectus ad

rem – , mas antes a originariedade da vida fáctica, jamais reduzível a objeto de

enunciação científica. No caso de tal redução, de fato, se deforma o Etwas originário, ocultando os seus autênticos caracteres ontológicos.

Na sua preleção do semestre de inverno de 1920-1921, Heidegger escreve: “O caminho de retorno ao histórico-originário é filosofia (Rückgang ins Ursprünglich-

Historische ist Philosophie)” 238.

Essa afirmação aponta justamente para o fato de que isto que a problemática filosófica tende na sua estrutura mais íntima, e que se apresenta como o critério da genuinidade e autenticidade da investigação fenomenológica, coincide com aquela questão que a filosofia tradicional com a sua pesquisa de um a priori estável – seja este último o valor supremo, ou o sujeito abstrato e ideal – , tem querido afastar de si, a saber, o homem na sua existência concreta, individual e histórica.

Não obstante isso, Heidegger continua, ainda mais radical e paradoxal,

237

Heidegger, 1919-1920, p. 3. 238

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dizendo que a posse-de-si-mesmo tem a tendência, tanto para alcançar, como para perder a intimidade da vida com ela mesma, tanto a tendência de Mitleben genuinamente e autenticamente, como a tendência de desvitalizar a vida em modo inautêntico.

Para melhor compreender a posse-de-si-mesmo, em sentido ontológico, e antecipar aquilo que mais amplamente será ressaltado, a partir da preleção do semestre de inverno de 1921-1922 em diante, é preciso reconhecer que sempre se deve lidar com uma tendência à deformação, com uma inclinação à perda de si, com uma interpretação da vida que, na maior parte das vezes e antes de tudo, se volta à simples presença. Em uma palavra: ruína.

Esta “perdição” não é para ser compreendida como uma degeneração, mas como um caminho “natural” próprio da vida fáctica. Em outras palavras, “o caráter ontológico do homem é facticamente determinado pela queda, pela inclinação mundana” 239.

Uma vez que sempre referida à vida histórico-concreta, mundana, ela se dá apenas nas situações cada vez diversas, nos eventos que se sucedem. O grande erro do pensamento filosófico tradicional é aquele de ter projetado a idéia de um sujeito (alma, pessoa, eu, consciência, etc.) que se coloca atrás da vida e das situações, e de ter, por isso, interpretado o homem como um objeto estável, sempre igual a si mesmo, determinável de uma vez por todas.

Como se afirmará várias vezes, a partir da preleção do semestre de verão de 1923, por trás dessa idéia está presente a influência da “antropologia cristã” com a

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sua interpretação da definição grega do homem enquanto zóon lógon échon como

animal rationale 240. A deformação tem início com o acolhimento, por parte do cristianismo, do pensamento grego, em particular platônico, neoplatônico e aristotélico.

Antes disso, porém, Heidegger reconhece que foi propriamente a comunidade cristã primitiva quem descobriu, e indicou, com a própria existência, o novo paradigma histórico para a compreensão da vida em si e para si.

O mais profundo paradigma histórico para o processo de transferência da vida fáctica e do mundo da vida para o mundo do si mesmo e o mundo das experiências internas é-nos dado no surgir do cristianismo. O mundo do si mesmo como tal emerge na vida e é vivido como tal. Isto que se dá na vida das comunidades cristãs primitivas significa uma reorientação radical das tendências da vida [...]. Aqui se encontram os motivos para a elaboração de novos modos de expressão que a vida cria para si, até mesmo para aquilo que hoje nós chamamos de história [...]241.

240

Heidegger 1927a, p. 48. 241

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TERCEIRA PARTE

PARA UMA APROPRIAÇÃO NÃO-OBJETIVANTE DA TRADIÇÃO

1 A APROPRIAÇÃO NÃO-OBJETIVANTE DO CRISTIANISMO