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Nessa duplicidade de interesses (teológico e lógico) se encontra sua tese de doutorado defendida em 1913 e que trazia como título A doutrina do juízo no

psicologismo, Uma contribuição crítico-positiva para a Lógica (Die Lehre vom Urteil im Psychologismus. Ein kritisch-positiver Beitrag zur Logik). Nela, Heidegger refere-

se diretamente aos neokantianos, apresentando uma fusão de realismo neo- escolástico com neokantismo moderno, lógica fenomenológica e epistemologia.

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In: Safranski, 2000, p. 76. 66

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Minhas convicções filosóficas básicas permaneciam aquelas da filosofia escolástico-aristotélica. Com o tempo, eu reconheci que a riqueza guardada nela deveria permitir e requerer uma avaliação e aplicação muito mais frutífera. Assim, em minha dissertação sobre A

doutrina do juízo no psicologismo, que se referia a um problema

central de lógica e epistemologia e tomava suas posições simultaneamente da lógica moderna e dos juízos básicos da escolástica aristotélica, eu tentei encontrar uma base para investigações posteriores67.

Heidegger analisa as teorias psicologísticas e refuta o psicologismo como solução para o problema do juízo enquanto elemento originário da lógica. Ele lida com a intencionalidade especificamente na forma do juízo (Urteil) e define seu sentido-conteúdo como puro sentido lógico (Sinn), isto é, como fundamento lógico para fazer juízos acerca de seres.

A tendência do onto-lógico de Heidegger é preservar o status do sentido lógico como um campo autônomo (Bereich), um reino (Reich), que é distinto da realidade espácio-temporal ôntica, tanto dos atos físicos de julgar como do mundo físico acerca do qual juízos são feitos. Assim, ele se apresenta como um lógico puro.

O juízo da lógica é sentido (das Urteil der Logik ist Sinn), um fenômeno estático, que está para além de qualquer desenvolvimento e modificação, que, portanto, não se torna nem surge, mas vale (gilt); algo que pode ser apreendido (erfasst werden kann) pelo sujeito que julga, mas nunca se altera por esse apreender (durch dieses

Erfassen)68. 67 In: Sheehan, 1988, p. 116. 68 Heidegger, 1913, p. 179.

Daí que ele assume a tarefa de refutar o psicologismo, isto é, a tentativa reducionista de explicar o sentido dos juízos em termos da realidade espácio- temporal dos processos psíquicos.

Cumpre observar que Heidegger, no seu ensaio de 1912, já encontrara fortes argumentos para a defesa das exigências de validade (Geltung) da lógica contra a relativização psicológica.

Fundamental para o conhecimento do contra-senso e da esterilidade teórica do psicologismo é a distinção entre ato psíquico (psychischem Akt) e conteúdo lógico (logischem Inhalt), do processo do pensar (Denkgeschehen) transcorrido no tempo real e o sentido idêntico ideal extratemporal (dem idealen ausserzeitlichen identischen Sinn), em suma, a distinção do que é (was ist) daquilo

que vale (was gilt)69.

Nas primeiras quatro partes de sua tese, ele critica quatro teorias psicologistas, que, respectivamente, tomam o juízo: a) em termos de uma gênese da atividade mental aperceptiva (Wilhelm Wundt); b) como consistindo de atos componentes (Heinrich Maier); c) como uma classe básica de fenômenos psíquicos (Franz Brentano); d) como algo satisfeito mediante a ação de um sujeito psíquico que é reivindicado pelo objeto (Theodor Lipps).

A forma desta modificação determina a seqüência na qual as teorias são tratadas: W. Wundt considera o surgir (Entstehen), H. Maier o existir em diversos atos (das Bestehen aus Teilakten), Th. Lipps o

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acabamento do procedimento do julgar (die Vollendung des

Urteilsvorgangs). Fr. Brentano, que chega através do mais amplo

questionamento à sua doutrina do juízo (zu seiner Urteilslehre), é por isso preferido a Th. Lipps, porque, na sua doutrina do juízo, se aproxima mais de uma puramente lógica (einer rein logischen)70.

A principal crítica é que o próprio questionar no psicologismo desde o início já se desloca do conteúdo lógico do juízo para o ato psíquico de julgar, tornando-se, assim, uma teoria, não acerca do lógico, mas acerca do psicológico.

O psicologismo, como já se observou, omite a essencial distinção entre ato psíquico e conteúdo lógico, entre o ato noético de julgar e o puro sentido lógico noemático para o qual o ato é intencionalmente dirigido. Por exemplo, o sentido puro do juízo “a capa do livro é amarela”, isto é, o ser-amarelo da capa do livro, não pode ser reduzido nem ao livro material nem ao ato psíquico de julgar.

O psicologismo seria, portanto, como diz o nome, um questionamento psicológico (eine psychologische Fragestellung) em contraposição ao objeto lógico. Mas o psicologismo não é somente um princípio errado da pergunta com referência ao objeto da lógica –, ele não conhece de modo algum a realidade lógica (die logische

Wirklichkeit). Ela mesma é para ele nada ao lado do psíquico, mas,

ao contrário, coincide com a realidade psíquica! O psicologismo não só desconhece o objeto lógico, já que ele observa o objeto apenas de um lado, por um sinal secundário, mas seu não-conhecer (sein

Verkennen) não é um simples conhecer mal (ein blosses Misskennen), mas propriamente um não conhecer (ein eigentliches

Nicht-Kennen) 71. 70 Heidegger, 1913, p. 65. 71 Heidegger, 1913, p. 161.

A última parte da tese se encaminha para a elaboração de uma “doutrina pura lógica do juízo” (eine rein logische Lehre vom Urteil). Ele esclarece que há quatro tipos distintos e irredutíveis de realidade, a saber, a física, a psíquica, a metafísica e a lógica.

Uma vez que o sentido lógico não é para ser confundido com os outros campos, deve-se dizer não que ele “existe” ou que “ele é”, mas sim que ele vale (es

gilt). O ser do sentido lógico é valer (Gelten), estar em vigor. Como tal, ele é na

verdade “um algo” que “jaz antes de nós” e “está aqui” em prol do juízo. Ele tem uma dadidade irredutível que não pode ser explicada através de outra coisa.

A tese de Heidegger se encerra com a afirmação de que sua investigação estabelece o trabalho preparatório e as bases para um projeto mais extenso de fundar uma lógica pura que incluiria ontologia na forma de uma doutrina das categorias que articulasse ser em seus múltiplos sentidos.

Justamente neste problema dever-se-ia tornar claro que o lógico deve procurar pôr em evidência o sentido inequívoco das proposições (den eindeutigen Sinn der Sätze), e determinar, conforme as diferenças objetivas do sentido e conforme sua estrutura simples ou composta, as formas do juízo (die Urteilsformen), inserindo-as num sistema. O verdadeiro trabalho preparatório para a lógica e o único a ser empregado frutuosamente não é propiciado pelas investigações psicologísticas sobre a origem e a composição das representações, mas através de determinações claras e elucidações do significado das palavras72.

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Nesse sentido, Heidegger é categórico ao afirmar que

só quando a lógica pura for construída e concluída sobre tal base (auf solcher Grundlage), poder-se-á abordar com maior segurança os problemas de teoria do conhecimento e desmembrar a dimensão global do ser em seus diferentes modos de realidade (in seine

verschiedenen Wirklichkeitsweisen), pôr em aguda evidência sua

originalidade e determinar o tipo de seu conhecimento e seu alcance. O que foi dito pretende indicar que a presente obra quer ser filosófica, já que foi empreendida a serviço da totalidade última (des

letzten Ganzen)73.

Ora, já havia sido afirmado que a parte mais importante da lógica é a doutrina das categorias.

Um primeiro nível dessa doutrina tem a ver com as “categorias do ser” a

priori, que possibilitam as “condições transcendentais de conhecimento” de qualquer

“ser sensível”. Essas categorias do ser dos entes foram por primeiro trabalhadas em um contexto realista por Aristóteles e então reformuladas pela lógica transcendental de Kant dentro da objetividade dos objetos da experiência. A divisão do ser em seus vários modos de realidade também implica concretizar a doutrina das categorias dentro das ontologias regionais que investigam as estruturas categoriais das várias ciências.

Um segundo nível da doutrina das categorias, que foi iniciado pelo neokantiano Lask, tem a ver com as categorias filosóficas que permitem as condições transcendentais de conhecer as próprias categorias do ser e são,

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portanto, categorias de categorias, formas de formas. Categorias filosóficas são tais categorias reflexivas como “identidade” e “algo em qualquer sentido”, mas a mais importante é “validade”, que é a forma constitutiva de todas as outras categorias.

Aqui está um termo-chave para a resposta que Heidegger dá, em seus primeiros escritos, à pergunta pela determinação unitária e simples do ser que permeia todas suas diferentes significações. O sentido do sentido (Sinn des Sinnes) do ser dos entes é validade (Geltung).

A partir disso, Van Buren conclui que “seu projeto de uma lógica pura equivaleria a uma onto-lógica fenomenológica e transcendental da existência do sentido categorial válido do ser dos entes” 74.

Cumpre ainda observar que, nos escritos iniciais de Heidegger, validade significa basicamente três coisas. Primeiramente, validade significa a forma de idealidade possuída pelo sentido de um juízo que não existe na realidade bruta do espaço e tempo. Assim como a idéia do bem de Platão é a forma das formas, o ser dos entes, mas ela mesma está além do ser, assim a validade é a forma mais excelente de todos os sentidos lógicos dos entes.

Este uso do conceito de validade é tomado de Lotz e dos neokantianos. Influenciado pela posição de Platão de que o ideal atemporal do bem está além do ser, Lotz sustentou que idéias e valores não existem, mas antes estão localizados em um reino atemporal de validade.

Assim, portanto, deve ainda haver uma forma de existência ao lado de possíveis modos de existência (Existenzarten) do físico, do

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psíquico e do metafísico. Lotze encontrou para ela um termo decisivo na nossa língua alemã: próximo a um isto é (das ist) existe um isto vale (das gilt). A forma de realidade do elemento equivalente descoberto no processo do juízo somente pode ser o valer (das

Gelten). O ser-amarelo da capa do livro sempre vale, mas nunca

existe75.

A par disso, validade também significa a validade de um sentido predicativo de um juízo para o sujeito lógico do juízo. Isso permite concluir que

a validade disto para aquilo significa o conceito lógico da cópula (der

logische Begriff der Kopula). A questão do sentido do ser no juízo

(die Frage nach dem Sinn des Seins im Urteil) é, em conseqüência, simultaneamente determinada. Este ser significa, não um existir real (reales Existieren) ou alguma relação neste, mas validade (das

Gelten) [...] as cópulas valem para significar (die Kopula gelten von bedeutet) 76.

A validade do sentido de juízos para entes, contudo, deriva, não só de sua função constitutiva, mas também de sua verdade ou correspondência com esses entes como tais. Seguindo as Investigações Lógicas de Husserl, sustenta-se que o lugar primário da verdade é o sentido noemático do juízo. A atividade psíquica de julgar é verdadeira somente em um sentido derivado. Dessa forma,

o velho conceito de verdade adaequatio rei et intellectus deixa-se elevar ao puramente lógico (das rein Logische), se res é concebida

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Heidegger, 1913, p. 170. 76

como objeto (Gegenstand) e intellectus como conteúdo de significação determinante (determinierender Bedeutungsgehalt)77.

Concluindo, na tese de doutorado de Heidegger a questão do ser aparece como questão acerca do status do significado lógico. Ela é tomada no contexto do seu projeto neo-escolástico de se apropriar criativamente da doutrina escolástico- aristotélica das categorias com a ajuda da teoria lógica da fenomenologia e do neokantismo.

No final de suas análises do juízo e da validade do sentido lógico, afirma-se que a lógica pura tem a tarefa última de dividir a região toda do ser em seus vários modos de realidade. Assim, sua primeira resposta para a questão acerca do sentido unitário do ser foi que ele é a validade atemporal do sentido lógico.