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Tanto a neo-escolástica como o neokantismo, ainda que empreendendo suas investigações em campos totalmente distintos, conservam em comum dois fatores.

O primeiro refere-se ao fato de almejarem a construção de um sistema, a partir de uma determinada tradição filosófica, seja esta cristã ou kantiana, fator este

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que justificou o retorno às suas respectivas fontes. O segundo diz respeito ao que motivou tal construção, a saber, tanto um esforço de justificação da filosofia frente às ciências positivas, como um esforço de defesa da filosofia diante das críticas levantadas pelo próprio pensamento, principalmente em Sören Kierkegaard (1813- 1855) e Friedrich Nietzsche (1844-1900).

A corrente subterrânea, que suscitara o neokantismo e o neo- aristotelismo como dois movimentos defensivos, era a que lentamente tomaria vulto. Radicava ela em Kierkegaard e sua crítica ao cristianismo e principalmente na crítica por ele levantada contra o idealismo especulativo de Hegel, que esquecia a existência concreta, e em Nietzsche, cuja crítica violenta ao platonismo e ao cristianismo, como um platonismo para o povo, chamava aos poucos as atenções no começo do século. O conceito de existência em Kierkegaard e o de vida em Nietzsche foram retomados sob diferentes formas pelos pensadores que cresciam nessa época17.

Nessa corrente subterrânea superficialmente tachada de vitalismo ou mesmo irracionalismo, e com a qual tanto a neo-escolástica como o neokantismo tiveram que entrar em diálogo, se encontra Wilhelm Dilthey (1833-1911) e sua concepção de uma história do espírito, isto é, de uma história essencial.

Como já se observou, em meados do século XIX, a filosofia é dominada pelo problema da ciência e do conhecimento. A epistemologia toma o centro da problemática filosófica, fazendo desta uma elaboração, muitas vezes artificial e puramente construtiva, de teorias sobre teorias. Para identificar essa atitude, Heidegger fala do “interesse filosófico puro que como tal se move precisamente

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apenas ao redor dos problemas em si (um die Probleme an sich bewegt)” 18. E ainda do “cinza sobre cinza da filosofia” (das Grau in Grau der Philosophie) 19.

Entretanto, a crise das ciências e as catástrofes da civilização moderna fazem com que a confiança na racionalidade científica sofra um abalo e, com ela, as concepções do positivismo. Em meio à renovação tentada pelos neokantianos e pela neo-escolástica, através de seus sistemas, encontra-se a proposta de Dilthey. Nele se dá a renúncia ao sistema, e a filosofia se abre à realidade fáctica da vida na sua historicidade. Mas tal abertura não tem como libertar-se da forte tendência da época à construção teórica.

Uma representação usual que se faz de Dilthey, durante o período de sua primeira recepção e interpretação, é a de um teórico das ciências do espírito. Dilthey seria um historiador que teria sido conduzido, pela necessidade de fundamentação das ciências históricas, à elaboração de uma teoria das mesmas. Ele não seria propriamente um filósofo, visto que não criara nenhum sistema conceptual. Essa representação não é de todo errada. Mas é uma representação que vê a filosofia de Dilthey a partir de fora, sem penetrar nos seus motivos fundamentais e nas suas tendências decisivas e sem, por isso, reconhecer os seus reais limites.

Na verdade, aquilo que usualmente se consideram os limites de Dilthey são propriamente fendas que podem abrir o acesso a uma compreensão mais originária de seu pensamento. Antes de tudo, isso se deixa verificar, no que se refere ao problema do sistema. Não é assim que Dilthey não pudera criar um sistema, mas, ao contrário, ele o evitara. E se, ao fim da vida, ele apresentou alguma tendência ao

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Heidegger, 1916, p. 196. 19

sistema, isso se deve à peculiar oscilação do seu pensamento, por causa da situação histórica a que estava sujeito.

Pode-se afirmar mesmo que a posição de Dilthey, no âmbito da história espiritual, no período da passagem do século XIX para o século XX, marca o movimento de um novo início da filosofia. A situação da qual parte a problemática abordada pelo pensamento desse filósofo está estreitamente relacionada com a questão da consciência histórica e da fundamentação das ciências do espírito.

O despertar e a emancipação da consciência histórica (das

Erwachen und die Emanzipation des historischen Bewusstseins) de

toda tutela, quer da metafísica, quer das ciências naturais, não é outra coisa que a primeira visão genuína do crescimento fundamentalmente peculiar de todos os fatos espirituais. A partir da emancipação surge a tarefa ulterior e primordial da fundamentação propriamente filosófica (die weitere prinzipielle Aufgabe der

eigentlichen philosophischen Fundierung)20.

Ora, Comte e Stuart Mill tentaram transferir o método das ciências naturais para as ciências históricas. “Eles procuraram resolver o enigma da consciência histórica e da consciência factual das ciências do espírito, através de um enquadramento em conexões de princípios próprios das ciências naturais (durch

Einordnung in naturwissenschaftliche Prinzipienzusammenhänge)” 21. Essa tentativa foi sentida imediatamente como um erro de princípio, da parte dos pesquisadores das ciências do espírito, mas sem que eles dispusessem de meios filosóficos para

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Heidegger, 1919b, p. 164. 21

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repelir as prescrições estabelecidas por um dogmatismo metodológico das ciências naturais.

Desde seus anos juvenis, Dilthey reconheceu a impossibilidade da transferência do método das ciências naturais para as ciências do espírito e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma teoria positiva das ciências que fosse feita a partir delas mesmas, isto é, a partir da peculiar cientificidade que é exigida pelo modo de ser do seu objeto temático.

Em 1870, Dilthey, como historiador e filósofo, publicou o primeiro volume da sua obra biográfica, considerada genial, A vida de Schleiermacher (Leben

Schleiermachers).

Já naqueles anos, nos quais o neokantismo começava a se impor com o trabalho de uma teoria positiva das ciências orientada em sentido kantiano, Dilthey percebeu a lacuna fundamental que permanecia, no tocante à realização de uma teoria das ciências do espírito. Ele percebeu que, para além de uma teoria da razão pura, isto é, da racionalidade das ciências naturais, faltava instituir uma teoria da razão histórica, isto é, da racionalidade das ciências do espírito.

Em 1883, na sua Introdução às ciências do espírito, partindo da consciência factual do desenvolvimento das ciências históricas e da idéia de uma conexão entre a realidade vivente, valor e finalidade, ele porá em evidência a posição autônoma das ciências do espírito em confronto com as ciências da natureza, descobrirá as conexões lógicas e epistemológicas que jazem nas ciências do espírito e fará valer o significado da apreensão do singular.

O significado do singular e do único na realidade histórica é um dado fundamental para distinguir as ciências do espírito das da natureza.

Nestas o singular é somente meio (Mittel), um ponto de passagem que deve ser saltado para se chegar a uma generalização analítica. Na história, porém, o singular é finalidade (Zweck) e meta (Ziel). No particular, o historiador busca o universal das coisas humanas (in

dem Besonderen sucht der Historiker das Allgemeine der

menschlichen Dinge) 22.

Nas ciências históricas é fundamental a auto-reflexão do espírito e o estudo das formas de vida espiritual através da descrição. A auto-reflexão descobre a unidade da vida e sua continuidade nos homens. A vida dá-se imediatamente cada vez como concentrada na singularidade e unicidade de um indivíduo, de um si mesmo que diz “eu”.

Assim, a ciência fundamental, isto é, aquela que fornece o fundamento para a construção do mundo histórico nas ciências do espírito é a antropologia, ou melhor, a psicologia, entendida, nem no sentido daquela psicologia de caráter experimental que assume para si a metódica das ciências naturais, nem no sentido de uma construção do mundo subjetivo, a partir da perspectiva de uma teoria do conhecimento que visa à fundação e redução da vida em um sistema lógico-formal.

Dilthey viu que a tarefa de uma compreensão filosófica das disciplinas históricas (die Aufgabe philosophischen Verständnisses

der historischen Disziplinen) só pode dar certo caso se reflita sobre o

objeto, a realidade (über den Gegenstand, die Wirklichkeit) que propriamente é tema nessas ciências, caso se consiga liberar a estrutura fundamental dessa realidade (die Grundstruktur dieser

Wirklichkeit), por ele indicada como vida (Leben). Assim ele avança

da tarefa posta de maneira positiva, totalmente nova e autônoma,

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para a necessidade de uma psicologia, de uma ciência da consciência (Wissenschaft vom Bewusstsein), mas não no sentido de uma psicologia científico-natural, nem no sentido de uma tarefa da teoria do conhecimento, mas para a tarefa de ver (der Aufgabe zu

sehen), em suas estruturas, a vida mesma como a realidade

fundamental da história (das Leben selbst als die Grundwirklichkeit

der Geschichte)23.

A tarefa das ciências do espírito não é outra senão a de compreender a vida nas suas estruturas fundamentais. Cada palavra e cada fato que emerge da e na vida só pode ser compreendido, na medida em que aquele, através do qual aquela palavra e aquele fato se fizeram visíveis, tem alguma coisa em comum com aquele que tenta compreender. Este ter em comum enquanto participar de um horizonte comum de compreensão foi denominado de empatia (Einfühlung).

Mas tudo aquilo que aparece no horizonte da história traz também a marca da objetividade (Objektivität). Na história, objetivo é aquilo que é atuado (das Gewirkte), que é criado (das Geschaffene) a partir da comum experiência humana da vida.

Ora, a vida de cada um é compreendida sempre em uma conexão teleológica (teleologischer Zusammenhang). Tudo aquilo que acontece na vida do homem, este o tenta compreender, a partir da totalidade da vida mesma, isto é, a partir de um nexo no qual se tecem, em relação à vida, a elaboração de uma certa concepção (Auffassung), de um certo estabelecimento de valor (Wertsetzung), de um ato de dar finalidade (Zweckgebung) à mesma. Essas conexões, contudo, são abarcadas pela conexão espiritual de uma geração, de uma época ou de uma idade, que determinam o todo da vida tal como este se perfez, no decurso do devir histórico.

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Dilthey denomina esse fenômeno de conexão efetiva (Wirkungszusammenhang) de uma época. Este é o conceito fundamental das ciências do espírito, a partir de onde elas se articulam. A totalidade do mundo, isto é, a estrutura fundamental da vida, serve como fundo para a elaboração de uma concepção histórica concreta.

Mas o cerne enquanto célula primordial é o indivíduo (das Individuum), a unidade da vida (Lebenseinheit) entendida em uma relação estreita e inseparável com o seu meio. Surge, assim, a necessidade de uma ciência que investigue as estruturas dessa unidade da vida: a psicologia. Surge assim a Idéia de uma

psicologia descritiva e analítica (Idee einer beschreibenden und zergliedernden Psychologie), título da obra de Dilthey publicada em 1894.

Trata-se de uma psicologia estrutural. Dentre as suas tarefas estão realizar um corte transversal da vida anímica; apresentar um corte longitudinal da vida anímica, o que funda a biografia como ciência psicológica importante também para a história; e determinar e consolidar a conexão adquirida da vida anímica. Tal conexão é chamada de status conscientiae: o estado da consciência como resultante da identificação da condição psíquica de um determinado indivíduo em um determinado momento do decurso temporal de sua vida.

A psicologia deve tentar, portanto, uma apreensão originária da vida psíquica. Esta torna-se acessível, através da percepção interior (innere Wahrnehmung), não sendo, porém, um ato isolado de reflexão.

Toda vivência psíquica traz consigo um saber em torno de seu próprio valor. Cada pessoa vivente vive em um sentir-se (jede

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objetivamente como o valor ou desvalor de sua própria existência. Cada vivência tem a sua acentuação de valor ou de desvalor (Wert-

und Unwertbetontheit) na conexão psíquica. Essa acentuação de

valor é o fio condutor para a reconstrução daquilo que é dado na visão interior. A autêntica psicologia acompanha o concreto, ela está em conexão com o mundo do si mesmo (im Zusammenhang mit der

Selbstwelt); a psicologia não é nada mais que a explicação da

experiência do mundo do si mesmo (die Explikation der

selbstweltlichen Erfahrung)24.

Pode-se ver aqui que a psicologia de Dilthey brota da experiência da vida. As estruturas colocadas em relevo por ele são indícios (Andeutungen), alusões a uma realidade que se abre em uma nova descoberta, mas onde falta efetuar ainda uma plena apropriação conceptual.

Nesse sentido, tanto Natorp quanto Dilthey tentam compreender a conexão vivencial como um todo, ou seja, como que dominada inteiramente por uma unidade originária. Mas o modo como os dois filósofos determinam o particular (das

Einzelne), a partir do todo, é diverso. Em Natorp, a totalidade é dada pelo todo da

relação constitutiva; em Dilthey, pela conexão efetiva da vida. Natorp faz uso do método da reconstrução (Rekonstruktion); Dilthey, da explicação (Erklärung).

Heidegger ressalta que, não obstante todo o interesse por aquilo que na filosofia moderna, desde Descartes, se denomina de eu, consciência, alma, psíquico e subjetivo, tanto em Natorp quanto em Dilthey, não aparece a existência atual de um si mesmo em seu mundo (das aktuelle selbstweltliche Dasein).

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A razão disso é que o motivo originário da filosofia (das ursprüngliche

Motiv der Philosophie) foi esquecido e não é assumido dentro da

tarefa da filosofia; em lugar disso, o que se realiza é muito mais um resvalar em uma impostação (ein Abgleiten in eine Einstellung), uma formação que exterioriza tarefas de conhecimento, uma tendência ao conhecimento em sentido teórico (eine Tendenz auf Erkenntnis im

theoretischen Sinn), a uma última abrangência25.

Concluindo, “o positivo no trabalho de Dilthey é a tendência à realidade mesma que é tema nas ciências históricas (die Tendenz auf die Wirklichkeit selbst,

die in den historischen Wissenschaften Thema ist)” 26.

Em outras palavras, o decisivo na impostação de Dilthey não é a teoria das ciências da história, mas o esforço de trazer à luz a realidade efetiva (Wirklichkeit) que constitui o tema das ciências históricas, ou seja, a vida. Ele tenta interpretar a vida a partir da vida mesma e não a partir de um esquema transcendental de caráter lógico que lhe seja imposto de fora. É decisivo aqui o seu esforço de esclarecer o modo e a possibilidade dessa interpretação.

Com base nesta impostação interrogativa (Fragestellung) Dilthey mantém uma posição privilegiada dentro da filosofia da segunda metade do século XIX, justamente também em confronto com a Escola de Marburg, porque ele permanece livre de um kantismo dogmático (dogmatischen Kantianismus), e com sua tendência ao radical tentou filosofar puramente a partir das coisas mesmas (rein

aus den Sachen selbst zu philosophieren). Todavia, tanto a tradição

quanto a filosofia contemporânea foram poderosas demais para que a sua natureza peculiar pudesse manter-se em um caminho seguro e

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Heidegger, 1920, p. 170. 26

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unívoco. Ele oscilou (schwankte) freqüentemente, e teve tempos em que viu o seu próprio trabalho meramente no sentido da filosofia tradicional de seu tempo (traditionellen Philosophie seiner Zeit), orientada por uma bem outra maneira27.