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Na primeira parte, observou-se como Heidegger avalia o movimento de retorno à origem empreendido tanto pela filosofia neo-escolástica como pela filosofia científica dos neokantianos. Ambas as filosofias são determinadas essencialmente por uma tradição e não pelo empenho de abrir e deixar vir à luz as coisas dignas de serem interrogadas pelo pensamento. Como conseqüência, o movimento de retorno à origem nunca é um retorno originário às coisas interrogadas, mas sempre retorno a uma filosofia historicamente dada na tradição.

O empenho de Heidegger, após o abandono de tal abordagem tradicional da filosofia, concentra-se em, mediante um passo atrás na direção da facticidade, autoclarificar tanto o conceito e a tarefa da filosofia, como o seu objeto originário (Urobjekt).

Nesse sentido, ele investiga, antes de tudo, a tendência teorizante da filosofia, dominante, no início do século XX, na Alemanha. Em outras palavras, põe-se em questão toda filosofia entendida como teoria sofisticada em si mesma, puro transcendentalismo teórico que, enquanto teoria do conhecimento, não faz outra coisa do que prender e enrijecer o constante fluxo da vida.

Pode-se afirmar que, já na conclusão posterior da sua tese de habilitação para a docência, Heidegger entrevê, ainda que de forma potencial e confusa, a nova direção do seu próprio caminho. Ali ele fala do “lugar apropriado para dar palavra à

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inquietação (Unruhe) que o filósofo não deixa mais de experimentar” 114. Mas dar voz ao filósofo com sua inquietação significa que também faz parte da filosofia aquele que filosofa, o qual mantém a si mesmo em questão, isto é, a própria vida histórico- mundana, a própria história.

Tal participação quebra, por assim dizer, a neutralidade de um filósofo-sujeito que investiga a vida-objeto. Assim, redescobre-se a instância viva (lebendig) da filosofia, bem como a estreita relação entre filosofia e vida. E nessa redescoberta, Heidegger se vê forçado a introduzir, no apriorismo da filosofia neokantiana, sob o qual em parte ainda se movia como pressuposto em seus primeiros escritos, as solicitações provenientes de Dilthey e da tradição hermenêutica das ciências do espírito (Geisteswissenschaften).

Como já foi apontado, Rickert, naquela época, era o mais ferrenho defensor do pathos contemplativo da filosofia, entendendo-a como observação teórica do mundo. No seu ensaio A filosofia da vida (Die Philosophie des Lebens), Rickert explica como o distanciamento da vida (Lebensferne) pertence à essência do homem teórico, como se todo filósofo devesse desistir da própria vida para elevar-se a um nível superior mais amplo onde lhe fosse possível abraçar o mundo. Um nível onde reinassem os valores estáveis, não sujeitos ao caos da vida.

Mas Heidegger logo rompe com a Escola neokantiana de Baden, criticando essa supremacia do teórico.

Este predomínio do teórico (Vorherrschaft des Theoretischen) deve ser quebrado, mas não nesta maneira que se proclame um primado do prático (Primat des Praktischen), e não porque, para apresentar

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simplesmente uma coisa diferente que mostra o problema de um lado novo, mas porque o teórico mesmo e como tal recusa um pré- teórico (das Theoretische selbst und als solches in ein

Vortheoretisches zurückweist) 115.

Não se trata, portanto, de simplesmente trocar a teoria pela prática, ou de substituir o primado do teórico pelo primado do prático. Isso porque ambos os posicionamentos diante da realidade, teórico e prático, ainda permanecem distantes da realidade e no âmbito da teoria do conhecimento, a saber, do primado do teórico. É necessário sair do círculo da teoria do conhecimento em direção ao que Heidegger chama de “esfera pré-teórica” (vortheoretischen Sphäre), uma instância muito próxima ao ver imediato cultivado pela fenomenologia. Ora, o problema da teoria do conhecimento, e da conseqüente “absolutização injustificada do teórico (ungerechtfertigten Verabsolutierung des Theoretischen)” 116, é que ela transforma tudo em coisa-objeto.

A vivência do mundo circundante é des-vitalizada (das Umwelt-

erleben ist ent-lebt) até chegar a este resultado: reconhecer um real

como tal. O eu histórico é desistoricizado (das historische Ich ist ent-

geschichtlich) até chegar a um resto de egoidade específica como

correlato da coisalidade (einen Rest von spezifischer Ich-heit als

Korrelat der Dingheit) e é somente no proceder do teórico que tem o

seu quem, isto é, é acessível117.

115 Heidegger, 1919a, p. 59. 116 Heidegger, 1919a, p. 87. 117 Heidegger, 1919a, p. 89.

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A preleção do semestre de verão de 1919 tem por título Fenomenologia e

filosofia transcendental dos valores (Phänomenologie und transzendentale Wertphilosophie). Heidegger começa apresentando a gênese histórica da filosofia

dos valores, através da exposição do pensamento dos dois filósofos mais representativos dessa Escola neokantiana, a saber, Windelband e Rickert. A preleção termina com suas próprias observações críticas, a partir da fenomenologia tal como apresentada nas Investigações Lógicas de Husserl.

Cumpre observar que, ainda nessa preleção, reconhece-se, sobretudo nos trabalhos de Emil Lask, discípulo de Rickert, uma proximidade entre a filosofia dos valores às posições da fenomenologia. Segundo ele, Lask reconheceu a aporia em que se debatia a filosofia idealista dos valores, mas não conseguiu dar “o passo decisivo para a fenomenologia (den Schritt zur Phänomenologie zu tun)” 118, a saber, um passo para além do puro âmbito lógico do problema relativo à teoria do conhecimento.

Vai tornando-se cada vez mais claro que é necessário inserir o problema das categorias naquele do juízo e do sujeito, mas agora não mais no sujeito transcendental, no sentido da teoria do conhecimento, mas antes no sujeito compreendido como imediato e vivo na sua historicidade. E é justamente esse passo decisivo de recondução à vida que permite delinear-se uma superação do dualismo entre idealismo e realismo que pervade, segundo ele, toda a filosofia da primeira década do século XX.

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Já em 1916, ainda às voltas com o realismo da neo-escolástica e o idealismo do neokantismo, Heidegger percebera esse problema.

Se o realismo crítico pode ser tomado em consideração para que o juízo, no tratamento do problema do conhecimento, seja tomado a título de princípio, e se, por outro lado, se consegue do idealismo transcendental a inserção orgânica do princípio da determinação da forma em virtude do material na própria posição de fundo, então se deveria conseguir e assumir em uma unidade superior estas duas direções da teoria do conhecimento (erkenntnistheoretischen

Richtungen), as duas mais importantes e mais fecundas de hoje 119.

Tal unidade superior (höheren Einheit) Heidegger somente a vai atingir, quando, em 1919, desloca o princípio originário e último do juízo para a vida fáctica e não procura mais uma síntese entre realismo crítico e idealismo transcendental, mas uma superação da teoria do conhecimento.

Tal tarefa é realizada no parágrafo 16 da preleção do semestre de emergência da guerra (Kriegnotsemester) em 1919, intitulada A idéia da filosofia e o

problema da concepção de mundo (Die Idee der Philosophie und das Weltanschauungsproblem).

Aí ele começa sua reflexão analisando o problema dos pressupostos (das

Problem der Voraussetzungen), mais especificamente a questão epistemológica

acerca da realidade e do modo de abordagem do chamado mundo exterior (die

erkenntnistheoretische Frage nach der Realität der Aussenwelt). No que toca à

existência e à verdade do mundo exterior, quem tem razão, “o realismo crítico ou a

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filosofia transcendental, Aristóteles, Kant, ou ainda nenhum dos dois (Aristoteles

oder Kant, oder aber keiner von beiden) ?” 120.

Heidegger vai perceber que ambos os posicionamentos da teoria do conhecimento, tanto idealismo como realismo, têm em comum a mesma pressuposição de destacar-se para cima do próprio eu imediato, ou seja, a adoção de uma postura pretensamente crítica na lida com a vivência imediata. Assim, o realismo crítico e o idealismo crítico-transcendental percorrem caminhos comuns (gemeinsame Wege), até tomarem direções contrárias (entgegengesetzten

Richtungen) 121.

O realismo crítico parte do pressuposto da existência do mundo externo real, que não é, portanto, fruto das representações. Recusando qualquer tipo de especulação metafísica, e planejando a possibilidade de um puro conhecimento dos fatos em si, o realismo resulta ser o mais forte aliado e o mais extremo defensor das ciências naturais. A aceitação da ciência como ideal de pesquisa para todo e qualquer conhecimento é fruto da falsa idéia que a ciência, sem envolver-se em questões de princípio, é capaz de alcançar resultados definitivos.

A decisão pelo trabalho concreto à imitação das ciências não leva o realismo a perguntar-se se é verdadeiro que as ciências nunca tomaram, nem no momento de sua gênese, uma decisão de princípio, e se isto que vale para a ciência pode valer de igual modo para a filosofia. Logo, a incapacidade de colocar-se o problema daquilo que é principial na filosofia, que é visto unicamente como pouca coisa diante

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Heidegger, 1919a, p. 78. 121

da abundância de material, comporta a aceitação acrítica de uma concretude não assumida na sua caracterização originária.

Nesse sentido, o realismo “se priva da possibilidade de colocar em ato a autêntica tendência ao concreto de forma originária e adequada (die echte Tendenz

zu Konkretem angemessen und ursprünglich)” 122.

Também o idealismo está sujeito ao condicionamento das ciências naturais, ainda que de maneira diversa. O idealismo parte, como o realismo, do pressuposto da objetividade. Só que esta não é vista nos fatos do mundo externo, mas na consciência, no sujeito epistemológico. Se se fala de dados objetivos, estes se encontram somente na consciência, que reelabora mediante as categorias o material bruto. Inclusive no idealismo dito objetivo da escola de Marburg, verifica-se uma redução do conhecimento àquele científico natural matemático (die mathematische

Naturwissenschaft).

A descrição apresentada da vivência da cátedra, em torno da qual gira toda a preleção do Kriegnotsemester de 1919, oferece os elementos decisivos para se compreender o seu posicionamento frente à filosofia entendida como teoria do conhecimento, quer na direção do realismo, quer na do idealismo.