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a ficção de longa-metragem,

No documento Filmes falados (páginas 101-105)

mediada por um olhar feminino1

Ana Catarina Pereira2

Resumo: Desde o aparecimento do cinema até ao final da primeira década do século XX, 40 ficções de longa-metragem foram dirigidas por mulheres, em Portugal. A primeira delas data de 1946, tendo estreado a 30 de Agosto no Cine Ginásio, em Lisboa. Três Dias

Sem Deus, de Bárbara Virgínia, é uma adaptação da obra original de Gentil Marques, Mundo Perdido, que chegou a ser apresentada no I Festival de Cannes, a 5 de Outubro de

1946. Do filme, restam apenas algumas cenas que somam pouco mais de cinco minutos e que se encontram no Arquivo da Cinemateca Portuguesa. Este seria, no entanto, o primeiro e único filme realizado por uma mulher durante o período ditatorial do Estado Novo (1932 - 1974).

A segunda longa-metragem de ficção – Trás-os-Montes – data já de 1976 e é uma co- realização de Margarida Cordeiro e de António Reis. Para além destas, até ao final de 2009 seriam realizadas mais 38 longas-metragens. A primeira década forte, em termos de produção, seria a de 80, quando se destacam os nomes de Monique Rutler, Solveig Nordlund e Margarida Gil. Nos anos seguintes surgem os primeiros trabalhos de Teresa Villaverde, sendo que, na primeira década de 2000, são realizados metade dos 40 filmes que constituem o corpus deste estudo: 20 longas-metragens datam, deste modo, do início do século XXI, quando se destacam os nomes de Catarina Ruivo, Cláudia Tomaz e Raquel Freire.

O propósito desta apresentação será identificar a evolução do número de cineastas femininas no cinema português, comparativamente com a evolução do papel social da mulher e dos estudos feministas na sociedade portuguesa. Tentaremos também, através da análise do estilo e das temáticas abordadas em obras das cineastas mais significativas no contexto português, responder à questão: “De que falamos quando falamos de cinema português no feminino?”

Palavras-chave: Realizadora; percentagem; cinema feminino; identificação.

1) Nota dos editores: por decisão da sua autora, este texto não respeita o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

2) Doutoranda na Universidade da Beira Interior. Investigadora do LabCom e bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

Falar de cinema português no feminino é analisar uma breve mas interessante história das mulheres que inverteram os tradicionais papéis de “actriz filmada por um realizador”, assumindo, elas próprias, o comando do olhar por detrás das câmaras. Tendo João Bénard da Costa (1998: 76), antigo director da Cinemateca Portuguesa, inúmeras vezes sublinhado que os portugueses continuam a associar o cinema realizado no seu país a Vasco Santana, António Silva, à Canção de Lisboa e ao Pai Tirano, enquanto um cinéfilo estrangeiro prefere elogiar Manoel de Oliveira e João César Monteiro, estamos conscientes da dificuldade de teorizar sob uma temática tão pouco estudada, mesmo em contexto académico.

Por outro lado, e para além desta relativa “invisibilidade” dos cineastas portugueses contemporâneos (comum ao público nacional e ao estrangeiro), reiteramos que o nosso estudo comporta uma dificuldade acrescida que aqui denominamos por “dupla invisibilidade”. Nos últimos anos, tem-se efectivamente assistido a um interessante fenómeno de divulgação, premiação e exibição de filmes de uma jovem geração de realizadores, como João Salaviza e Miguel Gomes, ou à consagração de autores como João Canijo e Pedro Costa. Os nomes a que me refiro são, não obstante, todos correspondentes a cineastas masculinos, o que nos faz prever uma continuação da invisibilidade do cinema realizado por mulheres, em Portugal, por mais algumas décadas. Na tentativa de contrariar esta tendência – e de dar a conhecer um pouco mais os processos de constituição de uma identidade feminina que as mulheres têm levado a cabo através do cinema, essencialmente no pós-25 de Abril – apresentamos esta comunicação, como parte integrante da tese de doutoramento que se encontra em fase de conclusão.

O estranho caso de Bárbara Virgínia

De uma perspectiva genealógica, recordamos que o primeiro filme (ficção de longa-metragem) realizado por uma mulher, em Portugal, data de 1946, tendo estreado a 30 de Agosto no Cine Ginásio, em Lisboa. Três Dias Sem Deus, de Bárbara Virgínia (de seu verdadeiro nome Maria de Lurdes Dias Costa), é uma adaptação da obra original de Gentil Marques, Mundo Perdido, que chegou a ser apresentada no I Festival de Cannes, a 5 de Outubro do mesmo ano. Do

elenco, fazem parte a própria Bárbara Virgínia, para além de Linda Rosa, João Perry, Alfredo Ruas e Maria Clementina. O filme – centrado numa jovem professora primária (Lídia), contratada para leccionar numa aldeia da serra – é povoado de elementos fantásticos, recolhidos dos mitos e lendas tradicionais portugueses. Poucos dias depois da sua chegada ao incerto e recôndito local, Lídia é informada pelo médico de que este irá ausentar-se, juntamente com o pároco, para se deslocarem à cidade: serão “três dias sem Deus”, de acordo com a definição empírica da ancestral sabedoria popular. Nesse intervalo, a jovem professora conhece Paulo Belforte, a quem os habitantes da aldeia acusam de ter um “pacto com o diabo”, por alegadas tentativas de homicídio da mulher e de incêndio à igreja local.

Do filme, restam apenas algumas cenas que somam pouco mais de cinco minutos e que se encontram no Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), da Cinemateca Portuguesa. Praticamente desconhecida em termos de património cultural e histórico português, a obra de Bárbara Virgínia não tem sido objecto de análise e reflexão, tendo-lhe apenas Marisa Vieira (2009) dedicado o seu trabalho de final de licenciatura. Nele, a investigadora constata que, após a exibição pública da sua primeira longa-metragem, a realizadora apresentou um novo projecto ao Secretariado Nacional de Informação (SNI – entidade que aprovava e apoiava financeiramente as actividades cinematográficas realizadas em Portugal, durante o Estado Novo). Em 1952, a resposta obtida traduziu-se num pedido de adiamento do início das filmagens, sob alegação de falta de verbas: o projecto (centrado na vida e obra do poeta António Nobre) acabou por nunca se concretizar.

Segundo Marisa Vieira, Bárbara Virgínia partiria para o Brasil a 2 de Agosto de 1951, onde assinou contrato com a Rádio Tupi e, mais tarde, com a TV Tupi (emissoras paulistas) que, em 1957, lhe atribuem o “Prémio do teatro declamado”. A 15 de Outubro de 1963, Bárbara Virgínia participa num espectáculo, no Teatro Municipal de São Paulo, e despede-se dos palcos. Casou, em seguida, não tendo voltado a representar. O seu percurso profissional terá prosseguido na rádio, mas também na literatura, através da colaboração com a editora católica Paulinas, onde publica dois livros: A Mulher na Sociedade e Poder, Pode… Mas Não Deve. Entre os anos de 1955 e 1957, a investigadora afirma que Bárbara Virgínia

é proprietária de um restaurante típico português chamado Aqui Portugal. Em 2000, ainda vivia em São Paulo, sendo estas as últimas informações a que Marisa Vieira terá tido acesso.

Três dias sem Deus seria, desta forma, a primeira e única longa-metragem de ficção realizada por uma cineasta, em Portugal, durante o período do Estado Novo. Reconhecemos, no entanto, a importância histórica de outras mulheres, como Virgínia de Castro e Almeida que, na década de 20, produziria Os Olhos da Alma (Roger Lion: 1923) e A Sereia de Pedra (Roger Lion: 1923): ambas co- produções franco-portuguesas (IMDB). Nunca chegou, no entanto, e apesar dos esforços conhecidos, a assumir a realização de qualquer filme.

Também a actriz, produtora e realizadora, Maria Emília Castelo Branco – que, em 1930, produz A Castelã das Berlengas (António Leitão: 1930) e que em 1957 dirige o documentário Roteiros Líricos do Douro – enfrentaria dificuldades semelhantes, pelo seu pioneirismo desconfortável no seio de uma sociedade patriarcal. Apesar de diversas tentativas de obtenção de subsídio por parte do SNI, nunca irá poder concluir a rodagem de uma longa-metragem de ficção.

Outro feito impressionante seria alcançado pela escritora e realizadora Maria Luísa Bivar que dirigiu, em apenas três anos (entre 1962 e 1964), 70 documentários para a Junta de Acção Social (IMDB).

Por último, relembramos que Teresa Olga, a primeira mulher realizadora da televisão portuguesa, com fortes relações ao mundo do cinema, apenas contabilizou algumas participações em categorias técnicas de filmes do Novo Cinema Português (foi assistente de produção em Domingo à Tarde, de António Macedo: 1966, e Mudar de Vida, de Paulo Rocha: 1966; foi montadora de Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes: 1972 e de Pedro Só, de Alfredo Tropa: 1972). Nos anos 90 realizou dois documentários para a RTP (Aristides de Sousa Mendes – O cônsul injustiçado: 1992 e Humberto Delgado – Obviamente assassinaram-no: 1995).

No documento Filmes falados (páginas 101-105)