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A instância épica

No documento Filmes falados (páginas 84-87)

A saber, a poética épica possui a instância do narrador histórico. Segundo Anatol Rosenfeld em seu clássico ensaio sobre a encenação épica, essa instância é seguida mesmo em dramaturgias consideradas pós-dramáticas, como no teatro moderno e sua intelectualização. Ligado ao tempo presente, ainda que desligando-se dele ao narrar um tempo passado, a instância épica é dada pelo narrador – esteja ele presente na diegese utilizando-se da estrutura ou da prosódia, ou esteja ele em outro lugar que não seja a própria narração (como o caso de uma intervenção dos atores ou dos personagens diante da linha condutiva narrada exterior à diegese da estória contada). O narrar, aliás, é próprio de uma perspectiva épica, segundo o autor ao diferenciar a poética dos gêneros lírico, dramático: “Se nos é contada uma estória (em versos ou prosa), sabemos que se trata da épica, do gênero narrativo. Espécies deste gênero seriam, por exemplo, a epopeia, o romance, a novela, o conto” (Rosenfeld, 2010: 17). Mais à frente ele completa:

A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao narrador maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais amplo. Aristóteles salientou este traço estilístico ao dizer: “Entendo por épico um conteúdo de vasto assunto”. Disso decorrem , em geral, sintaxe e linguagem mais lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos. (Idem, 25)

Permanece, para essa linha teórica, o pensamento de que o narrador apenas mostra, ilustra como determinados personagens se comportaram em determinado

contexto. Ainda que este elemento seja forte, temos historicamente a continuação de um modelo épico baseado no uso de um personagem masculino que cumpre uma saga diante de várias adversidades que a ele são postas. Da Odisséia, com seu formato ainda primitivo no qual o personagem, passando pela revisão deste tipo de conto na época do romance objetivo traduzido por Dom Quixote, até sua crítica radical já contemporânea e quase ensaística em Ulisses, de James Joyce. A resignação a uma autoridade posta pela subsequência de um cânone literário histórico é descrita de forma exaustiva, às vezes até obsessiva, pela crítica de Harold Bloom. Discutidor de Shakespeare – obviamente, em sua exasperação, nota-se alguns vetores de uma decadência aristocrática de um status artístico proposto pela arte europeia secular, e, no caso do professor citado, do centro imperioso do Reino Unido.

Se pudéssemos conceber um cânone universal, multicultural e multivalente, seu único livro essencial não seria uma escritura, a Bíblia, o Corão ou um texto oriental, mas antes Shakespeare, que é encenado e lido em toda parte, em todas as línguas e circunstâncias. (Bloom, 2010: 57)

Esta imputação do cânone perante uma força que se encontra na herança estilística é contraditória na composição de uma teoria através do uso da citada autoridade nesta defesa que nega a multiplicidade dialógica da narrativa moderna de autores à margem do núcleo ocidental. Mas tiramos deste trecho a comparação necessária para a rediscussão moderna acerca do que seria considerado secular pelo centro ocidental, que ainda permanecia fortemente conjunto ao legado do imaginário proposto pelo cristianismo – provavelmente, a Bíblia permanece como um grande apanhado histórico que substitui ficções diversas em determinados contextos ainda marcados pelo pós-colonialismo.4 Isto quer dizer que, em outros termos, a ficção épica tem seu postulado ideológico, além de apenas estético como em geral é vista – considerando grandes histórias religiosas como, também, grandes épicos históricos.

4) Quando o contexto pós-colonial é citado o embate além de politico torna-se também estético, ainda no momento pós-guerra. Levando-se em consideração que as grandes narrativas épicas também contavam estratégias de ocupação, guerras e domínios territoriais.

Em linhas gerais, no fundo, a poética épica tem marcas profundas de um contexto histórico. É este o seu diferencial. Contando também com o entusiasmo comunicativo de uma performance de escritura (consequentemente de leitura) para grandes multidões, nas quais as rimas trovadoras serviam não apenas para uma memorização dos versos, mas para o convencimento público da força de tais acontecimentos relatados. Sejam estes acontecimentos fictícios ou verídicos. A épica, além de artifício de verossimilitude, em traços ainda pouco objetivos do formato epopeico, tinha em seu substrato a camada política necessária para o contexto de migrações colonizadoras – mesmo sob o percalço da violência característica desses contos pré-modernos. Georg Luckács chega a comparar estes dois momentos históricos na sua teoria do romance:

A epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida. (...) Assim, a intenção fundamental determinante da forma do romance objetiva-se como psicologia dos heróis romanescos: eles buscam algo. (...) pode-se tratar de crime ou loucura, e os limites que separam o crime do heroísmo aclamado, a loucura da sabedoria que domina a vida, são fonteiras lábeis, meramente psicológicas, ainda que o final alcançado se destaque da realidade cotidiana com a terrível clareza do erro irreparável que se tornou evidente. (Luckács, 2009: 60)

A história estaria então entre o lícito e o ilícito que ainda não existia na oficialidade do narrador épico, fosse ele um aventureiro, colonizador, nobre, partidário do absolutismo, cristão peregrinador, guerreiro contratado, etc. Só se vê como crime os genocídios em favor de interesses territoriais da época de Maomé e Ulisses o olhar moderno, ou seja, o ponto de vista do romance épico.

Em alguma medida, tal discussão teórica havia sido adaptada ao cinema através de estudos do cinema do leste europeu – e principalmente de sua inovação do uso ideológico não aparente, mas manifesto. A política do herói era clara, chegando a, inclusive, ter o nome de um tipo de realismo próprio: realismo soviético. Essa vitória contextual teve seus dias de êxito, contradizendo vitalmente a linha condutiva norte-americana do épico conquistador. Em

filmes como os de Vsevolod Pudovkin, um dos idealizadores da estética, a problematização está plenamente de acordo com essa passagem de um momento do herói único ao heroísmo de multidões (do que se compreendia por população ou povo soviético). No entanto, o cânone épico ainda seria fixo, e permanecia como a grande ligação entre filmes e recepção.

No documento Filmes falados (páginas 84-87)