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Memória social e memória autobiográfica

No documento Filmes falados (páginas 162-166)

Uma análise de filmes produzidos em Portugal entre 2007 e

1. Memória social e memória autobiográfica

Observamos, nos últimos anos, um crescente interesse pela obra de Maurice Halbwachs, sociólogo francês, discípulo de Durkheim, que escreveu os seus principais trabalhos entre as décadas de 20 e 40. Halbwachs procurava entender

a formação da consciência social, tendo aprofundado o estudo da memória, principalmente em duas grandes obras: Os quadros sociais da memória (1925) e A memória coletiva (1950). Dado que é nosso objetivo analisar documentários autobiográficos, em que a memória assume um papel central, o seu trabalho revela-se de extrema importância para a nossa reflexão.

Uma ideia que parece ser transversal à obra de Maurice Hallbwachs consiste na aceção de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, dado que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. O autor distingue duas memórias: a memória pessoal e a memória social, ou como o autor refere, “memória autobiográfica e memória histórica” (Hallbwachs, 1950/1990: 55). Na sua opinião, a primeira apoia-se na segunda, pois a história de nossa vida faz parte da história geral. Mas a segunda seria mais ampla do que a primeira. Ao referir-se à memória histórica, Hallbwachs (1950/1990: 55) acrescenta que esta “não representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto que a memória da nossa vida nos apresentaria um quadro mais contínuo e mais denso”. Defendendo esta perspetiva, o autor salienta ainda que os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, mas “representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos o nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (Hallbwachs, 1950/1990: 66).

Na conceção do autor, além das imagens e dos livros, o passado deixou muitos traços, visíveis algumas vezes, e que se percebem também na expressão dos rostos, no aspeto dos lugares e mesmo no modo de pensar e de sentir, inconscientemente conversados e reproduzidos. Neste sentido, “é esse passado vivido, bem mais do que o passado apreendido pela história escrita, sobre o qual poderá mais tarde apoiar-se a nossa memória”. O autor defende que a história vivida “tem tudo o que é preciso para constituir um quadro vivo e natural em que um pensamento pode apoiar-se, para conservar e reencontrar a imagem de seu passado” (Hallbwachs, 1950/1990: 71).

Com efeito, uma lembrança é em grande medida uma reconstrução do passado, com a ajuda de dados emprestados do presente. Assim, de cada período da nossa vida, guardamos algumas lembranças, reproduzidas em contexto social,

e “através das quais se perpetua, como que por efeito de uma filiação contínua, o sentimento da nossa identidade” (Hallbwachs, 1925/1994: 89).

É interessante constatar que para o autor, uma reconstituição do passado só pode ser uma aproximação. Mesmo que dispunhamos de um grande número de testemunhos escritos ou orais, teríamos que evocar o mesmo tempo e todas as influências que se exerceram sobre nós.

É porque a sociedade obriga os homens de tempos a tempos, não somente a reproduzir em pensamento os acontecimentos anteriores de sua vida, mas também a retocá-los, a subtraí-los, a completá-los, de modo a que convencidos no entanto que as nossas lembranças são exatas, nós as comunicamos enquanto evidência que a realidade não possui. (Hallbwachs, 1925/1994: 113)

Na opinião do autor, nós falamos das nossas lembranças antes de as evocar. De facto, a linguagem tem um papel preponderante na reconstrução do nosso passado. Mas como é que localizamos as nossas lembranças? De acordo com Hallbwachs (1925/1994), com a ajuda dos pontos de referência que trazemos sempre connosco, porque basta olharmos à nossa volta, pensarmos nos outros, e situarmo-nos no quadro social, para as reencontrar.

No seu trabalho “Remembering and reminiscing: How individual lives are constructed in family narratives”, Fivush (2008) salienta este caráter social da memória. Segundo esta perspetiva, a memória em geral, e a memória autobiográfica em particular, são construídas em interações sociais em que eventos específicos, e interpretações particulares de eventos, são destacadas, compartilhadas, negociadas e contestadas, levando à fluidez de representações dinâmicas relativas aos eventos das nossas vidas, que contribuem para definirmo- nos a nós próprios, aos outros e ao mundo. É através da linguagem que a memória autobiográfica se expressa e se organizam os vários componentes sensoriais de uma memória pessoal.

As histórias que contamos sobre as nossas vidas definem quem somos enquanto indivíduos, dentro de determinadas famílias, culturas e períodos históricos. Para Fivush (2008) há dois períodos críticos do desenvolvimento: os

anos pré-escolares, quando a autobiografia começa a emergir, e a adolescência, quando as memórias autobiográficas começam a aglomerar-se numa narrativa de vida global em que nos definimos, definimos os outros e os nossos valores. Na adolescência, vemos o início de uma narrativa de vida que liga os eventos ao longo do tempo e coloca o eu em relação ao outro, incorporando um conjunto de histórias interligadas. Para o autor, importa colocar a própria história de vida no contexto da história familiar, que fornece uma estrutura para compreender- se a si mesmo como membro de uma família que se estende para além do seu nascimento. A própria história está embutida nas histórias de outros, no passado e no presente.

Na opinião de Licata, Klein & Gély (2007), a narrativa é apenas o primeiro nível de um todo que vai do mais concreto, a narrativa, ao mais abstrato, a reconstrução, passando por níveis intermediários, a interpretação e a argumentação. A evolução do discurso sobre o passado envolve um processo de distanciamento gradual em relação ao evento em questão (ex: abandono forçado da terra onde nasceu e cresceu). Exige também o olhar crítico face à nossa própria perspetiva e a inclusão progressiva do outro e da perspetiva do outro neste processo. Isto não implica que os grupos tenham de abandonar as suas identidades sociais e de aderir indiscriminadamente à versão homogeneizadora da história. Mas requer a coexistência de uma pluralidade de memórias, eventualmente contraditórias, implica ainda que o outro seja reconhecido como interlocutor potencial.

Esta reflexão revela-se ainda mais significativa quando estudamos as memórias de conflitos passados, como a guerra colonial, que podem constituir um obstáculo ao diálogo entre grupos, comprometendo a suas relações futuras. A boa gestão das memórias coletivas – muitas vezes plurais e contraditórias – constitui um elemento crucial para o “sucesso dos processos de reconciliação e para a possibilidade de um efetivo diálogo com o ‘outro’” (Cabecinhas & Nhaga, 2008: 109). De facto, as memórias coletivas podem ter um papel importante na formação das relações que se estabelecem atualmente entre ex-colonizadores e ex-colonizados, bem como na formação e reconstrução das representações sociais da diáspora portuguesa que vive nos países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa) e da diáspora africana de língua oficial portuguesa que vive em Portugal.

2. Memória social e os media: o caso do documentário

No documento Filmes falados (páginas 162-166)